O ISLÃ CONTRA O TERRORUma reunião entre xiitas e sunitas condena a violência fundamentalista
Por Roberto Cattani
Segunda-feira 4 de julho, em Amã (Jordânia), as maiores autoridades espirituais sunitas e xiitas e 180 entre os mais importantes acadêmicos e religiosos de 40 países islâmicos emitiram uma fatwa (edito religioso), que pode representar uma reviravolta inédita no mundo islâmico.
Onipresente.
O aval do líder espiritual Al-Sistani põe em xeque o extremismo
A fatwa de Amã (que poderíamos chamar de “mãe de todas as fatwas”, com hipérbole árabe) condena e proíbe quem quer que seja de emitir uma fatwa sem ser autoridade religiosa reconhecida e autorizada. Isso quer dizer, por exemplo, que as (muitas) fatwas lançadas por Osama bin Laden, Zarqawi e seus pares, convocando os muçulmanos do mundo inteiro a matar os “Cruzados”, mesmo sendo mulheres e crianças, daqui para a frente não têm valor algum para os crentes muçulmanos.
Pode parecer uma questão puramente teórica, significa, porém, que os xeques fundamentalistas dispostos, toda sexta-feira, nas mesquitas do mundo inteiro, ou pela internet, que conclamam os fiéis para a Jihad, não poderão mais fazê-lo sem incorrer nas sanções dos superiores e o risco concreto de demissão.
Durante décadas, as autoridades espirituais muçulmanas foram completamente omissas, e não tomaram nenhum tipo de posição em relação ao fundamentalismo e ao terrorismo islâmico. Assassinos matavam em nome de Alá, terroristas decretavam sem empecilhos a Guerra Santa, falsos líderes espirituais condenavam à morte a quem quisessem, justificando-se com versetos do Alcorão, e ninguém objetava nada.
O mundo muçulmano, por não ter um clero claramente definido e centralizador, sempre foi avesso às posições autoritárias do ponto de vista ético, deixando bastante liberdade na interpretação da conduta individual. Isso torna ainda mais importante o decreto emitido na semana passada, que toma uma posição clara, firme e fundamentada em relação à anarquia que predominava no Islã nos últimos anos, levando a interpretações cada vez mais aberrantes e extremadas.
Um segundo aspecto extremamente importante da fatwa de Amã é a proibição para os muçulmanos de declarar apóstata qualquer outro muçulmano. Para se entender a importância dessa medida, observar que o embaixador egípcio no Iraque Ihab al Sharif foi condenado à morte na semana passada por ser “apóstata”. E que são consideradas apóstatas até a família real saudita ou o governo egípcio, por colaborarem com o Ocidente. Para os terroristas que se dizem islâmicos, a “única justificativa ideológica possível” para matar outros muçulmanos é declará-los apóstatas. É o que fazem a Al-Qaeda, os grupos mais sangrentos da resistência iraquiana, os chacinadores do Grupo Islâmico Armado argelino (GIA), os homens-bomba do Hamas, os guerrilheiros filipinos do Movimento Abu Sayyaf, os autores dos atentados de Bali, do 11 de setembro, de Madri, de Londres, e em geral todas as manifestações do fundamentalismo islâmico mais brutal e fanático, ligadas por um único fio condutor e uma única ideologia: o takfirismo (Takfir wal Hijra, em árabe), que, por sua vez, deriva de uma heresia moderna do islamismo, o salafismo. Takfir em árabe quer dizer apóstata.
O salafismo vem deturpando os princípios tradicionais do Islã nos últimos 40 anos, abrindo o caminho para as aberrações dos atentados suicidas, das execuções coletivas, do ódio mortal contra cristãos e judeus, da destruição dos monumentos sagrados (não só de outras religiões, mas até do próprio Islã, como se pode ver em Meca), das mulheres cobertas da cabeça aos pés e proibidas de trabalhar e de estudar, da intolerância religiosa com as minorias e outros excessos, inexistentes no Islã tradicional.
