O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

Assuntos em discussão: Exército Brasileiro e exércitos estrangeiros, armamentos, equipamentos de exércitos em geral.

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O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#1 Mensagem por Clermont » Dom Ago 28, 2011 6:12 pm

ESPÍRITO DA FEB E "ESPÍRITO DO CAXIAS."

Por José X. Góis de Andrade, 1949.

DUAS MENTALIDADES.

Quando cheguei à Itália, senti logo que os soldados dividiam em dois o Exército Nacional: referiam-se à FEB como a um “novo Exército”, bem diferente daquele outro Exército que ficara no Brasil e que eles sempre ouviram chamar “Exército de Caxias”.

Esta divisão era mencionada, toda vez que os expedicionários estabeleciam comparação entre os métodos, costumes e princípios adotados no Brasil e os vigentes nos campos de operações na Itália.

Pretendemos analisar esta distinção, feita, aliás, em tom pouco lisonjeiro para o “Exército de Caxias”, buscando, ao mesmo tempo, uma explicação sincera e imparcial.

Adiantaremos que o Duque de Caxias – Patrono do Exército – não era bem interpretado e compreendido pelo soldado. Por quê? – Uma exaltação sem método psicológico fê-lo um símbolo inatingível. Os símbolos, embora alçados às alturas da glória, não devem perder a natureza humana que se identifica com aqueles a quem servem de paradigma. Do contrário, deixa de ser um símbolo pelo inatingível de suas qualidades, pela impossibilidade material de ser imitado.

Em todos os quartéis brasileiros, Caxias foi apresentado com um exagero tal que o homem comum não pode compreender. Para o soldado simples, cheio de fraquezas e falibilidades humanas, os traços da vida realmente predestinada do Duque de Caxias, aquela perfectibilidade realçada numa exaltação quase mística, tornou-se inimitável, inalcançável como símbolo. Surgiu o oposto do que se desejava obter: - Caxias era uma coisa impossível... Qual foi, então, o resultado? Todos nós o sabemos: para o soldado, “Caxias” é o oficial, o sargento, o praça exagerado, rigoroso em demasia. É o militar que vive com o dedo nos artigos do Regulamento, sem a tolerância da equidade. É o soldado “puxa-saco”, quando devia ser o contrário. Assim muitos dizem:

“Aquele tenente é um sujeito tesa” (isto é, rigoroso)

“Ah! Aquilo é um Caxias!”

Porém, não estará aí, a diferença notada e proclamada pelos pracinhas.

Procuremos, pois, a origem desta diferenciação que se fazia, entre FEB e o Exército Nacional, denominados o “Exército da FEB” e o “Exército de Caxias”.

A) Patriarcalismo no Exército.

O soldado brasileiro fôra sempre tratado com ares patriarcais. Velho hábito que vem dos primeiros tempos da nossa formação colonial, da escravidão.

Quem já morou no interior brasileiro ou nele nasceu, sabe que o “senhor de engenho”, o fazendeiro, o dono da terra, enfim, é uma espécie de comandante. Sua pose é militar. Sua palavra é um comando. O apelido de “capitão”, “major” e “coronel” substituía e substitui, ainda hoje, com menos freqüência, o nome próprio do senhor da terra. O de coronel, é presentemente, bem comum.

Além de serem esses títulos um substituinte do “doutor”, de tão grata importância – vício do bacharelismo – emprestam ao dono da terra uma ascendência hierárquica, uma posição militarizante. (Esta ocorrência não depende, somente, da antiga Guarda Nacional.)

Recordo-me das histórias que meu pai contava dos “capitães de mato” dos fins do Império, perseguindo os negros fugidos das senzalas. Ainda hoje, no Nordeste pronuncia-se com naturalidade um título militar mais modesto: - “cabo do eito” atribuído a um homem de confiança, que fiscaliza e comanda certo número de trabalhadores que de enxada em punho, avança pelo roçado a dentro, limpando a terra e abrindo as covas do canavial.

A nossa formação, desde a divisão das capitanias hereditárias, a forma de trabalho nos diferentes ciclos econômicos; a imensidão territorial desabitada; o vício escravocrata; as invasões vindas do mar; as penetrações pelas selvas virgens e povoadas de bugres e feras transformaram-nos em um povo de comandantes e comandados em que o cidadão é uma figura inexpressiva, e a liberdade menos um direito do que a tolerância do poder estatal. A nossa “revolução francesa” vem em golfadas de uma “tuberculose” que nem mata nem desaparece...

Cessada a escravidão, o trabalhador abandonado ao seu destino permaneceu tão rude, tão ignorante como o escravo. Manteve-se aquele aspecto militarizante de verdadeiros “Comandos Econômicos” cujo quartel era a “Casa Grande” e o alojamento, a “Senzala”. O dono da terra, comandante, protetor, autoridade e lei. Conservou-se, destarte, a herança do poder que esses senhores adquiriram (principalmente no Nordeste) desde o tempo das invasões e ataques de corsários, quando eles eram os chefes, os comandantes naturais dos habitantes. (Vidal de Negreiros, o lendário comandante da resistência à invasão holandesa no Nordeste, era um “Senhor de Engenho”). Dessas reminiscências ainda existem vestígios capazes de atravessar um século, no avanço da colonização futura dos sertões e florestas brasileiros.

Víamos, portanto, nos quartéis, o encontro dos mesmos elementos humanos de que constituíamos: o filho do “coronel” e os filhos dos trabalhadores, foreiros, agregados, respectivamente como comandante e comandados.

Do Império para cá, a liberdade fez progressos. O padrão de vida das populações em geral melhorou. Os direitos dos homens, mesmo em golfadas, vão se acentuando. Ninguém pode comparar a situação do lavrador e do operário de hoje com a de meio século. E isto não decorre do governo de “A” nem da bondade de “B”. É o fruto das necessidades humanas e o resultado de análises e divulgações de estudiosos. O Chefe do Governo em geral quando decreta estes direitos é quando toma conhecimento deles... É que a humanidade caminha para a frente.

No quartel, ontem como hoje, defronta-se a Nação, tal qual ela é, com os seus vícios, suas virtudes, sua pobreza e sues costumes. E como um reflexo da vida civil, a disciplina nas casernas trazia a marca da disciplina coletiva. O poder do superior hierárquico, semelhante ao poder do senhor de terras. O elemento disciplinador dominante era o medo, o receio do castigo, o estabelecimento, enfim, de um modus vivendi desigual para uns e para outros; a condição de “senhor” e de subordinado com as suas regalias com as suas regalias e desvantagens.

Desta forma expulsamos invasores, construímos um império, mantivemos a unidade nacional, defendemos nossas fronteiras e erguemos cidades imponentes junto ao mar. Essa foi a realização do passado. O presente não conseguiu, ainda, chegar a uma definição. Não logrou a libertação do homem da gleba, nem consolidou as liberdades dos cidadãos na formação de um poderoso Estado Democrático. (E o homem abandona a terra e caminha para o mar num movimento de retorno e se transforma em um problema citadino de desequilíbrio urbano e político.)

Esse patriarcalismo nacional é causa e ao mesmo tempo efeito de uma pobreza. Ocioso seria trazer números e dados (nem o tempo me permite) que comprovassem a miséria coletiva dos nossos patrícios. A maior parte desconhece os elementos mais primários da vida civilizada, como o dentifrício, a escova de dentes, o papel higiênico, a água corrente, instalações verdadeiramente sanitárias. Já se disse que no Brasil nem os ricos sabem comer. A subnutrição e como resultado, as doenças (poder-se-ia dizer também: - e os remédios) oferecem esse quadro de um povo sem compleição física, aéreo, que vive de esperanças. (A esperança no jogo do bicho e na loteria, pode ser um índice de grande insatisfação popular. Da mesma forma a procura do êxito fácil, dos negócios rápidos, efêmeros e rendosos como uma loteria...)

O que poderia ser, então, o Exército Nacional? O Exército brasileiro? Um reflexo de seu povo, sem mais nem menos.

Foi, precisamente, ao vivê-lo e, depois, ao ingressar na Força Expedicionária Brasileira, que o pracinha sentiu as mudanças de ambiente, costumes, princípios e métodos. Mediu-os, comparou-os. E numa síntese, separou de um lado o seu conhecido “Exército de Caxias” e do outro uma fração desse mesmo Exército, que era a FEB, diferenciando-se daquele, como a sua escolhida, a sua preferida, a eleita.

Ao tentar uma explicação deste fato, procurei expor as razões desta diferenciação, dentro dos seguintes títulos:

I - Diferenciação técnica.

II - Diferenciação geográfica.

III - Diferenciação disciplinar.

IV - Conclusões.

Vejamos:




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Re: O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#2 Mensagem por Clermont » Dom Ago 28, 2011 6:13 pm

I - DIFERENCIAÇÃO TÉCNICA.

A) Padrão brasileiro.

Qualquer exército reflete a vida de uma nação. O Exército Nacional é um centro de atividade, trabalhos, de luta de sofrimentos e decepções.

O homem ao chegar ao quartel é selecionado fisicamente. Mas, em geral, é um cidadão de um povo por se fazer e organizar. Os selecionados fisicamente, em larga percentagem, são analfabetos ou semi-analfabetos. A grande parte vai tomar contato com uma máquina, seu funcionamento, conservação e limpeza, ao empunhar um fuzil ou metralhadora. Vivemos nesta Era Atômica a Era da Enxada, do querosene, dos utensílios de barro (fogão, panelas, etc.). O padrão de vida é baixo. O índice de disciplina social, da educação, é aquém do médio. Não formamos , ainda, mesmo entre as camadas dirigentes, uma compenetrada consciência da Legalidade, isto é, do respeito verdadeiro à lei e seus ditames. O problema legal e moral surge a cada passo nas violências de autoridades na intervenção armada contra Governo legalmente constituído, no “sabe com quem está falando?”, na irresponsabilidade, na linguagem obscena, etc. É mal generalizado. Vivemos de aparências e nos irritamos se o estrangeiro ou um dos nossos comenta ou pretende terminar este sonho vicioso. Enganamos a nós mesmos, porque o estrangeiro sabe o que somos e o povo, ao contar a sua vida, a sua luta, o seu trabalho, em toda parte, reúne um repositório pessimista e deprimente.

