Estamos vendo o início de uma nova corrida armamentista, afirma Gorbatchov
Em uma entrevista para a "Spiegel", o ex-líder soviético Mikhail Gorbatchov discute a moral e política em uma era nuclear, a crise nas relações entre a Rússia e os EUA e seu temor de que uma arma atômica algum dia seja usada.
Spiegel: Mikhail Sergeyevich, durante seu discurso de posse como secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, em março de 1985, disse o senhor alertou sobre uma guerra nuclear e pediu pela "destruição completa das armas nucleares e uma proibição permanente delas". O senhor falava sério?
Gorbatchov: A discussão sobre desarmamento já estava em andamento há muito tempo –tempo demais. Eu queria finalmente ver as palavras serem seguidas por ação, porque a corrida armamentista não apenas continuava, como estava se tornando mais perigosa em termos de número de armas e sua capacidade destrutiva. Havia dezenas de milhares de ogivas nucleares em diferentes sistemas de entrega, como aeronaves, mísseis e submarinos.
Spiegel: O senhor sentia que a União Soviética estava sob ameaça durante os anos 80 pelas armas nucleares dos países membros da OTAN?
Gorbatchov: A situação era de mísseis nucleares sendo posicionados cada vez mais próximos de nossas fronteiras. Eles estavam se tornando cada vez mais precisos e também estavam sendo apontados para os centros de tomada de decisões. Havia planos muito concretos para uso dessas armas. Uma guerra nuclear tinha se tornado concebível. E mesmo um erro técnico poderia causá-la. Ao mesmo tempo, as negociações para desarmamento não estavam chegando a lugar nenhum. Em Genebra, os diplomatas se debruçavam sobre montanhas de papel, bebiam vinho, e coisas ainda mais fortes, aos litros. E tudo por nada.
Spiegel: Em uma reunião dos países do Pacto de Varsóvia em 1986, o senhor declarou que a doutrina militar da União Soviética não mais previa o planejamento para uma guerra que se aproximava, mas sim buscar prevenir um confronto militar com o Ocidente. Esse foi o motivo por trás da mudança de estratégia?
Gorbatchov: Estava claro para mim que as relações com a América e o Ocidente seriam um beco sem saída duradouro sem um desarmamento nuclear, com desconfiança mútua e crescente hostilidade. Esse foi o motivo para o desarmamento nuclear ter sido a mais alta prioridade da política externa soviética.
Spiegel: O senhor também não pressionou pelo desarmamento por causa dos problemas econômicos e financeiros enfrentados pela União Soviética nos anos 80?
Gorbatchov: É claro que percebemos o enorme fardo que a corrida armamentista representava para nossa economia. Isso de fato exerceu um papel. Mas estava claro para nós que um confronto nuclear ameaçava não apenas nosso povo, mas também toda a humanidade. Nós conhecíamos muito bem as armas que estavam sendo discutidas, seu poder destrutivo e as consequências. A catástrofe nuclear de Chernobyl nos forneceu uma ideia precisa das consequências de uma guerra nuclear. Portanto, considerações políticas e éticas foram decisivas para nós, não as econômicas.
Spiegel: Qual foi a sua experiência com o presidente americano Ronald Reagan, que muitos viam como uma força motriz na Guerra Fria?
Gorbatchov: Reagan agiu seguindo uma convicção honesta e rejeitava genuinamente as armas nucleares. Já durante meu primeiro encontro com ele, em novembro de 1985, nós conseguimos chegar à determinação mais importante: "Uma guerra nuclear não pode ser vencida e, portanto, nunca deve ser travada". Essa sentença combina moral e política –duas coisas que muitos consideram inconciliáveis. Infelizmente, de lá para cá os Estados Unidos esqueceram o segundo ponto importante de nossa declaração conjunta –segundo a qual nem a América e nem nós buscaremos obter superioridade militar.
Spiegel: O senhor está decepcionado com os americanos?
Gorbatchov: Muitas décadas se passaram, mas infelizmente algumas coisas não mudam. Já nos anos 50, o presidente Dwight D. Eisenhower declarou o problema nominalmente. O poder do complexo militar-industrial continuava sendo enorme sob Reagan e seu sucessor, George Bush. O ex-secretário de Estado americano, George Shultz, me disse poucos anos atrás que apenas um presidente conservador como Reagan poderia estar em posição de fazer o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário passar pelo Senado. Não vamos esquecer que a "Opção Zero" proposta pelo próprio Reagan (nota do editor: a proposta de remover todos os mísseis soviéticos e americanos de alcance intermediário da Europa) contava com muitos oponentes no Ocidente. Eles a consideravam uma jogada de propaganda e queriam frustrar as políticas de Reagan. Após a cúpula de Reykjavík em 1986 (nota do editor: o assunto do encontro entre Reagan e Gorbatchov era o desarmamento nuclear), Margaret Thatcher declarou: Não seremos capazes de lidar com um segundo Reykjavík.
