Comandante do 'Arpão' pôs missão e guarnição de 33 militares em risco
Henriques Frade tomou decisões operacionais cujas potenciais consequências teriam posto em risco o submarino e os 33 militares a bordo.
O comandante do submarino Arpão foi exonerado em setembro, depois de uma missão pelo Mediterrâneo. Oficialmente, "por motivos administrativos", como disse ao DN o porta-voz da Marinha Pereira da Fonseca.
Mas, segundo diferentes fontes militares, as verdadeiras razões da demissão do comandante Henriques Frade - por parte do chefe do Estado-Maior do ramo, almirante Mendes Calado - tiveram por base questões de natureza operacional. O comandante do Arpão tomou decisões que puseram em risco a segurança do submarino e a vida da guarnição. E a demissão envolveu também o Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA), almirante Silva Ribeiro. O afastamento ocorreu a menos de dois meses do fim da comissão de Henriques Frade, colocado a seguir no EMGFA - leia-se, segundo os cânones castrenses: o ramo afastou-o da organização.
O comandante terá tomado decisões que as fontes não podem revelar - por serem "matéria classificada". "Foram coisas que aconteceram em catadupa, em que ele decidiu e se envolveu sem autorização de ninguém", contou uma fonte. Suficientemente graves para "ter de pedir autorização [superior]. E não pediu", afirmou uma das fontes. Outra fonte ouvida pelo DN, invocando também o secretismo imposto pelo caráter confidencial da missão, acrescentou: "Foram decisões de enorme complexidade e gravidade operacional que [o comandante do Arpão] não podia ter tomado sem autorização superior.
O porta-voz da Marinha assegurou ao DN que não foi aberto um processo de averiguações para fundamentar a exoneração do comandante Henriques Frade. Isso pode ter um de dois significados: não aconteceu nada ou, então, optou-se por evitar registos escritos do que sucedeu com um navio que, pela sua natureza e tipo de missões, está sempre rodeado de secretismo. A ser esta a razão, aquele oficial terá assim abdicado de poder contestar judicialmente a sua exoneração.
Certo é que outra das fontes ouvidas pelo DN, invocando também o secretismo imposto pelo caráter confidencial da missão, acrescentou: "Foram decisões de enorme complexidade e gravidade operacional que [o comandante do Arpão] não podia ter tomado sem autorização superior."
Este é um pormenor em que as diferentes fontes convergem: essas decisões operacionais, com grande complexidade e risco, foram tomadas por Henriques Frade sem ter autoridade para o efeito. Dito de outra forma, o comandante do Arpão tinha de ter informado previamente - para conselho e autorização superior - o Comando Operacional Conjunto (COC) do EMGFA ou, no limite, comunicar o que tencionava fazer.
Note-se que o Arpão também estava subordinado à Autoridade Operacional dos Submarinos (SUBOPAUTH, sigla em inglês), pelo facto de os submarinos em missão no exterior - além de sujeitos ao comando operacional do COC - estarem sob o controlo operacional da SUBOPAUTH.
Esta função de controlo operacional é essencial no espaço subaquático para as SUBOPAUTH de cada país - que estão em contacto permanente - evitarem colisões ou, por exemplo, procederem a operações de resgate e salvamento em caso de acidente na subsuperfície. A SUBOPAUTH em Portugal está na Marinha e é o comandante da esquadrilha de submarinos (por delegação do comandante naval).
Missão no Mediterrâneo
Este caso, qualificado como muito sensível por diferentes fontes que aceitaram falar sob anonimato por não estarem autorizadas e recusando tornar públicos detalhes classificados da operação, ocorreu durante a missão de dois meses que o Arpão cumpriu durante o último verão no Mediterrâneo, sob a bandeira da UE e também ao serviço da NATO.
Mas é com base em todas estas informações e na gravidade com que foram transmitidas, pela quase totalidade das fontes militares que falaram ao DN, que se entende que as decisões operacionais tomadas pelo comandante Henriques Frade poderiam literalmente ter colocado em risco a segurança do submarino e a vida da guarnição.
Aqui surge uma divergência de pormenor entre as fontes ouvidas pelo DN, a respeito das eventuais consequências das decisões de Henriques Frade para a segurança do submarino e a vida dos 33 militares da guarnição: umas asseguram que elas poderiam ter existido, outras garantem que esses riscos não existiram.
Dito de outro modo e recorrendo ao exemplo de andar em contramão, num troço de autoestrada: poderiam existir consequências graves, mas não existiram porque o carro não se cruzou com outros veículos.
Note-se que, a terem ocorrido as referidas consequências negativas, é praticamente certo que também teria havido efeitos políticos envolvendo a UE ou a NATO, consoante o Arpão estivesse a operar para uma dessas organizações quando as decisões foram tomadas. E também é possível admitir que o submarino já não estivesse empenhado na missão europeia ou da Aliança na altura da ocorrência que levou à demissão.
Segundo o vice-almirante Álvaro Cunha Lopes, na reserva, só é possível "especular" sobre as ações e opções tomadas por Henriques Frade - e as potenciais consequências que daí poderiam decorrer - num caso de que disse não ter "a mínima ideia".
Mas assumindo a ocorrência de manobras perigosas, Cunha Lopes admitiu algumas situações teoricamente possíveis: ter assentado o submarino no fundo do mar, demasiada aproximação a um alvo, colocação do Arpão sob outro navio...