Assim, o Exército ao receber o conscrito, tem que moldar antes um cidadão. Isto é um mal para aquele e para este. Para aquele, porque o militar faz do “paisano” uma idéia pouco lisonjeira. Para este, porque o cidadão de nível médio ou superior, ressente-se do Exército, do seu ambiente, da sua capacidade.

A convocação obrigatória, há-de melhorar o nível humano do Exército. Entretanto, só o tempo poderá dizer do resultado final. Pois para cada jovem bem educado ou educado no seio da família, existem vários ao léu do seu destino, na promiscuidade das favelas, dos mocambos, das casas de cômodo e dos campos. Este fato já é por si um problema para a nossa educação e um impulso para a indisciplina social dos grandes centros urbanos do país. Demais, o cinema ao apresentar o outro lado da vida norte-americana, o rádio, e certa imprensa, sensacionalizam o crime, a brutalidade os maus princípios divulgando uma ficção de folhetim mórbido, entre um povo que ainda está por se educar.

De qualquer forma, a nação brasileira vai se encontrar nos quartéis mais democraticamente. Embora as Forças Armadas recebam pelos seus ministérios as maiores dotações orçamentárias do Brasil, elas vivem e trabalham num regime de carência e pobreza técnicas e materiais.

A instrução é mais empírica. Lembro-me de que para se tocar numa bússola era uma dificuldade. Para um tiro de morteiro, poucos eram os privilegiados. E assim por diante. Inútil será dizer que só se aprende uma arte ou ciência pela prática. E será preciso sabê-la, dominá-la completamente, de forma a ser exercida com eficiência, mesmo em situações difíceis.

A higiene, a alimentação e a instrução prática, são, por assim dizer, o “calcanhar de Aquiles” do Exército. Nos quartéis, contam-se anedotas que ainda recordo, refletindo estes ângulos. Às vezes são adaptações de outras talvez já publicadas, mas não resisto ao desejo de reproduzi-las:

“O recruta está de sentinela, com o espírito fervendo de instruções regulamentares, quando sente uma estranha coceira. Leva a mão à altura do peito e recolhe o “insubmisso” na ponta do dedo e depois de o examinar, tira o casquete e sentencia militarmente, conduzindo o “insubmisso” outra vez à cabeça:

- Vorta pra teu quarté, desertor!...”

Às vezes, é o praça velha a personagem do anedotário.

“Naquele dia, em que se comemorava uma data nacional, um bom coronel entrou, de surpresa, num rancho de praças e passou a observar a comida. De repente, um soldado, lá no canto, começou a dizer:

- Vixe! Tô cego! Não tô vendo nada!...

- Todos se voltaram para o praça e o coronel, seguido do oficial do rancho, dirigiu-se para ele.

- Que é que tens, soldado?

- Tô cego, meu coroné!

- Você está cego?!

- Eu acho que tô. Porque eu sei que este pão tá mantegoso. Mas eu não vejo, meu coroné! Só posso tá cego!...

Na anedota, o coronel compreendeu a piada e disse para o oficial:

- É preciso aumentar a manteiga no pão!

Com o advento de nova festividade, passados meses, o excelente coronel voltou a visitar o rancho dos praças. E ao chegar ali, dirigindo-se ao oficial perguntou-lhe:

- Onde está aquele soldado gaiato, que disse que estava cego?

O oficial que não se esquecera mais do “praça velho” mencionou logo o seu número, que o coronel “cantou”. Do lado de lá, o “praça velho” respondeu logo:

- Pronto, meu coroné!

- Você ainda está cego, soldado? Perguntou-lhe o coronel com um ar de riso.

- Não senhor, meu coroné. Eu agora, tô inté vendo demais.

E colocando defronte dos olhos a sua fina fatia de queijo, acrescentou:

- Eu tô inté vendo o meu coroné, daqui!?

Nos alojamentos, o parasita é um inimigo intermitente, porém, o que se pode esperar de homens que vêm das favelas, dos mocambos, das casas de cômodos? Quem não sentiu, não uma, porém muitas picadas de pulgas nos cinemas – não digo do Interior – mas da Capital Federal? Por ventura as moscas não aparecem nos melhores restaurantes? Se assim é, por sua vez, o soldado não sente grande escrúpulos em se atirar de borzeguins sobre os cobertores, em momentos oportunos, e até com estes lustrar aqueles.

Que mal há em jogar as pontas do cigarro no pátio do quartel, na privada ou no chão? A prova é que as encontramos nos corredores das repartições públicas e nas áreas e terraços dos edifícios de apartamentos.

O cigarro não é nada. Pior é o escarro...!

O soldado tem justo receio da tampa da privada. Senta-se? Não. Pisa sobre ela. Aliás, contaram-me que na antiga Escola de Guerra (na atual não sei) chama-se a isso, “ação de aeroplano”. Mas o leitor não conhece as privadas da maior parte dos nossos restaurantes? Das nossas repartições? Nunca escutou dizer que há quem se utilize das toalhinhas higiênicas dos lavatórios para brunir os sapatos?

Nos quartéis, os objetos de uso individual devem ser guardados em armários, trancados a chave. O furto é freqüente. Não se deve “dar sopa”, quer dizer, deixar as coisas à vista. O ato de furtar tem no quartel um nome mais tolerável, que é “desapertar”.

Mas eu conheço várias pessoas que se consideram de alta classe e que ostentam em suas casas, a título de curiosidade, coleções de objetos por elas furtados de hotéis, navios, restaurantes, etc...

Em Pernambuco, uma firma de renome nacional organizou uma festa em suas propriedades e convidou centenas de pessoas entre a nata social do país. Aos convivas apresentou o que de mais fino possuía.

Os prejuízos foram vultosos devido aos furtos de objetos domésticos de grande valor.

Se fôssemos até à cozinha, em alguns quartéis, não haveríamos de gostar. Carne exposta... moscas... panos sujos... detritos... o diabo!... Também, eu não entro no interior de uma cozinha da maior parte dos restaurantes da cidade. É melhor não ver. Demais, de onde vêm os cozinheiros? A maior parte dos cozinheiros não acredita nem tem tempo para pensar em micróbios. Sujo é aquilo que aparece preto, manchado, escuro. Ora, se o micróbio nem se vê?... Que mal faz? Depois, a comida é feita em grande escala e não há aparelhagens modernas para lavar e esterilizar pratos, etc. E se houvesse, quantos meses funcionariam elas? Para um exemplo, bastam as portas dos elevadores: fecham automaticamente e por isso não devem ser forçadas. Poucos resistem à tentação de não deixá-las vir calmamente. Puxam-nas. E quando elas se relaxam e não fecham o jeito é esperar porque o elevador está parado. Mas ninguém imagina que isto é conseqüência da pressa em favor da qual se violentou a máquina. Pelo contrário, vingam-se do porteiro ou do elevador... É a ignorância que gera a indiferença e o desrespeito na utilização mecânica.

Voltando à higiene para termos uma idéia bem simples, basta lembrar que as marmitas dos soldados (e dos próprios cadetes) em manobra, eram “limpas”, esfregando-se nelas farinha ou areia... Este costume, visto com naturalidade pelos comandantes e médicos, era, com certeza, a causa dos constantes desarranjos intestinais nos acampamentos.

Certa vez, ouvi de um capitão que os desencontros e retardos ocorrentes nas manobras, eram testes para os oficiais e soldados. O bom capitão encontrou uma desculpa singular. Penso, todavia, que a origem era outra. O hábito, a repetição de um ato é que estabelece a prática. Nós somos empíricos, por deficiência técnica. É precisamente por isto que a improvisação nos domina. Cada cabeça, cada sentença; da disciplina social mecânica é que resulta o progresso, o movimento harmonioso, a dinâmica dentro de tal equilíbrio, em que cada um age como uma peça de máquina, sem excessos que superem a sua resistência, sem atritos que o desgastem, sem inércia que prejudique o movimento coletivo.

As deficiências do Exército são os reflexos das deficiências de toda a Nação. A falta de água, de transporte, de provimentos etc., em tempo e horas certas, não pode servir de teste, senão em determinados momentos já estabelecidos como experimento de iniciativa ou resistência física dos comandantes e dos comandados. Entretanto, ante as nossas deficiências naturais, estes testes precisam ser comedidos, porque eles virão por si mesmos na hora H... Se em simples treinamentos as coisas não andam e não chegam, no combate não andarão nem chegarão, porque o combate é por si mesmo a desordem, o imprevisto, a dificuldade. A resistência do homem tem limites, que ultrapassados resultarão em desgastes e no aniquilamento. Poupá-la, economizá-la, esperando sempre um momento posterior em que ela será exigida no máximo. Por isso é que o regulamento chega até às minúcias, do cuidado das meias limpas, das unhas aparadas, do repouso nas marchas, etc.

Lembram-me, agora, aquela noite de frio em uma acampamento na Colina da Torre (frio que em comparação com o da Itália era um grande calor...). Já era tarde e o soldado tentava, inutilmente, conciliar o sono. Não tinha manta para se cobrir. Mesmo naquela casa, entre paredes, ele se queixava:

- Não posso dormir desse jeito! Isto é um horror. Nem uma manta me deram!?

Do outro quarto, uma voz entrou em conversa com o soldado:

- Tá sem manta? Tome uma.

- E você tem?

- Tenho duas. Tome uma.

O praça foi apanhar o cobertor no quarto vizinho e mal-humorado disse:

- Eu logo vi! Uns com tanto e outros sem nada! Esta é boa!

E ficou cinzento, ao acender a luz, quando deu com a cara do Comandante...

B) Padrão americano.

Um dia veio a guerra e nós tivemos que atravessar o Atlântico para lutar pela primeira vez na Europa.

Começamos a aprender, às carreiras, princípios e regulamentos do Exército norte-americano dentro de cujos quadros íamos lutar. Chegou aquele momento em que, já orientados pelo sistema americano, e com uma interrogação nos sentidos, embarcamos em perfeita ordem, em um grande transporte de tropas.

Depois de alguns dias, em alto mar, o pracinha caiu em si. Sentiu no transporte americano, uma profunda diferença. Eles foram encarregados dos trabalhos das cafetarias, desempenhando-se daquele serviço, como se fossem velhos conhecedores do assunto. Tudo saia a tempo e a hora. Tudo limpo e perfeito.