Spiegel: O senhor realmente acreditava na época que conseguiria um mundo livre de armas nucleares?
Gorbatchov: Não apenas proclamamos um mundo livre de armas nucleares como uma grande meta –nós também estabelecemos metas interinas concretas. Além disso, nós aspirávamos a destruição das armas químicas e agora estamos próximos de atingir essa meta. A limitação das armas convencionais também estava em nossa agenda. Isso estava ligado inseparavelmente à normalização de nossas relações. Nós queríamos passar do confronto para a cooperação. Nós conseguimos muito, o que mostra que minha abordagem era bem realista.
Spiegel: Muitos acusaram o senhor de usar sua meta como uma tática para apresentar a União Soviética com um país amante da paz.
Gorbatchov: Não, não havia propaganda em jogo e não era algo tático. Era importante escapar do abismo nuclear para o qual nossos países estavam marchando quando posicionaram centenas de mísseis nucleares de alcance intermediário na Europa.
Spiegel: Por que as negociações em torno dos mísseis balísticos intercontinentais foi muito mais dura do que a dos mísseis de alcance intermediário?
Gorbatchov: Em Reykjavík, Islândia, em outubro de 1986, Reagan e eu não apenas estabelecemos a estrutura para a eliminação dos mísseis de alcance intermediário, mas também pela redução pela metade dos mísseis intercontinentais. Mas Reagan enfrentava uma forte resistência dos falcões no governo americano. Isso continuou sob Bush, de modo que, no final, só assinamos finalmente o tratado em meados de 1991. Com as armas estratégicas de longo alcance também havia questões técnicas. E também tínhamos o problema com a defesa antimísseis.
Spiegel: O senhor não conseguiu convencer Reagan a abandonar o projeto de defesa antimísseis, que visava criar um escudo defensivo contra mísseis balísticos intercontinentais. Isso o incomodou?
Gorbatchov: Reagan o queria de qualquer forma. Esse foi o motivo para não termos conseguido transformar, em Reykjavík, nossos acordos a respeito de mísseis intercontinentais e mísseis de alcance intermediário em tratados. Para quebrar o impasse, nós oferecemos concessões aos americanos e desacoplamos o pacote de negociação. Nós concordamos em um tratado separado para os mísseis de alcance intermediário. Reagan e eu o assinamos em Washington, em dezembro de 1987.
Spiegel: O posicionamento de mísseis americanos de alcance intermediário provocou manifestações em massa pelo movimento pela paz na Alemanha...
Gorbatchov: ...e Helmut Kohl teve um papel muito positivo no estabelecimento do tratado com a eliminação dos mísseis Pershing 1A.
Spiegel: A ogiva nuclear pertencia aos americanos, mas os mísseis eram alemães. Kohl declarou que os mísseis poderiam ser destruídos caso Estados Unidos e Rússia chegassem a um acordo a respeito da destruição dos mísseis de alcance intermediário.
Gorbatchov: Se Kohl não os tivesse dispensado, nós não teríamos assinado.
Spiegel: Houve resistências às suas políticas de desarmamento dentro da elite do governo soviético?
Gorbatchov: Todos os membros da liderança na época entendiam a importância do desarmamento. Todos os principais políticos tinham experiência e uma visão sóbria das coisas. Pense no ministro das Relações Exteriores, Andrei Gromyko...
Spiegel: ...cujo apelido era "sr. Nyet" no Ocidente, por causa de suas táticas duras de negociação...
Gorbatchov: ...mas que como todos os outros, entendia quão perigosa era a corrida armamentista. No topo, todos estávamos unidos na época em colocar um fim nela.
Spiegel: Como os tratados de desarmamento se materializaram sob sua liderança?
Gorbatchov: A União Soviética tinha um sistema rígido e claro para a preparação das decisões do Politburo (Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética). Elas aconteciam por meio dos chamados Cinco, um comitê composto por representantes das agências e especialistas relevantes. Nós levávamos em consideração as posições de nossos parceiros de negociação sem ameaçar a segurança de Estado da União Soviética. O Politburo pesava as propostas e então emitia diretrizes às nossas delegações de negociação e também para mim, o secretário-geral e posteriormente presidente, para as reuniões de cúpula. Isso aconteceu antes de Reykjavík em 1986, de Washington em 1987 e outras reuniões. O Politburo, por sua vez, se apoiava nas propostas de especialistas, que então revisava e discutia.
Spiegel: A meta de um mundo livre de armas nucleares ainda pode ser atingida hoje?
Gorbatchov: É a meta correta, de qualquer modo. Armas nucleares são inaceitáveis. O fato de poderem eliminar toda a civilização as torna particularmente inumanas. Armas como essas nunca existiram antes na história e não pode ser permitido que existam. Se não nos livrarmos delas, cedo ou tarde serão usadas.
