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Mensagem
por Clermont » Dom Abr 16, 2017 8:49 am
O "ATAQUE QUÍMICO" DA SÍRIA: CUI BONO?
Uri Avnery - Antiwar.com, 15 de abril de 2017.
Cui bono - "quem se beneficia" - é a primeira questão que um detetive experimentado pergunta quando investiga um crime.
Já que, eu mesmo, fui um detetive por um curto tempo na juventude, sei o que isto significa. Com freqüencia, a primeira e óbvia suspeita é falsa. Você se pergunta, "cui bono", e outro suspeito, em quem você não pensou, aparece.
Há duas semanas, esta questão atormenta minha mente. Ela não me deixa.
Na Síria, foi cometido um terrível crime. A população civil numa vila mantida por rebeldes, chamada Idlib, foi atingida com gás venenoso. Dezenas de civis, incluindo crianças, sofreram uma morte miserável.
Quem pôde fazer tal coisa? A resposta foi óbvia: este terrível ditador, Bashar al-Assad. Quem mais?
E, assim, dentro de poucos minutos (literalmente) o New York Times e uma hoste de excelentes jornais por todo o Ocidente, proclamou, sem hesitação: Assad fez isto!
Nenhuma necessidade de provas. Nenhuma investigação. Isto, simplesmente, era auto-evidente. Assad, é claro. Dentro de minutos, todo mundo sabia disto.
Uma tempestade de indignação varreu o mundo ocidental. Ele tem de ser punido! O pobre Donald Trump, que não tinha uma prova, submeteu-se à pressão e ordenou um insensato ataque de mísseis contra um aeródromo sírio, após pregar durante anos que os Estados Unidos, sob circunstância alguma, deveriam envolver-se na Síria. De repente, contradisse à si mesmo. Apenas para ensinar a este bastardo uma lição. E para mostrar ao mundo que "macho-cho" ele, Trump, realmente é.
A operação foi um imenso sucesso. Da noite para o dia, o desprezado Trump tornou-se um herói nacional. Mesmo os liberais beijaram seus pés.
Mas, durante tudo isso, aquela questão continuava a importunar minha mente. Por que Assad fez isto? O que ele tinha a ganhar?
A resposta simples é: nada. Absolutamente, nada.
("Assad" significa "leão" em árabe. Contrário ao que especialistas e estadistas ocidentais parecem acreditar, a palavra é paroxítona).
Com a ajuda da Rússia, Irã e o Hizbullah, Assad, lentamente, está vencendo a guerra civil devastando a Síria há anos. Ele já mantém quase todas as grandes cidades que constituem o núcleo da Síria. Ele tem armas o bastante para matar tantos civis inimigos quanto deseje seu coração.
Então, por que, em nome de Alá, ele usaria gás para matar umas poucas dezenas mais? Por que excitar a ira do mundo inteiro, pedindo por uma intervenção americana?
Não há modo nenhum de negar a conclusão: Assad é quem menos tinha a ganhar do ato ignóbil. Na lista do "cui bono", ele fica em último.
Assad é um ditador cínico, talvez cruel, mas está longe de ser um tolo. Ele foi criado por seu pai, Hafez al-Assad, que foi ditador por muito mais tempo antes dele. Mesmo se fosse um tolo, seus conselheiros incluém algumas das pessoas mais espertas do planeta: Vladimir Putin da Rússia, Hassan Rouhani do Irã e Hassan Nasrallah do Hizbullah.
Então, quem tinha algo a ganhar? Bom, meia dúzia de seitas e milícias sírias que estão lutando contra Assad e umas com as outras nesta louca guerra civil. E também os aliados árabes sunitas delas, os sauditas e outros xeques do Golfo. E Israel, é claro. Todos eles tem interesse em incitar o mundo civilizado contra o ditador sírio.
Simples lógica.
Uma ação militar precisa ter um objetivo político. Como Carl von Clausewitz, famosamente, escreveu há duzentos anos atrás: a guerra é a continuação da política por outros meios.
Os dois principais oponentes na guerra civil síria são o regime Assad e o Daesh [ISIS]. Portanto, qual o objetivo dos Estados Unidos? Parece piada: os EUA querem destruir ambos os lados. Outra piada: primeiro querem destruir o Daesh, para isso bombardeiam Assad.
A destruição do Daesh é altamente desejável. Há poucos grupos mais detestáveis no mundo. Mas o Daesh é uma idéia, antes do que apenas uma organização. A destruição do Daesh dispersaria milhares de dedicados assassinos por todo o mundo.
(Curiosamente o bastante, os Assassinos originais, cerca de novecentos anos atrás, eram fanáticos muçulmanos muito similares ao Daesh atual.)
Os próprios clientes da América na Síria são um bando lamentável, quase batidos. Eles não tem chance alguma de vencerem.
Prejudicar Assad agora apenas significa prolongar uma guerra civil que, neste ponto, é ainda mais insensata do que antes.