Os alimentos que subiam por elevador do compartimento de baixo, eram completados, divididos e servidos a milhares de homens em levas sucessivas. Aquela “cafetaria” para não fugir à estandardização americana, era um “rancho” naval mais completo, porém, nos moldes do barracão de rancho dos acampamentos, descritos mais adianta: cafetaria e balcão de um lado e do outro as mesas-bancos desmontáveis. Em vez de pratos ou marmitas de campanha, dos soldados, estes recebiam uma bandeja onde estavam moldados recalques destinados aos diferentes alimentos e sobremesa. Essas bandejas eram guardadas de forma que a última ficava rente ao balcão, enquanto as outras – permaneciam abaixo no embutido. Uma mola as impelia para cima, porém qualquer que fosse o seu número, somente a última afloraria à superfície metálica do balcão. Com os recalques, a bandeja valia por vários pratos, com a vantagem de ser um prato único facilmente adaptável como uma peça, à máquina que iria lavar e esterilizar simultaneamente com fortes jatos de água fervente.

Estas coisas mencionadas por acaso ao correr do teclado e muitas outras que omitiremos, eram objeto da curiosa observação do nosso pracinha que via em tudo novidades: - ordem, asseio, rapidez, eficiência. Nem lhe faltava a água gelada, em bebedouros, as privadas limpas, o banho, as notícias pelo alto falante, música e cinema.

Viram, dali, surgirem os mingaus, os pudins, os sorvetes, o presunto, ovos, leite evaporado, com vitamina “C”, café... E deviam comer tudo, porque, com exceção dos que trabalhavam, eles só tinham duas refeições. E comiam mesmo, embora de manhã. Um ou outro estranhava aquelas entradas, logo cedo, principalmente o carioca, pois este está acostumado exclusivamente a média (café e pão). Um destes disse:

- Logo de manhã, “seu” tenente? E eu lá sou sabiá pra comer pirão de manhã?

Daí por diante, o pracinha ia ter grandes surpresas. Não só a neve, as terras estranhas, o inimigo e a guerra com as suas asperezas. Não lhe faltaria, porém, o conforto material, que a técnica prodigiosa dos americanos lhe haveria de proporcionar.

Uma das maiores preocupações do Exército americano, refletindo o poderio econômico de seus naturais, era precisamente o cidadão de quem ele recebia não só o corpo e o espírito, mas, os meios, através dos impostos. O estado, como um mal necessário que os cidadãos admitem e sustentam, tributa-lhes, à guisa de compensação, o máximo respeito e devotamento. Ouvi na Itália, que o lema dos americanos era este:

“Um homem só se consegue em vinte anos. Uma máquina em vinte minutos. Estraguem-se as máquinas, poupem-se os homens.”

Assim, tudo o que possa fazer a benefício de seu conforto, o Exército americano idealiza e, principalmente, executa com perfeição. Nem os seus cidadãos, vindos de um padrão de vida superior, admitiriam o contrário. Naquele Exército, estavam todos. Generais e altas patentes perderam seus filhos em combate, muitos deles voluntários.

Poderíamos dizer, que esse lema dos norte-americanos sobre os homens e as máquinas, seria, ainda, uma face do seu utilitarismo. Melhor, porém, que admitamos terem eles, mesmo se apoiando no utilitarismo, chegado até o homem, para o proteger, instruir, elevar, respeitar. E esta crença na personalidade do homem e na sua liberdade, fundamentos da sua Constituição, espiritualiza-os. E talvez sejam eles mais espiritualistas do que os que vivem a exaltar o espírito do homem e menoscabar-lhes o corpo e as necessidades.

Continuemos, entretanto, a penetrar esse mundo de surpresas, nesta parte denominada diferenciação técnica, entre o “Exército de Caxias” e a FEB.

Vejamos, por exemplo, um acampamento americano:

Seria um lugar comum dizer que o trabalho e organização americanos são padronizados. Tudo tem um sentido lógico. Se não existem limpeza e conforto sem água, ela deve aparecer nem que seja transportada em caminhões, o que só ocorria por amor das conveniências da guerra. Eles souberam imitar para melhor os recipientes de couro usados pelos árabes, fabricando-os de lona e armados como uma barraca. (O sertanejo nordestino usava, ou usa também, pequeno recipiente de couro chamado “surrão”.)

Um acampamento americano é um aldeamento que poderia servir de exemplo para nós em matéria de penetração colonizadora. Consideremo-lo uma continuidade de companhias até à unidade: batalhão ou regimento. Os barracões das companhias estão alinhados de acordo com a área digamos, em linha reta. Por trás desse alinhamento, passa uma estrada interna de serviço. Para além, nos fundos desse alinhamento, máquinas trabalharam o terreno, aplainando-o e enchendo de pedras britadas. É o local de reunião de viaturas. Tomemos uma dessas companhias, a começar pelo seu barracão na linha da estrada interna, de trás do acampamento: - este barracão pré-fabricado, tem forma retangular sob o piso de cimento. Tem a armação de madeira. As paredes são de papelão alcatroado e adaptado a uma tela grossa. A cobertura tem duas águas e bem no centro se eleva um chalé com respiradouro telado. As portas são de madeira ou simples armação coberta e possuem molas que as mantêm constantemente fechadas. As trancas são de madeira, em forma de ferrolho. Nas paredes, a quase dois metros de altura, aberturas retangulares e em sentido longitudinal substituem as janelas; são fechadas com tela fina, o que permite a circulação do ar, entrada de luz exterior e proteção contra insetos. O acampamento é iluminado a luz elétrica gerada por um motor a gasolina.

Podemos dividir, internamente, o barracão em duas partes: a primeira, de dois terços ou mais da área, ocupada por mesas-bancos – é o rancho. (Em outras horas é, também, local de trabalho dos oficiais e sargentos da companhia). Na outra parte que se separa da primeira por uma grade-balcão, está a cozinha com três fogões a gasolina. A cozinha é servida por uma grande pia com água corrente. (Vi soldados americanos fabricando, no próprio local, uma dessas pias: - elas vem cortadas em uma folha única, porque como simples folhas de metal podem ser facilmente transportadas. No momento em que se quer transformá-las em uma pia, dobram-se as suas extremidades, como se se estivesse fazendo uma simples caixinha de papel. As junturas são soldadas a oxigênio. E eis a pia feita...) Na parte extrema da cozinha, comunicando-se com esta por uma porta com fechadura, está a despensa com as suas prateleiras para as provisões.

Na parte externa do barracão, na altura da cozinha, existe um piso cimentado em aclive, com uma bica, onde são lavadas as panelas-gavetas dos fogões e utensílios culinários. Ali mesmo, subterraneamente, está a fossa de gordura, onde se depositam os pequenos detritos arrastados pela lavagem na pia ou no piso em aclive, o que evita o entupimento das manilhas que escoam as águas servidas. Mais adiante, localiza-se a fossa de detritos, destinadas a recolher os restos de comida e as latas de conservas vazias, as quais eram previamente amassadas em um cepo.

Defronte desse barracão da companhia alinham-se, em duas fileiras, as grandes barracas de lona. Estas duas linhas de barracas formam, assim, uma rua central e perpendicular ao barracão, onde os soldados entram em forma para qualquer fim.

Na hora do rancho, por exemplo, toda a companhia, formada na rua central, dirige-se para o barracão, cada praça com a sua marmita e a caneca para o refresco. À proporção que vai entrando, o soldado recebe, no balcão da cozinha, a sua bóia e se dirige para as mesas-bancos. Terminada a refeição, cada um vai lavar a sua marmita. Dirige-se, primeiro, para um tonel ou fossa de detritos onde joga os restos dos alimentos. (Este tonel é logo recolhido.) Dali, o soldado entra outra vez em fila ante os três caldeirões de água fervente, onde concluirá a limpeza das marmitas. O primeiro caldeirão contém uma solução de água e sabão; o segundo, água clorada e o terceiro, água pura. As duas conchas da marmita e os talheres, presos pelos seus orifícios ao cabo-haste de uma das conchas, são mergulhados no primeiro caldeirão e esfregados com uma brocha ou bastão que tem panos presos na extremidade. (Esta brocha ou bastão não é anti-higiênica, porque deve estar sempre submersa na água fervente e não como nós já fazíamos: deixando-a de fora.) Depois de mergulhadas no segundo e terceiro caldeirões, as marmitas saem completamente limpas. Os talheres são colocados dentro das conchas que são fechadas por justaposição. A água dos caldeirões é aquecida por fogareiros a gasolina ou gás contido em tubos. (Jamais víramos tanta gasolina. Os nossos jeeps e caminhões encostavam nos postos americanos e o encarregado logo os enchia. Com ela funcionavam fogões, fogareiros, aquecedores d’água, motores para vários misteres. Quando eu fiquei, praticamente, com a responsabilidade do acampamento, em Francolise, onde estivera o 6º RI, com o Contingente “B”, recolhi, espalhados pelas barracas, e entregue ao capitão que nos veio comandar, para mais de cem camburões de gasolina. Aquela essência de cor avermelhada era como que o sangue de todos os movimentos.)

Esta prática de cada companhia cuidar do rancho, da cozinha e das provisões necessárias à mesma, tem na paz e principalmente na guerra, uma grande importância na alimentação dos soldados. São várias companhias a fiscalizarem o fornecimento. A comida, por ser em menor quantidade, sai melhor. E por fim, o comandante do batalhão pode aferir o grau de capacidade e qualidade dos alimentos, experimentando-os em dias alternados, o que resultará uma concorrência entre as companhias em favor do soldado.

Injustificável era e é a existência de duas alimentações diferentes – uma para os oficiais e outra para os soldados. Se o oficial não come a bóia do praça, como aferir-lhe o gosto e prestabilidade? A alimentação deve ser a mesmíssima.

O soldado brasileiro foi encontrar a novidade da alimentação comum a oficiais e praças, na FEB, ou melhor, com os americanos do norte.

As privadas do acampamento são construídas com o mesmo material dos barracões. As portas, como as destes, conservam-se fechadas por molas de aço. Possuem, também, janelas teladas e arejam e clareiam o seu interior. A privada, propriamente, é um grande e simples caixão com três ou seis lugares e respectivas tampas. O caixão é bem assentado sobre uma profunda fossa. Com o fim de evitar que se molhe o caixão, existe uma calha de papelão alcatroado, junto à parede, que se comunica com a fossa e que serve de mictório. As tábuas são lavadas com água, sabão e esfregadas com escovas que lá se encontram. Diariamente, um pó desodorante é posto na fossa e nas calhas, retirando-lhes todo o mau cheiro. (Este desodorante estava presente, mesmo nos avanços da tropa.) O papel higiênico, em quantidade, era o da melhor espécie, superior ao que se usa comumente no Brasil.