A verdade é que Henriques Frade foi colocado a seguir no Estado-Maior-General - leia-se, segundo os cânones castrenses, o ramo afastou-o da organização.
Briefing inesperado no COC
Dias após ter atracado na Base Naval de Lisboa, a 31 de agosto, o comandante Henriques Frade deslocou-se ao EMGFA para fazer o habitual briefing final da missão - na qual estava presente o CEMGFA, enquanto comandante operacional das Forças Armadas.
Dois detalhes em que as várias fontes coincidem é que Henriques Frade transmitiu as situações em que esteve envolvido e quais as medidas que adotou para lhes fazer face, assim como o facto de o almirante Silva Ribeiro desconhecer alguns desses acontecimentos - o que terá dito em plena reunião, colocando perguntas adicionais ao comandante do Arpão.
Como é habitual nesses briefings no COC do EMGFA, o comandante do Arpão falou sobre os aspetos operacionais da missão: as posições em que o navio esteve, os contactos que estabeleceu onde e com que navios, quais os procedimentos que adotou, eventuais atividades complementares realizadas face à missão principal - algumas delas, insistiram as fontes, sem que o CEMGFA e comandante operacional as tivesse mandado realizar ou sido informado.
Algumas destas fontes acrescentaram que isso terá levado o almirante Silva Ribeiro a questionar como foi possível tal ter acontecido sem o seu conhecimento - e, ao que o DN soube, o CEMGFA pediu explicações.
No entanto, outras fontes admitiram ter dúvidas de que um CEMGFA oriundo do Exército ou da Força Aérea questionasse a atuação do comandante do Arpão. Uma delas observou mesmo que "uma coisa é estar à superfície, onde é sempre possível estar em comunicação", sendo muito mais arriscado um submarino aproximar-se da superfície para o fazer.
Talvez por isso é que o comandante de um navio - e por maioria de razão num submarino, que fica incontactável durante vários dias - tem "liberdade de ação no mar" para tomar decisões mesmo quando carecem de autorização superior, lembrou uma alta patente. Só que, acrescentou esta fonte, isso implica arcar depois com a consequente responsabilização. E terá sido isso que aconteceu.
O porta-voz do CEMGFA, comandante Coelho Dias, limitou-se a dizer ao DN que "as nomeações e exonerações de comandantes de unidades navais são uma competência exclusiva" do chefe do Estado-Maior da Marinha. Acresce que o almirante Silva Ribeiro "desconhece os motivos que levaram à substituição do comandante do Arpão" determinada pelo almirante Mendes Calado.
Segunda causa de afastamento?
Uma das explicações que se ouvem nos bastidores da Marinha - a conhecida Voz da Abita - é que o comandante Henriques Frade terá contado, nesse briefing, pormenores da missão sobre os quais deveria ter ficado calado por não serem relevantes para o COC nem terem prejudicado o cumprimento da operação autorizada pelo CEMGFA.
Esta tese decorre do facto de a SUBOPAUTH, tendo o controlo operacional do submarino, poder atribuir-lhe missões complementares sem afetar a primária - do tipo "já que estão aí, vejam lá isto" - e sem interesse operacional para o COC.
Contudo, várias fontes discordaram frontalmente da interpretação de que um oficial a quem é delegado o controlo operacional possa não informar o comandante operacional - desde logo porque continua a estar-lhe subordinado. Uma dessas fontes foi o vice-almirante Cunha Lopes: Henriques Frade fez o que lhe competia também porque "esteve a ser leal com o seu comandante operacional", já que o responsável de um navio só "vai para o mar com uma ordem de operações" aprovada pelo CEMGFA.
Note-se ainda que, ao contrário do que sucedia até 2015 e representou uma mudança organizacional (e de mentalidades) nas Forças Armadas, o EMGFA deixou de ser secundário face aos ramos - e o almirante Silva Ribeiro afirmou que iria exercer os poderes dados pela lei a quem já não é um chefe interpares, mesmo que ao COC faltem os necessários meios de comando e controlo.
Segunda demissão em poucas semanas
Henriques Frade foi o primeiro de dois comandantes de navios da Marinha a serem exonerados num curto intervalo de tempo, ambos por razões operacionais e a poucas semanas do fim da respetiva comissão - o que, sem informação oficial adicional, permite supor que o chefe da Marinha só o fez por razões fortes ligadas ao desempenho do cargo.
Enquanto o comandante do Arpão saiu em setembro, o comandante Valter Bulha de Almeida deixou a fragata Corte Real no início de dezembro e após a participação num grande exercício da NATO ao largo da Noruega.
Neste caso esteve em causa o processo de decisão do comandante perante condições de mar existentes durante uma tempestade na região do golfo da Biscaia e que poderiam ter evitado tantos danos como os que o navio apresentava à chegada a Lisboa.
Em termos disciplinares e nos últimos meses de 2018, o almirante Mendes Calado viu ainda a diretora do centro de abastecimento sanitário da Marinha - uma oficial superior - na base do Alfeite ser alvo de uma operação da PJ Militar devido a discrepâncias detetadas na contabilidade do material adquirido e no que era fornecido aos militares.
Na mesma altura, em finais de setembro, foi perdida uma caixa com um milhar de munições durante um transporte de material de guerra para os paióis da Escola de Fuzileiros. A caixa viria a ser encontrada por um automobilista que depois a entregou à PSP, tendo a Marinha aberto processos disciplinares aos militares envolvidos.
https://www.dn.pt/edicao-do-dia/05-jan- ... 74451.html?