O salafismo foi conquistando cada vez mais espaço no mundo árabe inicialmente e, depois, no resto do mundo muçulmano, e acabou suplantando quase totalmente os demais movimentos fundamentalistas mais moderados, como os Irmãos Muçulmanos (Ikhwan Muslimin). Hoje, pode-se dizer que pelo menos 15% dos muçulmanos do mundo (mais de 200 milhões de pessoas) são salafistas ou apóiam ativamente (com dinheiro e/ou proselitismo) o movimento – inclusive no Brasil –, mas a sua influência estende-se bem além desse número. A maioria dos salafistas não apóia diretamente o terrorismo, mas todos os terroristas (incluindo Osama bin Laden) e grupos armados muçulmanos atuais seguem o salafismo, e fazem parte de sua ala mais extremista, o takfirismo, que o especialista francês Roland Jacquard definiu como “um fascismo niilista muçulmano”.
O extremismo islâmico começou sua expansão internacional em 1979, com a invasão soviética do Afeganistão e a Revolução Iraniana. Os responsáveis diretos por seu fortalecimento, divulgação e expansão, que tencionava então conter a ameaça soviética e xiita no mundo muçulmano, foram a Arábia Saudita, que forneceu a ideologia, os fundos e os pregadores; o Paquistão, que forneceu a logística, as armas, a organização das escolas islâmicas (madrassas) e os campos de treinamento militar para os militantes; e os Estados Unidos, que, por sua vez, deram sua aprovação e participaram do planejamento da operação. Muitos dos mujaheddin afegães e dos militantes internacionais que lutaram contra os russos (como o próprio Bin Laden e muitos seguidores da Al-Qaeda) foram formados e treinados naquela época com a ideologia Salafi. A criatura acabou virando-se contra o criador, e para os EUA e seus aliados o movimento transformou-se num perigosíssimo golem fora de controle.
Os fundamentalistas armados viram na queda da União Soviética, depois do fracasso no Afeganistão, uma vitória das forças islâmicas, e resolveram continuar essa luta vitoriosa abrindo outras frentes: Bósnia, Albânia, Kosovo, Chechênia, Daguestão, Caxemira, formando o que alguns analistas chegaram a definir como uma Internacional Islâmica.
A fatwa de Amã, proibindo o abuso do termo takfir, desautoriza especificamente o takfirismo, e põe em xeque seus fundamentos islâmicos. “Qualquer um que siga as oito escolas jurídicas (as oito interpretações fundamentais do Alcorão e da Lei Islâmica) é muçulmano e ninguém pode acusá-lo de apostasia”, assevera essa fatwa. “Violência e terrorismo praticados por alguns grupos de ignorantes em nome do Islã e do Alcorão nada têm a ver com os princípios da nossa religião, e, por outro lado, oferecem aos não-muçulmanos a justificativa para nos julgar negativamente, interferir em nossa vida e invadir nossas terras”, concluiu o rei Abdullah da Jordânia, numa alusão bastante explícita.
As conseqüências da proclamação de Amã foram quase imediatas. Na sexta-feira, o Muslim Council of Britain promulgou outra fatwa, que decreta a perda, para os autores do atentado de Londres, de qualquer direito de serem considerados muçulmanos.
Independentemente dos resultados práticos da condenação espiritual emitida pela reunião de Amã, ela torna-se um marco histórico, pois é também a primeira vez, na história do Islã, em que há um acordo oficial, formal e unívoco entre sunitas e xiitas. Em Amã estavam presentes o xeque Mohammad Sayyed Tantawi, maior autoridade espiritual sunita, o grande aiatolá Al-Sistani, maior autoridade xiita, o grande mufti do Egito Ali Juma’a, o secretário-geral da Academia dos Doutores da Lei da Arábia Saudita, Habib Balkhouja, e o mais popular e famoso dos pregadores televisivos muçulmanos, Yusuf al-Qaradawi.