No acampamento há, também, banheiros com água fria e quente para todos. Os chuveiros abrem-se no puxar de uma corrente, de forma que, ao ensaboar-se, o soldado é obrigado a soltar a corrente, o que resulta no fechamento automático da torneira, economizando-se, destarte, a água. O aquecimento é feito por um aquecedor a gasolina, regulável à vontade, enquanto um pequeno motor, posto a funcionar no momento, pressiona a água.

Estes banheiros eram feitos com o mesmo material dos barracões. Seu piso é, também, cimentado, existindo, outrossim, um grande estrado de madeira, bancos laterais, cabides para roupa.

Nos acampamentos não há água estagnada, nem papéis, nem ponta de cigarros. Esta deve ser rompida pelo fumante, que sopra o fumo, e o pequeno papel é transformado entre os dedos numa bolinha tão insignificante que não chega para sujar os pátios.

Nas zonas suspeitas de malária, os soldados recebem mosquiteiros, um líquido para o rosto e mãos, líquido que repele os mosquitos, além de pílulas de atabrina, que deve ser tomada diariamente. Tubos de gás com DDT são encontrados no rancho, nas privadas, nos banheiros e nas barracas. (Cada um desses tubos, dos pequenos, era vendido aqui no Brasil, logo após a guerra, a Cr$ 100,00). Além dessas preocupações há placas avisando: DANGER – MALARIA (Perigo – Malária). Nas caixas de fósforos, no envoltório de certos conteúdos das rações de combate, havia instruções sobre o mosquito como transmissor da malária e os cuidados que devem ser tomados, principalmente ao amanhecer e ao entardecer.

Entretanto, sobre malária, tenho a seguinte recordação: - quando o 6º RI, deixou o acampamento de Francolise como a primeira tropa que regressava ao Brasil, eu fiquei, praticamente, como comandante do Contingente “B” ali deixado à última hora. (Nesta ocasião eu tive a minha maior experiência de comandar e disciplinar uma tropa heterogênea e mal satisfeita, com a responsabilidade de todo um acampamento de regimento cheio de material e invadido pelos italianos, cabendo-me protegê-lo, limpá-lo, sob o maior calor que já senti em minha vida). Verifiquei que ao partir o regimento, os mosquiteiros haviam sido recolhidos e a tropa estava sem proteção contra os mosquitos. Foi uma luta para conseguí-los. Fui eu mesmo buscá-los na intendência e os trouxe sob a minha responsabilidade pessoal, distribuindo-os. Antes de partir, recolhi-os e os devolvi.

Como surgissem mosquitos e houvesse um menor italiano doente de malária num raio de trezentos metros de onde estávamos, tomei as providências que me cabiam, comunicando o fato ao QG. Um dia, apareceu um médico no seu jeep, tomou apontamentos e examinou o menor. Ou porque os italianos pedissem para não levar o menor ou porque não houvesse um lugar para onde levá-lo, após tomar as anotações, o médico retirou-se e o doente lá permaneceu até que nós embarcamos.

No acampamento, existe, ainda, além de serviço telef6onico, alto-falantes que transmitem toques de corneta já gravados em discos, noticiários, ou se for oportuno, músicas.

A quantidade e variedade do material são extraordinárias. Duvido que exista no Brasil casa de gêneros alimentícios e outros artigos, que os possua em variedade e qualidade como os provimentos do Exército americano. Principalmente a qualidade causou-me admiração. Tantos os fornecedores do Exército como os responsáveis pela aquisição, são dignos de elogios. Sim, porque provisões de toda a espécie para quase doze milhões de combatentes norte-americanos e outros milhões de aliados, não são nenhum brinquedo.

Tudo era do melhor. E não havia distinção entre oficiais e soldados. Diariamente recebiam estes, um maço de cigarros americanos dos mais finos, “chiclets” , chocolate e fósforos.

Quando nós e nossos pracinhas começamos a receber blusões, field-jacquets, ceroulas compridas de lã, meias, luvas de lã ou couro, etc., deixamos de lado as peças correspondentes que leváramos do Brasil. Que acabamento! Nós havíamos recebido uma espécie de sobretudo de lã, pesadões à chuva e ao frio. Se chovia, encharcavam-se, tornavam-se pesados como chumbo. As conhecidas “japonas”. O field-jacquet, era um blusão bem apertado à cintura, revestido de lã por dentro e impermeável por fora; com um fecho eclair e além deste, botões; as mangas podiam ser abotoadas no pulso tornando-se bem apertadas; a gola protegia bem o pescoço. Eram amplos e leves. Com os pulsos, a cintura e o pescoço bem ajustado. Impermeáveis, prendiam o calor do corpo, aquecendo. Quem teria dúvida em encostar a “japona” para um lado?

As costuras das nossas roupas eram fracas. Quem pregou os botões de nossas fardas, há de ter pensado que o infante, ao chegar na Itália, transformar-se-ia numa matrona respeitável em viagem de descanso. E que, ao sentar-se sob os pinheirais, à falta de lã para o tricô, gostaria de pregar botões... Realmente, vi um dia com justificado mal-estar, caírem de uma vez, quatro botões de braguilha. É verdade que nós levamos um estojo de costura com tesoura, agulhas, botões e linha. Mas convenhamos que o infante tem muita coisa com que preocupar-se, para toda a hora viver pregando botões ou costurando os fundos da calça. A intendência deveria examinar as costuras e os botões das peças americanas, bem como a qualidade dos fechos-eclair das malas de lona. Ou os brasileiros são feitos para se abrirem por si mesmos? Assim já é ser muito aperfeiçoado... Nem oito nem oitenta...

Voltemos ao acampamento. A cozinha era bem aparelhada. Desde os utensílios dos mais variados, como facões, facas, machadinhas, abridores de lata, etc., até as mais diversas farinhas, óleos, gorduras, carnes de vários tipos, ovos em pó ou frescos, café, açúcar, feijões (havia uma conserva de feijão e carne enlatados, meat and beans, com que os nossos cozinheiros preparavam uma sopa a que os soldados, aportuguesando o nome chamavam de “mitibina”), presunto, queijo, manteiga, geléias, compotas de pêra e pêssego das mais deliciosas que já experimentei, salada de frutas enlatadas, avelãs, castanhas, nozes, tâmaras, laranjas (até bananas de Tenerife), balas e caramelos, chocolates, amendoim confeitado ou torrado, manteiga de amendoim, leite evaporado com vitamina “C” que era um creme delicioso, farinha de aveias, ou de cereais, sucos de tomate ou de vegetais, refrescos em pó, café enlatado vindo dos Estados Unidos, cervejas em lata, etc. Uma vez ou outra aparecia galinha ao molho pardo, congelada, excelente pitéu. Pelo Natal houve peru. Parecia um desperdício.

Naturalmente, houve oportunidade para os que apreciam esses momentos de fartura. Mesmo que não tivesse chegado para nós tudo que o soldado americano gozava – e muita coisa não tivemos – o soldado brasileiro, acostumado a uma vida de carência e apertos, nem deu pela falta.

Uma senhora brasileira, que estivera nos Estados Unidos durante a guerra, contou-me que tivera a impressão de que os soldados americanos eram umas criancinhas, filhinhos de papai... Isto porque em toda parte era só em que se falava: - caramelos para os soldados, distrações para os soldados, isto para os soldados, aquilo para os soldados.

Ela nem sabe com que conforto eles lutaram e como souberam lutar. Os sacos de dormir, as peles para o frio, os fields-jacquets, os blusões, os calçados, as galochas de neve, os campos de descanso, os teatros e cinemas, estes exibindo em primeira mão, filmes novíssimos; o alicate de unha, os fogareiros de campanha, os aquecedores, sabonetes, pentes, lâminas de barbear, cremes... As cantinas de retaguarda, vendendo tudo pelo preço de custo. Os hotéis com flores e música. Os campos de descanso onde o soldado entregava as suas vestes sujas e recebia outras limpas. E isto, indistintamente para oficiais e soldados, pretos, brancos e amarelos. Era sempre o mesmo lema:

- Estraguem-se as máquinas, poupem-se os homens!

Mas o povo e Governo americanos estavam certos. Aquele, pagou duros impostos, trabalhou dobrado, sofreu de verdade o racionamento, mas sabia que os filhos e filhas espalhados pelas cinco partes do mundo, eram bem tratados. Naqueles suprimentos, naqueles caramelos, naquelas tâmaras e doces, no peru do Natal, estavam o afeto materno da Nação ansiosa pela sorte do sangue do seu sangue. E por melhor que seja, a guerra é sempre a guerra. Não há conforto que possa suprir a perspectiva da morte a cada passo.

Não falo da guerra, da luta, dos avanços e dos abrigos dentro da neve, do frio cortante entrevando os membros (muitos perderam as pernas congeladas, nos chamados “ pés de trincheira”), das rajadas das metralhadoras, do tossir trágico dos morteiros, das arrancadas montanha acima sob o espoucar das granadas, da mina invisível e traiçoeira, pronta a explodir no apanhar de uma arma inimiga, no abrir de uma porta, no simples caminhar!...

Pode ser dito que tudo isto é um simples dever do cidadão. Direi, porém, que há ocasiões em que o dever é tão difícil de ser cumprido, tão doloroso e cruel, que não poderemos deixar de ver com respeito aqueles que o cumpriram. Aqueles que deixaram as suas cidades, os seus negócios, e interesses, a sua família e as comodidades da civilização, o que só podemos apreciar, realmente, quando bem longe delas.

Depois, não há dever mais terrível do que enfrentar a morte! Não se trata, porém, da morte certa, determinada, rápida, com despedidas e últimas vontades de quem praticou um crime, ou de quem, sem forças, sem saúde, não tem outro remédio. Refiro-me aos que, cheios de vigor, em geral escolhidos dentre os melhores e mais saudáveis, os mais fortes e cheios de vida – vão enfrentar a morte sem hora marcada, durante horas, dias, meses, que são eternidades!

