Ensinar uma história de sucesso devia ser fácil? Na Coreia do Sul não é
06 DE DEZEMBRO DE 2015
Leonídio Paulo Ferreira
Centro de Seul assistiu a uma gigantesca manifestação em novembro contra as políticas educativa e laboral do governo
![http://static.globalnoticias.pt/storage/DN/2015/dn2015_big/ng5350729.JPG](http://static.globalnoticias.pt/storage/DN/2015/dn2015_big/ng5350729.JPG)
Governo diz que manuais são enviesados para a esquerda e quer impor um. Oposição acusa os conservadores de luta ideológica
Quando se fala do sistema educativo sul-coreano costuma ser para elogiar, afinal nos testes internacionais os alunos surgem sempre no topo. Mas por estes dias, os livros escolares tornaram-se um foco de polémica na Coreia do Sul, graças ao projeto governamental de criar um manual único para o ensino da História, criticado pela esquerda. Entre os temas divisíveis estão o relato da colonização japonesa, a visão da guerra entre as Coreias de 1950-1953 e o legado de Park Chung-hee, assunto picante por ser o pai da atual chefe do Estado.
"O governo quer os manuais de história escritos com base em factos objetivos de forma que os jovens possam ter uma visão equilibrada da história", afirmou o ministro da Educação, Hwang Woo-yea, ao Chosun Ilbo. E para contrariar a ideia de que o governo conservador pretende reescrever a história nacional a seu bel-prazer, é garantido que uma equipa de 20 a 40 historiadores será envolvida no projeto. Outro ministro declarou que o objetivo é garantir que seja ensinada "a orgulhosa história da Coreia do Sul, que alcançou tanto a democratização como a industrialização no mais curto espaço de tempo da história mundial", uma referência ao salto do país em meio século, de quando era tão pobre como alguns Estados africanos até hoje, em que surge em 15.º no índice de desenvolvimento da ONU.
Múltiplas interpretações
A contestação não vem apenas da oposição, mas também de círculos académicos. "Porque deverá haver só uma versão num manual escolar? Precisamos de múltiplas visões para que os alunos possam escolher. A história pode ser objeto de múltiplas interpretações", disse à BBC Chung-In Moon, da Universidade Yonsei, em Seul. E, segundo o Chosun Ilbo, os críticos afirmam que qualquer enviesamento para a esquerda ou falta de rigor nos manuais é culpa do Ministério da Educação, que não os fiscalizou bem.
Até há poucos anos havia só um manual de História, tradição que vinha dos tempos ditatoriais e que se manteve depois de a Coreia do Sul se democratizar a passos acelerados na década de 1980. Depois foi entregue à iniciativa privada a produção, com oito editoras a criarem manuais que podem ser escolhidos pelas escolas. A intenção é que a partir de 2017 volte a haver um só manual, sem as tais "distorções".
Um ministro chamou a atenção para que um dos livros em uso pelos alunos classifica a Coreia do Norte de ditatorial apenas duas vezes, enquanto usa o mesmo termo 28 vezes para falar da Coreia do Sul. Divididas desde 1945, as duas Coreias começaram por ser ditaduras, mas enquanto a Norte se perpetuou a dinastia comunista dos Kim, a Sul existe hoje um país que o Democracy Index da Economist coloca em 21.º, entre o Japão e a Espanha.
Segundo a imprensa sul-coreana, uma dezena de universidades disseram já que vão boicotar o projeto. E a Associação para a História Moderna e Contemporânea da Coreia declarou nada querer ter que ver com este projeto da administração liderada por Park Geun-hye.
Apesar de contar com um primeiro-ministro, o sistema sul-coreano é presidencialista e a senhora Park, eleita em 2013, é que manda. Segundo o Financial Times, o manual único também gera polémica porque a presidente é acusada de querer dourar a imagem do pai, que governou entre 1961 e 1979, até ser assassinado. Hoje, o seu legado é misto, com a memória de ser um ditador viva mas também reconhecido o contributo para tornar o país da Samsung e da Hyunday um caso de sucesso.
Do Japão ao Texas
Na Ásia Oriental, estas polémicas com os manuais são comuns. Têm muito que ver com a forma como as sociedades olham para o seu passado recente. No Japão, o debate costuma ser sobre o modo como é descrita a política imperialista que levou à Segunda Guerra Mundial. Os historiadores conservadores defendem que o país não se limitou a ser um invasor e até enfrentou o colonialismo europeu.
Curiosamente, esta polémica na Coreia do Sul coincidiu com a denúncia por um estudante do Texas de que um livro de Geografia chamava "trabalhadores" aos escravos trazidos para os Estados Unidos. A editora já mandou rever os textos, mas o The New York Times publicou uma crítica arrasadora intitulada "Como o Texas ensina a História".
O historiador francês Marc Ferro tem um livro chamado As Falsificações da História, em que denuncia múltiplos casos de manipulação do passado. Nas ditaduras é regra. Mas mesmo nas democracias - como a Coreia do Sul, o Japão ou os Estados Unidos - o ensino da História pode transformar-se em terreno de batalha ideológica.
http://www.dn.pt/mundo/interior/ensinar ... 17421.html