Para mim, jornalista profissional a maior parte da minha vida, o aspecto mais deprimente de todo este capítulo é a influência da mídia americana e ocidental em geral.
Eu leio o New York Times e o admiro. Mesmo assim, ele rasgou todos os seus padrões profissionais ao publicar uma suposição não comprovada como uma verdade evangélica, sem nenhuma necessidade de verificação. Talvez, Assad seja culpado, afinal de contas. Mas, onde está a prova? Quem investigou e quais foram os resultados?
Pior, as "notícias" tornaram-se uma verdade mundial. Muitos milhões repetem-na, sem pensar, como auto-evidente, como o sol nascendo no leste e se pondo no oeste.
Sem questões levantadas. Sem provas exigidas ou fornecidas. Muito deprimente.
Voltando ao ditador. Por que a Síria precisa de um ditador? Por que ela não é uma bela democracia ao estilo EUA? Por que não aceita, agradecida, uma "mudança de regime" planejada pelos EUA?
A ditadura síria não é nenhum fenômeno acidental. Ela tem raízes muito concretas.
A Síria foi criada pela França depois da Grande Guerra. Posteriormente, uma parte dela separou-se e virou o Líbano.
Ambos são criações artificiais. Duvido se, mesmo hoje, existam mesmo "sírios" e "libaneses" de verdade.
O Líbano é um território montanhoso, idealmente adequado para pequenas seitas que precisam defender-se. Através dos séculos, muitas pequenas seitas acharam refúgio lá. Como resultado, o Líbano está cheio de tais seitas que desconfiam uma das outras - muçulmanos sunitas, muçulmanos xiitas, cristãos maronitas, outras seitas cristãs, drusos, curdos.
A Síria é a mesma coisa, com a maioria das mesmas seitas, e o acréscimo dos alauítas. Estes, como os xiitas, são seguidores de Ali Ibn Abi Talib, primo e genro do profeta. Eles ocupam uma faixa de terra no norte da Síria.
Ambos os países precisaram inventar um sistema que permitisse a entidades tão diversas e mutualmente suspeitosas, viverem juntas. Eles encontraram dois sistemas diferentes.
No Líbano, com um passado de muitas guerras civis brutais, inventou-se uma forma de compartilhamento. O presidente é sempre um maronita, o primeiro-ministro um sunita, o comandante do exército um druso, e o porta-voz do parlamento um xiita.
Quando Israel invadiu o Líbano em 1982, os xiitas no sul eram os mais baixos na escada. Eles saudaram nossos soldados com arroz. Mas logo compreenderam que os israelenses não tinham chegado só para derrotar os vizinhos arrogantes, mas tencionavam ficar. Portanto, os baixos xiitas começaram uma campanha guerrilheira muito bem-sucedida, no curso da qual tornaram-se a mais poderosa comunidade no Líbano. Eles são liderados pelo Hizbullah, o Partido de Deus. Mas o sistema ainda se mantém.
Os sírios acharam outra solução. De bom grado, submeteram-se a uma ditadura, para manter o país junto e assegurar a paz interna.
A Bíblia diz que os Filhos de Israel, quando decidiram que precisavam de um rei, escolheram um homem chamado Saul, pertencente a menor tribo, Binyamin. Os sírios modernos fizeram o mesmo: submeteram-se a um ditador de uma de suas menores tribos, os alauítas.
Os Assad são governantes seculares, anti-religiosos - o completo oposto do fanático e mortífero Daesh. Muitos muçulmanos acreditam que os alauítas nem mesmo são muçulmanos, no fim das contas. Desde que a Síria perdeu a Guerra do Yom Kippur contra Israel, quarenta e quatro anos atrás, os Assads tem mantido a paz em nossa fronteira, embora os israelenses tenham anexado as Colinas de Golan sírias.
A guerra civil na Síria ainda prossegue. Todo mundo está lutando contra todo mundo. Os diversos grupos de "rebeldes", criados, financiados e armados pelos americanos, agora estão em má situação. Há vários grupos competidores de jihadistas, todos odiando o jihadista Daesh. Há um enclave curdo, que deseja emancipar-se. Os curdos não são árabes, mas são principalmente muçulmanos. Há enclaves curdos nos vizinhos Iraque, Turquia e Irã, cuja mútua hostilidade os impedem de fazer causa comum.
E há o pobre, inocente Donald Trump, que jurou não envolver-se em toda esta bagunça e que está fazendo justamente isto.
Um dia antes, Trump era desprezado por metade do povo americano, incluindo a maior parte da mídia. Somente por ter lançado uns poucos mísseis, ele ganhou a admiração geral como um líder sábio e enérgico.
O que isto nos diz a respeito do povo americano, e a respeito da humanidade em geral?
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Uri Avnery é um ativista da paz, jornalista, escritor e ex-membro do Knesset israelense.