Razão teve o povo dos Estados Unidos. Corretamente agiu o seu Governo. As altas patentes do Exército cumpriram à risca a vontade ambos. Sim porque é de admirar que em tão descomunais fornecimentos de provisões e materiais, tivesse havido tamanha honestidade na fiscalização e as indústrias fornecessem precisamente o melhor, o mais perfeito de suas produções.

O povo dos Estados Unidos esteva à altura do valor dos seus filhos. Vale a pena lutar por quem é capaz de compreender o preço de tamanho sacrifício.

É preciso que se diga, que todos esses alimentos eram exclusivamente americanos. Seria desnecessário dizê-lo. Entretanto, é bom esclarecer este ponto, porque a grande falta de tudo existente no Brasil durante a guerra, era justificada muitas vezes com a FEB...

Para se dizer a verdade, dos próprios presentes que famílias e organizações de senhoras patrióticas nos enviavam poucos chegavam ao seu destino. O cigarro brasileiro eu o vi no fim de tudo, após o desaparecimento inexplicável dos cigarros americanos. Mas a tropa recusou os nossos cigarros e tempos depois, tornaram a aparecer os de fabricação americana. (Quando isto ocorreu, surgiram boatos de quadros italianos eram comprados com cigarros... Um maço de cigarro americano era vendido à população por quatrocentas liras.)

C) Contato com o Hospital americano.

Esse cuidado do americano com o homem eu fui encontrar em outro setor: - o Hospital. Fui para um isolamento onde encontrei perto de cem soldados brasileiros. O comandante americano mandou e num instante foi improvisado dentro da própria sala um compartimento que passou a ser um quarto meu e de outro oficial. Diariamente colocava-se ali um rádio para nós e que só era retirado à noite. Pude apreciar a ordem, a limpeza e principalmente o trabalho metódico, sem exibições, sóbrio e disciplinado das enfermeiras americanas (duas tenentes), dois ou três sargentos comandados por elas e o capitão que fazia as visitas médicas todo dia. Diariamente às mesmas horas, os mesmos serviços eram feitos com exatidão. Desde a limpeza da sala, o forrar das camas, a observação dos doentes, até à alimentação. Reunidos ali estávamos pretos e brancos. Entretanto, apesar da separação racial do Exército americano, aquelas enfermeiras tratavam os nossos soldados de cor com uma dedicação de irmã de caridade. E quando um soldado daqueles deixava de alimentar-se, por fastio absoluto, elas já tinham anotado e, no dia seguinte, ele tomaria soro na veia. Fiquei, certa vez, a contemplar uma delas aplicando massagem em um nosso soldado preto e considerei como elas levavam a sério a sua missão desinteressada e extraordinária de enfermeira.

Quando eu e o aspirante Hilton chegamos lá, esses soldados estavam entregues a si mesmos. Ninguém falava português. Se bem que houvesse enfermeiras brasileiras ali, naquele hospital, ninguém foi lá.

Eu próprio senti a diferença enorme. Passei nesse hospital uns seis dias, por ter contraído caxumba. Mas as enfermeiras americanas notaram logo que eu estava com uma forte bronquite, resultante de um banho que, de quente se tornara gelado, ainda em Nápoles. Muitos camaradas que não passaram por esta, contraíram pneumonia. Eu apanhei somente uma violenta gripe e fiquei penalizado dos outros. A filosofia chinesa, ensina todavia, que não sabemos quando um bem é um bem ou um mal um mal... Pois os que tiveram pneumonia, tratados a penicilina, restabeleceram-se imediatamente, sendo encaminhados à famosa estação de Monte Catine, e voltaram de lá gordos e com a pela luzidia. O fastio, a tosse e por vezes a febre me arrasavam...

Entretanto um médico brasileiro (deve ter sido uma dessas infelizes exceções), gordo e balofo era indiferente à minha tosse à minha febre. Dizia que não era nada e me dava umas pílulas de codeína... Se me tratava assim, como trataria os soldados? Jamais tive tamanha repugnância por um semelhante.

Quando senti a dor num lado do rosto e fui me queixar ao sargento-enfermeiro de que a tosse estava me arrebentando um ouvido, o sargento disse logo: - É caxumba, tenente! Pensei que fosse o complemento da desgraça. Em cima de queda, coice! Mas foi a minha felicidade... Naquele dia, quando ia apresentar-me atrasado, por ter ido consultar o enfermeiro, o coronel estava medonho, pregando no momento, um sermão aos oficiais. Quando viu que chegava, parou e veio furioso. Eu seria o bode expiatório. Mas quando lhe comuniquei que estava com caxumba, ele recuou e disse: - Vá embora, por favor! Fique na barraca! Fique na barraca! Já havia mais de cem. Ele temia o contágio de todos. No dia seguinte eu estava no hospital... Ao notarem a minha tosse, as enfermeiras americanas tomaram conta de mim. Fui visitado e examinado cuidadosamente por um médico, também americano. Tomavam a minha temperatura três vezes por dia e em horas certas davam-me remédio. Aqueles seis dias entre os americanos foram a minha salvação. Que diferença!

Uma das enfermeiras fez questão de aprender várias frases portuguesas a fim de ser compreendida pelos nossos soldados: - Já arrumou sua cama? Está melhor? Etc. O “arrumou”, por mais que eu fizesse, era como se fosse escrito com um “r” só... E veio contar-me satisfeitíssima, que os soldados estavam entendendo o “seu” português...

De outra feita, ficamos malucos para saber o que elas queriam de nós. Andavam às voltas com um pracinha nosso. No meu pobríssimo inglês, compreendi que elas desejavam que ele fosse imediatamente a um lugar naquele mesmo momento. Elas não podiam sair dali. Entendi tudo, menos o lugar. Só depois vim a saber que era o Raio X, que em inglês dito invertido me parecia uma palavra estranha.

Todo o interesse que tomamos pelos nossos soldados, não passou despercebido ao Comando do Hospital. Nós cumpríramos, apenas, um dever não só como oficiais, mas como brasileiros. Conversando com eles, animando-os, contribuímos para a disciplina na hora dos exames médicos e no cumprimento do silêncio noturno. O comandante americano teve conhecimento desses fatos e quando íamos partir, veio pessoalmente despedir-se de nós e dizer que tinha apreciado muito a nossa colaboração. Confesso que fiquei satisfeito. Até aquele momento nos acostumáramos a ouvir somente arengas e recriminações. A começar do dia em que fui tirar a carteira de identidade para embarcar do Brasil. Desde que chegara ao quartel brasileiro, não tive mais tempo para nada: redigir telegramas, ofícios, receber tropas, fazer isto e apanhar o material na intendência, etc. Dormia no quartel. (Lembro-me que pulverizei o quarto, lençóis, colchões com tanto inseticida que tudo ficou branco! Quando eu me virava na cama, subia uma nuvem de pó!...) Os poucos momentos de folga, tão rápidos, mal davam para liquidar os meus negócios, em que estavam em jogo interesses alheios. Quando cheguei ao Quartel-General para apanhar a minha carteira de identidade e disse que tinha urgência, pois poderia embarcar a qualquer momento, o oficial superior, irritadíssimo, perguntou-me:

- Por que não veio antes?

Expliquei-lhe tudo.

- Negócios particulares, não é? Pois saiba: - a Pátria está acima de tudo! Primeiro a Pátria! E se remexeu nervoso na cadeira. Fiz um exame de consciência para saber se, abandonando as minhas comodidades, os meus interesses, para ir lutar no outro lado do mar, não estaria servindo à Pátria. Deus seja louvado! Se aquele oficial tivesse uma causa em minhas mãos, grande parte do seu patrimônio em jogo e eu saísse daqui sem entregá-la a outro advogado de confiança, sem explicar toda a marcha do feito e os estudos já concluídos, ele haveria de me chamar irresponsável. Mas, pimenta na boca dos outros é refresco...

Voltando, porém, ao hospital. Ao lá chegar, tinha levado na minha bolsa de lona (o “saco B”) o que havia de mais importante, com o justo receio de que me “desapertassem”. Na entrada, porém, os americanos tomaram tudo para guardar e desinfetar. Até a farda que levava tive que entregar. Fiquei só de pijamas. Recebi um robe de chambre, por sinal muito bom, escova de dentes, sabonetes, etc. Verifiquei, posteriormente, que o sistema era aquele. Achei graça em ver os nossos pracinhas e todos os doentes, metidos naquele “peça” com ares de grã-fino!...

E quando chegou o dia de deixar o hospital, pois não é que as minhas coisas estavam lá, todinhas!? Em compensação, quando terminou a guerra, o intendente me entregou o mesmo “saco B” e mais outro, abertos. Explicou-me que o fecho eclair não prestava e se abrira. O fato é que as melhores peças não estavam mais. Enfim, o saco estava muito apertado e por isso resolveram o problema desapertando-o...

D) A vida na linha de frente.

Antes de abandonarmos o hospital, o Capitão-Médico americano nos explicou que não deveríamos pegar em peso, nem subir ladeiras durante alguns dias, devido a certas conseqüências que a caxumba pode ocasionar no homem. Não sabia disto. Pois bem: mal chegamos de volta ao Depósito do Pessoal, de péssima lembrança, tivemos ordem de seguir para a frente. Nós não havíamos feito nem estágio para 2º Tenente nem curso de espécie alguma. Entretanto, no Depósito estavam perto de 200 oficiais. Eu desconhecia por completo o armamento americano, nem sabia desmontar as suas metralhadoras, pois estudáramos sempre a Hotchkiss e a Madsen. Confesso que fiquei preocupado, não pela minha morte, mas pela vida dos que ia comandar e pelo êxito da missão que me fosse destinada. Eu sempre imaginei um oficial apto a fazer qualquer coisa melhor do que qualquer dos seus soldados. Assaltavam-me a dúvida. Enfraquecido como estava, seria capaz de impulsionar o meu pelotão na escalada de uma montanha acima? Nem um relógio eu possuía. O meu, na véspera do embarque, arrebentara-se no assalto da multidão num trem da Central. Na Itália, embora me dissessem que os americanos haviam fornecido relógios automáticos, não os encontrei. Ainda tentei comprar no comércio italiano, porém custava, um relógio qualquer, cerca de vinte mil liras, ou sejam quatro mil cruzeiros. Caro de mais para minhas posses, na ocasião.

Mas, outra surpresa me aguardava. O front é o front. Ali os homens tornam-me mais simples, mais objetivos, mais amigos, mais solidários. O “farol” está na retaguarda. Até nas roupas. O lugar do infante é na frente.