Spiegel: Nos últimos anos, surgiram várias novas potências nucleares.
Gorbatchov: Esse é o motivo para não esquecermos que a eliminação das armas nucleares é a obrigação de todo país que assinou o Tratado de Não Proliferação. Apesar de a América e a Rússia terem, de longe, os maiores arsenais à disposição.
Spiegel: O que o senhor acha da teoria citada com frequência de que a destruição mútua assegurada impede as guerras nucleares?
Gorbatchov: Há uma lógica perigosa nisso. Aqui está outra questão: se cinco ou 10 países forem autorizados a ter armas nucleares, então por que não 20 ou 30? Hoje, poucas dezenas de países contam com os pré-requisitos técnicos para fabricação de armas nucleares. A alternativa é clara: ou passamos para um mundo livre de armas nucleares ou teremos que aceitar que as armas nucleares continuarão proliferando, passo a passo, pelo globo. E realmente podemos imaginar um mundo sem armas nucleares se um único país possuir tantas armas convencionais a ponto de seu orçamento militar superar o de todos os outros países somados? Esse país desfrutaria da supremacia militar total caso as armas nucleares fossem abolidas.
Spiegel: O senhor está falando dos Estados Unidos?
Gorbatchov: Você disse. É um obstáculo intransponível na estrada para um mundo livre de armas nucleares. Esse é o motivo para termos que colocar a desmilitarização de volta na agenda da política internacional. Isso inclui uma redução dos orçamentos militares, uma moratória no desenvolvimento de novos tipos de armas e uma proibição da militarização do espaço. Caso contrário, as negociações para um mundo livre de armas nucleares serão pouco mais que palavras vazias. O mundo então se tornaria menos seguro, mais instável e imprevisível. Todos perderão, inclusive aqueles que agora buscam dominar o mundo.
Spiegel: Há um risco de guerra entre a Rússia e o Ocidente devido à crise na Ucrânia?
Gorbatchov: Nós chegamos a uma encruzilhada nas relações entre a América e a Rússia. Muitos já falam sobre uma nova Guerra Fria. As negociações entre ambas as potências em torno de problemas globais importantes praticamente foram colocadas no gelo. Isso inclui a questão do desarmamento nuclear. A confiança, o capital que trabalhamos tão arduamente para construir, foi destruída.
Spiegel: O senhor acredita que há risco de uma guerra nuclear?
Gorbatchov: Estou muito preocupado. O atual estado das coisas é assustador. As potências nucleares ainda possuem milhares de ogivas nucleares. Armas nucleares ainda estão posicionadas por toda a Europa. O ritmo da redução dos arsenais desacelerou consideravelmente. Estamos testemunhando o início de uma nova corrida armamentista. A militarização do espaço é um risco real. O risco de proliferação nuclear é maior do que antes. O Tratado Abrangente de Proibição de Testes Nucleares nunca entrou em vigor, principalmente porque os americanos não o ratificaram. Isso teria sido extremamente importante.
Spiegel: O senhor acha que a Rússia voltará a usar suas capacidades nucleares como moeda de barganha nas relações internacionais?
Gorbatchov: Nós temos que ver tudo em contexto. Infelizmente, formulações reapareceram nas doutrinas militares das potências nucleares que representam uma recaída à linguagem anterior à declaração soviética-americana de 1985. Nós precisamos de uma nova declaração, provavelmente por parte do Conselho de Segurança da ONU, que reafirme que a guerra nuclear é inadmissível –nela não há vencedores.
Spiegel: Um mundo sem armas nucleares não é apenas um sonho bonito?
Gorbatchov: Independente de quão difícil seja a situação, nós não devemos nos resignar ou entrar em pânico. Em meados dos anos 80, não havia falta de pessoas que achavam que era impossível deter o trem para o inferno atômico. Mas então conseguimos muito em um espaço de tempo muito curto. Milhares de ogivas nucleares foram destruídas e vários tipos de armas nucleares, como os mísseis de alcance intermediário, foram eliminadas. Nós podemos nos orgulhar disso. Nós realizamos tudo isso juntos. Deveria ser uma lição para os líderes atuais, para Obama, Putin e Merkel.
Mikhail Gorbatchov nasceu em 1931, na localidade rural de Privolnoye, no norte do Cáucaso. Ele se tornou membro do Partido Comunista soviético aos 21 anos e iniciou uma carreira como funcionário público. De 1985 a 1991, ele serviu como secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, o homem mais poderoso do país. Com suas políticas de "glasnost" (abertura) e "perestroika" (reestruturação), ele deu início ao fim da União Soviética e da Guerra Fria. Ele recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1990 por seu trabalho histórico.
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