Por toda parte, o Exército americano era dinâmico e uniforme. Máquinas poderosas deslocavam massas de terra para aterro ou para consertos de estradas. Até locomotivas eles levaram. Caminhões e mais caminhões passavam pelas autovias. Enormes autos-reboques, transportando carros de combate e mais carros de combate. Pontes montáveis, gigantescas, atravessando os rios sobre barcos de borracha. Aviões roncando nos céus. Gasolina como água. Vi, certa vez, jogarem-se barris e barris de petróleo numa estrada carroçável, para baixar a poeira. Munição era de dar com o pé!

Fiquei a pensar em tudo isto, nas padarias e lavandarias de campanha, no conforto geral, na abundância, nos serviços de comunicações, desde o homem subindo como um gato em árvores, com garras nos calcanhares, até o fio se desenrolando pela margem da estrada, vindo de um caminhão em disparada; desde o rádio transmissor da unidade até o rádio de mão do tenente; nas fitas brancas espalhadas no chão balizando os locais minados e em muitas e muitas outras coisas... Em todo este progresso da técnica de uma nação, dos civis laboriosos, emprestado de uma hora para outra ao Exército, capacitando-o a desincumbir-se de sua missão.

Para o soldado brasileiro, aquilo era inédito. Tudo se alterava da noite para o dia. E obrigatoriamente, teriam de discutir e comentar a respeito do que estavam testemunhando. Adaptaram-se de tal sorte, que aquele ambiente parecia rotineiro. Mas às vezes faziam comparações. E como o Exército do Brasil era tão diferente daquele outro Exército ali na Itália, tornava-se necessário delimitar os dois, da mesma forma que se diz hoje – a I Grande Guerra e a II Grande Guerra. Assim, surgiram na vida do soldado, duas épocas distintas na sua vida militar. Eles só diziam: - “No Brasil...” quando desejavam falar de assuntos gerais, na vida de paisano. Desde que se tratasse de fatos, comparações etc, da sua vida militar, então, era preciso esclarecer de que exércitos e tratava. Sim porque o soldado chama comumente de exército, a todo o Exército Nacional, como o marinheiro diz: - a Marinha, etc...

Das comparações dos métodos e de tudo o que eles estavam presenciando, o resultado lógico era a superioridade do presente sobre o passado militar. Ora, não se podia colocar em termos de comparação um exército dotado de todo o progresso técnico de que é capaz a civilização atual, como é a americana, com outro de uma nação atrasada de quase um século. A comparação pecava por si mesma. Mas o pracinha não podia compreender isto. Ele era brasileiro e não americano; estava servindo no “Exército” brasileiro da Itália como servira no “Exército” brasileiro do Brasil. Este, ele ouvira chamar sempre do “O Exército de Caxias”, tão seu conhecido e tão diverso daquele outro, da FEB, que não era mais o mesmo e, o pracinha, ao contar as suas histórias e críticas da vida de quartel, precisava:

- Mas, então, no Exército de Caxias...

- Qual o quê! Com o Exército de Caxias, o tedesco comia a gente!...

O Exército de Caxias, para eles, passou a ser engraçado.

Mas a diferenciação real entre os dois “exércitos” estava na técnica. No poderio de duas nações diferentes. Uma adiantada e outra atrasada. A americana e a brasileira. Na primeira, o homem vale mais do que a máquina e o lema é: - Um homem se faz em vinte anos. Uma máquina em vinte minutos. Estraguem-se as máquinas, mas poupem-se os homens. Na segunda, a máquina vale mais do que o homem e o lema é: - Esta máquina custa os olhos da cara! Poupe-se a máquina! E o homem? Raios que o partam!...




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Re: O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#3 Mensagem por Clermont » Dom Ago 28, 2011 6:15 pm

II - A DIFERENCIAÇÃO GEOGRÁFICA.

A) Os brasileiros descobrem a Itália.

A Itália influiu também, na crença do soldado que se julgava em outro exército diferente do que ficara no Brasil.

País milenar, podemos dizer que a Itália se constitui na maior parte de cidades entre campos cuidados, bosques e pomares.

O povo italiano sente de tal forma o peso da História, que me pareceu ver em cada italiano uma personagem de romance em pleno desempenho de seu papel. Afigurou-se-me este um traço divisório entre a cultura latina e a dos anglo-saxões. Estes, sonham menos, representam vivendo, os latinos, mais idealistas, vivem representando.

O italiano, como bom latino, é cioso desse desempenho. Não usa apenas a boca, mas os olhos, os braços, as mãos e até os ombros... Um dia, esperava minha vez de passar numa ponte de aço armada pelos norte-americanos sobre barcos de borracha, ligando as margens de um rio larguíssimo. Como só havia passagem para uma fila de veículos e o local era de difícil manobra, as duas extremidades da ponte estavam ligadas por telefone. Cada um dos guardas comandava o trânsito, informando ao outro a interrupção ou abertura do sinal, no seu lado. Quando cheguei, o telefone estava ocupado por um soldado americano. Tudo ia em perfeita ordem. Dizia duas ou três palavras terminada com o infalível “O.K.”, e os pesados veículos avançavam ou esperavam que avançassem os do lado oposto, sem a menor alteração. Não sei porque, foi o americano substituído por um italiano, o que deve ter acontecido, também, na outra margem. Começou o barulho: o homem discutia como se estivesse numa arenga política. O braço direito livre cortava o ar. A mão espalmada fazia circunvoluções, enquanto o queixo comprimia a garganta, a cabeça não tinha para onde virar, os ombros se alteavam em movimentos imprevistos e dentro em pouco foi uma confusão dos diabos na ponte! .. É, contudo, um grande povo, nascido para o trabalho, para a alegria, para a arte e para as belezas da vida. Em contato com ele, pisando terra estranha, vendo costumes diversos e ouvindo diversa língua, o soldado brasileiro viveu um mundo de histórias e de novidades. Não demorou muito e estava falando, ao seu modo, o italiano, depois de algumas confusões e equívocos provocados por uma ou outra palavra. E, como se fosse um curso prático e intensivo, começaram por onde deveriam começar:

- Buon giorno, Signorina! Como vade, bene?

- Bene, grazie e voi?

- Bene, grazie, dizia o brasileiro, ao que a italiana dava o ponto final, concluindo o diaólogo:

- Prego, Signore!

Palavras como esta última eram uma graça! Ora, esta! “Prego”! O expedicionário não podia deixar de associá-la à idéia de martelo. E assim, depois do diálogo acima, quando a italiana terminava com aquele “prego”! muitos responderam: - Martelo! E a italiana, espantada, perguntava com uma entonação bem cantada e feminina: - Che cosa?...

Era, dessarte, um mundo diverso para a imaginação simples do pracinha. Um ambiente em que até a língua era outra. Ao dominá-la, sentiu-se tomado de um forte bom humor, como se houvesse galgado alguns degraus no caminho de sua personalidade.

Outro aspecto que não deixou de ter grande repercussão no “ego” do combatente, foi o das relações com o sexo oposto, em sentido amplo. No Brasil, a tolerância racial sofre uma forte limitação, quando o elemento de cor é do sexo masculino. Um branco não sente constrangimento em receber um homem de cor em sua casa, desde que seu colega, ou do mesmo nível social. Uma vez, porém, que desta amizade e consideração familiar surja a pretensão amorosa, já aquela acolhida se turva, quando não desaparece.

O desnível social é que acentua o nosso discreto, porém, existente preconceito, que diria não exclusivamente racial, porém, educacional. A prova é que, não somente em relação ao preto, mas, em relação a qualquer outro, mesmo branco, sem instrução ou sem categoria na ordem social, ele existe. Acontece que entre os desfavorecidos, a maior parte é de gente escura, abandonados ao seu destino, após a escravidão.

De qualquer forma jamais chegaríamos à separação racial e isto é um grande bem para nós. Penso que a maior parte dos brasileiros não tem ressentimento em manter relações de amizade com um preto, desde que ele seja uma pessoa educada, de bom comportamento. Dificilmente, porém, veríamos, por exemplo, à chegada de uma tropa numa cidade do interior, as moças da sociedade local irem para um baile dançar com eles. Poderiam festejar-lhes a chegada, atirar-lhes flores, oferecer-lhes doces e bebidas. Jamais entrariam em intimidades. Soldado, seja branco ou não, era sinal de gente desfavorecida. Se se tratar, então da polícia, ainda pior. É que, no abolido sistema de sorteio militar, poucos eram os jovens educados que iam parar no Exército.

A separação de oficiais e praças no Brasil, não tem relação exclusiva com a disciplina natural de todas as organizações militares do mundo. Nos países atrasados, onde existem massas de analfabetos e gente sem instrução, a separação é acentuada, até mesmo em relação ao conforto.

Entre nós, o “homem do povo” distingue a moça de padrão econômico elevado ou de instrução, em geral pela cor branca ou mesmo morena que sabe vestir-se e fala corretamente o português. Em toda parte, há uma tendência de aproximação entre as pessoas do mesmo nível educacional.

Os expedicionários encontraram nas moças italianas esses atributos aparentes de jovens de sociedade: - brancas, porque não há italiana preta ou mulata; bem vestidas e por vezes elegantes, porque mesmo as provincianas, sabem vestir-se com propriedade e graça. Em falando elas o italiano, a “linguagem correta” perdeu o seu valor distintivo.

Qualquer que seja a razão da boa acolhida dos nossos soldados pelas italianas, seja em alguns casos o interesse, seja a verbosidade e a “bossa” do brasileiro, seja pela atração física, a verdade é que deve ter produzido uma grande influência no ânimo, um crédito na personalidade, aumentando o prestígio da farda da FEB, muito mais valorizada do que a do Exército no Brasil. Antes, eram as empregadas domésticas, acentuadamente mestiças ou gente simples, do comércio ou da indústria, que lhes caíam nos braços nos bailes públicos ou nas praças. Ali, bem ao contrário, eram as brancas legítimas, brancas falando melhor do que eles, que andavam de bicicleta como uma grã-fina brasileira (as lavadeiras iam apanhar as roupas dos soldados, em bicicletas), garotas que iam à ópera e cantavam com desembaraço belas canções napolitanas. Era chique... no Brasil, como soldados, jamais tiveram essas oportunidades.

Recordo-me, agora, de Gibi, aquele pretinho conversador e de sorriso de neve da 9ª Cia e que contava as suas aventuras, com a sua namorada loura, a qual muitas vezes dissera entusiasmada:

- Ma che bello nero!

Dir-se-ia que na Itália não existem estas separações de classes. Não tanto, talvez, como no Brasil onde a cor e a instrução são dois obstáculos bem fortes. Mas existe. Demais a nobreza e os seus reflexos separam mais do que a simples situação econômica ou intelectual. Por diversas vezes, ouvi de moças do campo referências admiradas pelo fato de nós, oficiais, passarmos pelo mesmo destino do soldado, partilhando com eles os mesmos momentos, numa camaradagem que me encheu de júbilo e honrou o nosso Exército. É verdade que o contribuíram bastante o perigo comum da guerra e o exemplo norte-americano. Mas, nós somos povos de colonização, entre os quais, principalmente no campo, jamais faltou esta solidariedade nas horas amargas. Os homens, principalmentre as crianças, sempre se misturaram. As mulheres, não.

Contaram-me, pois, aquelas camponesas, - que os oficiais italianos não eram como nós. Principalmente os de carreira e mais ainda, os que tinham aproximação nobiliárquica.

De minha parte, não creio num exército cujos oficiais não são capazes de partilhar irmãmente o destino da tropa. Se eles têm, realmente, ascendência de conhecimentos e de cárater, sejam quais forem as circunstâncias, serão sempre respeitados como superiores hierárquicos.

Vi numa revista italiana, ao tempo da ocupação alemã, uma informação sobre os brasileiros. Não recordo o nome desta publicação. Sei que dizia à população, no intuito de causar pânico e horror pelos “brasiliani” que os nossos soldados eram pretos e maus, usavam brincos nas orelhas e furtavam mulheres e crianças. Mas esta propaganda foi contraproducente, porque influenciou a eles mesmos, alemães, além de os italianos terem verificado depois a improcedência, a mentira dessas fantasias.

Contou-me uma senhora, se não me engano, em Cruciale, que em sua casa estava um coronel alemão e mais outro oficial observando o desenrolar de um combate. Em certo momento, colocando o binóculo, de fisionomia alterada e pálida, disse o coronel alemão:

- Estão avançando! Aí vêm os “negros” brasileiros! E saiu apressadamente dali.

A chegada dos brasileiros, constituiria o maior desmentido à propaganda mentirosa, pois os expedicionários com aquele temperamento expansivo e amigo, chegavam puxando conversa, falando o italiano, oferecendo caramelos às crianças, cigarros aos homens, conquistando a todos e quebrando todas as reservas...

B) Paisagem italiana.

Permita-me o leitor, que me afaste um pouco do assunto – a Diferenciação Geográfica entre o Exército de Caxias e o da FEB, a fim de lhe mostrar um instantâneo do ambiente onde viveu algum tempo o nosso soldado.

O campo italiano é um pontilhado de casas. Podemos medir suas fazendas com a vista. Aqui está, por exemplo, a casa ainda nova do contadino. De um só, não, de quatro famílias de “contadini”. São quatro residências num bloco só. Em cada uma delas, a sala de visitas é também de jantar e ainda a cozinha. É bem ampla. Tudo está em ordem. Aquela lareira once as achas ardem, com aquele caldeirão que pende de uma corrente, dá um aspecto agradável e hospitaleiro, que nos convida a sentar e aquecer o corpo. Observe que o fogão é todo de ferro. Ao canto, a mesa está bem posta. O guarda-louças deixa transparecer através dos vidros, que aquele camponês possui até porcelanas. Os utensílios domésticos são de metal. Nesta casa, você não está vendo as bicicletas das filhas deste contadino, porque os alemães as levaram, como levaram também bois, vinho, presuntos. Todos eles se queixavam:

- I tedeschi portarano via tuti! Tuti! Quelli delinquenti!

Tanto os nossos soldados ouviram recriminações desta ordem, principalmente sobre bicicletas, que fizeram, até, uma modinha mais ou menos assim:

- “Dove se trova la machina de Maria?

Tedeschi portarano via...”.

Não houve tempo de levarem tudo, porque havia muita bicicleta na Itália, meio de transporte muito popular. Além disto, aos que trabalhavam em indústrias ou serviços considerados de utilidade bélica, era entregue um salvo-conduto, escrito em italiano e alemão, proibindo o seqüestro da bicicleta, conforme tive ocasião de verificar.

Naquela gaveta, pelos cadernos e livros das filhas do contadino, você verá que elas estudam assuntos práticos. Veja: Lucia e Bianca Maria estudam economia doméstica.

Bem defronte a nós, na mesa da copa, cuja tábua fôra virada, a esposa do contadino já amassou a farinha. Enrolou esta massa como se fosse uma peça de tecido e de faca em punho, com rapidez incrível, está cortando aquele “peça” em fatias de talharim.

Lá fora, algumas galinhas que restam, cacarejam. Valem ouro. Os coelhos lembram plumas movediças nos comedouros. No estábulo, cada uma das dez, quinze ou vinte vacas, produz dez, quinze ou até dezoito litros de leite, que são levados pelas ótimas estradas para aquela fábrica de queijos que se avista daqui da janela. No celeiro o feno e a palha estão enfardados. Se o celeiro não comporta toda a palha recolhida eles a arrumam em torno de um madeiral plantado, geralmente, ao lado da casa. E de tal forma é a palha trançada, que se ergue a vários metros de altura à maneira de um cone enorme, fulvo e pitoresco, a imitar a graciosa projeção de pinheiros erguidos aqui e ali. O milho em espiga, já descascado, pende dos varais, preso pela própria casca e ostenta grãos tão lindos que não pensei dessem mais aquelas terras. O tempo é bem aproveitado. O trabalho é metódico. No inverno, o labor no campo desaparece com o advendo da neve, mas surgem outros serviços mais domésticos e cuidados com as criações. No verão, para suprir as forças perdidas num dia de trabalho que começa muito cedo e termina muito tarde, os homens fazem à sesta após o almoço. Os campos de cultura são aplainados e recortados de canalículos que, geralmente servem de divisas e são ligados ao canal maior que margina a estrada, prestando-se, assim, ao escoamento e à irrigação. Pequenas portas-d’água são vistas, intercaladas, nestes canalzinhos. Mesmo nas elevações eles aplainaram a terra, cortando-as de tal forma que, de longe parecem enormes degraus. As elevações são protegidas pelos bosques. Há, aliás, ao contrário do que pensei, muitos bosques na Itália e grandes parques de pinheiros que mesmo no inverno se mantém verdes. Vi, também, parques de caça.

O contadino em cuja casa estamos, neste momento, bem como os outros, não cortam a lenha da lareira ou do fogão com o machado. Serram-na. Penso que é para eviar o desperdício de três ou quatro centímetros que o golpe do machado ocasionaria. Tudo ali é aproveitado, até os garranchos. Que amor têm eles pelas coisas, pelas árvores, pelas plantações! Uma vez, depois que os alemães se renderam, saí de bicicleta com uma jovem italiana. Eram nove horas da noite e o sol estava, ainda no poente. Estávamos numa linda planície. A certa altura, parámos para contemplar aquela beleza campestre e eu, ao largar minha bicicleta, deixei-a cair sobre o trigal que avançava até à margem da estrada. A italiana disse-me, então, numa expressão de censura:

- Nè fate cosi!

- Che cosa?, perguntei-lhe.

E ela, com a voz mais doce que já ouvi em tão curta frase, estendeu as mãos como se afagasse o trigal que não lhe pertencia e disse:

- Il grano!!... (O trigo!).

Quando chega a noite, os contadinos se reúnem, limpam, enxugam e guardam carinhosamente suas ferramentas. Depois, sentam-se palradores em volta da mesa ante a sopa, o minestrone suculetno e fumegante. Nem sempre há carne. Um dia ou outro um pedaço de coelho da criação. É a guerra. Mas há sempre ovos, legumes, castanhas apanhadas nos bosques. Bastante massa, queijo e vinho puro e bom, ou então com água, porque o vinho deve estar sempre em sua mesa. Muita fruta. (Quando estive em Roma, comprei a menos de vinte cruzeiros o quilo, excelentes pêssegos vindos de Nápoles, de tão longe pelas ótimas estradas). Os contadinos, apesar dos pesares, mostram um ótimo físico. Corpo cheio, braços roliços e rijos, índices de boa nutrição. Falam, gesticulam como um bom latino. Adjetivam e doutrinam. Ecco!

Eu que nasci no campo e conheço um bocado este Brasil, fiquei surpreso ante esta mudança geográfica. Era aquela a chamada necessidade dos povos da Europa? Vi, sim, necessitados nas cidades. Deslocados, “rovinati”, “sfollati”. Mas se pensarmos nos homens dos mocambos, das favelas e cortiços não encontraremos têrmo de comparação. Necessitados somos nós. Ao chegar aqui ouvi risos quando disse isto. Somos verdadeiramente cegos. Poucos acreditaram no que disse. Ora, segundo li em um jornal em Roma, somente 25 a 30% das fábricas italianas foram, realmente, destruídas. Maior número, talvez, parcialmente arruinado. Quase a metade do poderio industrial italiano ficou intacto. Com os reparos nas indústrias em parte atingidas, esta metade pode se aproximar dos dois terços. A riqueza queda-se em potencial nas fábricas e nos campos povoados. E, mal acabava o combate, lá estava o italiano, numa paciência de formiga, cultivando a terra.

Ocorreu um fato comigo, que bem pode comprovar esta perseverança: no deslocamento pelo Vale do Pó, eu estava com o meu pelotão quando esbarrei num terreno, onde os sulcos dos arados eram bem recentes, pois a terra estava ainda úmida. Todos nós receávamos as minas. Os alemães as espalharam em tal número que por muitos anos elas serão responsáveis por acidentes fatais. Tudo o que pudesse chamar a atenção do soldado em avanço, o alemão podia minar: as margens dos parreirais onde as uvas convidassem; os caminhos de fácil penetração e até os cadáveres dos nossos soldados, como aconteceu, segundo me contaram. Colocadas as minas, eram dissimuladas por forma que o terreno não apresentasse vestígios. Se o terreno ante o qual estávamos apresentava sulcos recentes de arado, não devíamos temer. Pensei, porém, em que a dissimulação tem mil formas de realidade. O inimigo em fuga não tem tempo. Quem poderia saber se eles araram aquelas terras, semeando, depois, as minas e deixando uma impressão de campo recém-cultivado? Fui à casa do contadino, já ocupada, e perguntei:

- Quem trabalhou naquele campo?

- Eu, respondeu o italiano.

Por vias das dúvidas, cortesmente, convidei-o a caminhar na frente. Seguro morreu de velho... Estas preocupações, aliás, nos fizeram, posteriormente, arrebentar um enorme garrafão de vinho, por ter à superfície um pó esbranquiçado. Sabiamos lá se era veneno? Contaram-me, depois,que havíamos perdido um ótimo vinho velho...

Vemos, pois, que mal passada a guerra, a terra ainda marcada pelos borzeguins dos soldados, às vistas quase, dos combates, lá estava o contadino sobre o campo cultivando-o e dele colhendo riquezas.

E eu fico a pensar nos “entendidos” que dizem: “A Europa está uma desgraça. Podemos receber italianos aos milhares e soltá-los como boi em Mato Grosso, por exemplo!” Estão enganados! Eles não agüentariam sem uma boa assistência do Governo ou do particular. A Itália tem uma cultura milenar e oferece, apesar de todas as dificuldades de que foi vítima, um padrão de vida superior ao do nosso trabalhador de eito ou até de muitos fazendeiros do Brasil. Os italianos são um povo que sabe como trabalhar, produzir, como alimentar-se e distrair-se. Atravessando-lhes os campos e a excelentes estradas cimentadas, correm os trens elétricos e a eletricidade ilumina-lhes grande parte das casas do campo. Nestas, de tijolo, simples, porém, de gente civilizada, vemos utensílios domésticos de ferro e alumínio e móveis aceitáveis. Os filhos se educam ali mesmo. Trabalham muito. Não há esperanças de riquezas da noite para o dia. Mas gozam um pouco dos prazeres de um padrão de vida mais desenvolvido. Estão pertos uns dos outros, a dois passos das obras de arte, de histórias e tradições do passado.

Não se trata, é óbvio, de superioridade racial, porém, de superioridade de cultura. Mesmo que ele não saiba ler (o que é raro), sabe como semear, como colher, produzir e economizar. Em todos os países de clima temperado, o frio, a necessidade do calçado, do agasalho, do calor, traça o caminho da civilização. Os campos nevados obrigam o homem a cuidar mais da sua casa, a economizar e a prover. O que eles aprenderam pela experiência, pela necessidade secular, pela imposição do clima, nós teremos de fazê-lo pela educação permanente e experimental repetida até constituir um hábito.

Com esta vastidão territorial desabitada, estas terras bárbaras, sem preparo, sem trato e sem aplaino, estes métodos empíricos, sem máquinas e sem braços, tão cedo não seremos nada no rol dos povos civilizados. O italiano é um ótimo elemento de colonização, sabem-no todos. E o imigrante é a escola melhor e mais barata, porque ensina aos nossos homens pelo exemplo. Se o desejamos, criem-se os meios de fixá-los à terra. Do contrário, ele abandonará a terra para vender jornais e bilhetes de loteria nas cidades. Na Itália ele é, apenas, contadino, isto é, trabalha para o dono da fazenda, recebendo uma percentagem sobre a produção. Ofereçam-lhe a terra. Digam-lhe a verdade sobre o nosso país. Que eles virão para uma terra ainda virgem mas que será deles e de seus filhos. E os que vierem serão os desbravadores de que carecemos. Trabalhando aqui em terra própria como trabalham lá em terra alheia, encontrarão outra sorte, outras compensações. A Itália já deu o que tinha a dar. É mais a manutenção de um passado de séculos. Enquanto isto, nós somos como aqueles versos de Augusto dos Anjos: “O choro da energia abandonada”, “o cantochão dos dínamos profundos, que podendo mover milhões de mundos, jazem, ainda, na estática do nada” ... Somos a esperança que urge abreviar.

Mas, voltemos à casa do contadino, onde nós estamos, enquanto os “técnicos”, os “entendidos” resolvem estes problemas. Aqui está o quarto de dormir. A cama é boa e forte. Um colchão? Não. Dois ou três, sobrepostos, sendo em alguns casos de penas. Lá no canto o guarda-roupa e a penteadeira. As vezes são simples móveis antigos, bem conservados e apresentáveis. Podemos notar objetos de gente civilizada, roupas de cama de antes da guerra, lã e sêda (esta de boa fabricação, pois a Itália produz boa sêda).

No verão, mesmo na primavera, ao contrário do inverno, as madrugadas surgem bem cedo, antes das cinco e o crepúsculo é muito mais tarde. Às 9:30 da noite ainda existem vestígios do poente. Era uma coisa que desorientava a nossa idéia do tempo. Após a guerra, quando aquartelados, precisávamos ter cuidado para não perder o jantar, pois às 5 ou 6 horas da tarde o sol estava tão alto que qualquer um de nós julgaria ser três horas da tarde. Se marcássemos um encontro às sete de noite e se não estivéssemos de olho no relógio, seríamos capazes de chegar às dez da noite...

A tarde que se estende, assim, noite a dentro, proporciona aos que saem do trabalho, momentos de folga em plena claridade solar. E pelas estradas que enfeitam de fitas as planícies e as alturas, as bicicletas passam em todos os sentidos. Nas águas dos pequenos canais os patos se aninham serenos e uma vez ou outra mergulham, rápidos e trêmulos, os longos pescoços. Estamos na primavera e os pessegueiros e macieiras, desfolhados pelo inverno que se retira, estão agora completamente cobertos de flores. O campo é um vasto painel polícromo onde o azul, o branco e o vermelho casam-se com as manchas verdes do trigal que vai surgindo como grama. Um quadro gigantesco e colorido que a primavera pintou na tela da natureza com molduras de neve das montanhas...

Quando as noites convidam – (e os céus da Itália são tão estrelados!) – poderemos dar um passeio de bicicleta. Não há perigo de poeira. As pistas cimentadas das autovias italianas podem ser percorridas por qualquer engenheiro de país civilizado. Cruzam a península de norte a sul e de leste a oeste. Cruzar é um modo de dizer, pois essas estradas em geral não se cruzam, passam por cima em viadutos que se vão elevando aos poucos. A guerra não as destruiu, senão, em determinados locais. Ambas as partes em luta tinham interesse em conservá-las.

Por elas, portanto, você, leitor, o contadino, suas filhas e eu poderemos passear como se estivéssemos num campo-jardim, atravessando aldeias com suas igrejas seculares de campanário erguido em torres. Por esses vilarejos e cidades que transformam a Itália numa campanha urbana onde a eletlricidade brilha nos postes e risca os trilhos dos trens elétricos.

Mas, se você não quiser passear de bicicleta, vá contemplar a quietude, a simplicidade tão humana da cidade mais próxima. Vá ao teatrinho! Pode ser que haja a estréia de uma novo tenor...

C) Fantasia brasileira.

Num ambiente, inédito, cercado pelo conforto do Exército americano, que até chegou para ele, o soldado brasileiro esqueceu-se dos seus tempos do Exército no Brasil e da realidade brasileira e fêz uma ótima apresentação das nossas fantasias...

Acentuaram-se os traços de bondade e solidariedade de nossa gente, dos nossos soldados, capazes de gastar até os últimos centavos, as economias do mês só para oferecê-las em lauto almoço a um amigo ou parente recém-chegado.

Os italianos que viviam, mesmo assim, num regime de carências em comparação ao período anterior à guerra, estavam acostumados à campanha de descrédito que os nazi-fascistas fizeram contra os aliados e ainda às requsições de gêneros alimentícios que aqueles faziam constantemente, exigindo sempre mais trigo, mais provisões dos camponeses. Os próprios alemães, embora bem equipados, tomavam-lhes os bois, os cavalos, os gêneros, as bicicletas, etc. Era de esperar, pois, que se espantassem da massa de material e provisões que nós brasileiros arrastávamos com o 5º Exército americano. Caminhões e caminhões, jeeps, rádios transmissores, equipamentos e petrechos de todos os gêneros. O meu pelotão fôra transportado do Vale do Pó, por três caminhões, cada um dos quais, possuía, rodando, dez pneumáticos... E aquela profusão de alimentos? Açucar, café, sabão, carnes, conservas, doces, chocolates que eles há muito não viam, senão em doses medicinais e a preços astronômicos... E aquelas botinas? Galochões para neve? Aqueles blusões? Mas, quanta gasolina queimando naquelas viaturas nos três fogões e fogareiros de cada companhia, como água! Quanta borracha! Tudo aquilo era um sonho...

- Mamma mia!

- Ecco!

Observei a satisfação dos nossos pracinhas vitoriosos, ao exibirem tudo aquilo como se fosse realmente nosso. Cantaram as riquezas do Brasil. Os nossos rios, florestas, a nossa vastidão geográfica, do tamanho da Europa. Nós tínhamos muito açúcar, muita borracha, muita carne.

- “Sí, in Brasile nè manca niente! C’è tuti, tuti! Molte zucchero, molte mangiare, molte gome, tuti, tuti!”

Os italianos não podiam conter a admiração e exclamavam:

- Per Bacco!

E os nosso pracinhas, num gesto, ao acenderem um cigarro Chesterfield, Camel ou Luck Strike, ofereciam-no ao italiano, que logo o tomava, examinava, cheirava e às vezes o guardava para depois da ceia. “Si, doppo la cena....” E amaldiçoava a guerra, Mussolini e os alemães, pois antes da guerra, não era assim. “Prima la guerra...

E enquanto os italianos assistiam com espanto todo aquele aparato de material, os soldados presenteavam as crianças com caramelos e chocolates (carameli per bambini). Os pracinhas e não só eles, porém muito tenente, muito capitão, etc., estavam penalizados com a pobreza, a miséria da Itália. Muitos julgavam-nos até um povo atrasado. Quis chamá-los à realidade, mas já se haviam esquecido do nosso Brasil ou tinham em mente as avenidas asfaltadas das capitais debruçadas no Atlântico...

Aos meus soldados nada disse, porém. Escutava aquele entusiasmo patriótico, como demonstração do moral elevado da tropa. Mas fiquei embaraçado, quando certa vez, um italiano instruído e curioso me perguntou:

- Senhor Tenente, quantas fábricas de automóvel existem no Brasil?

Respondi-lhe que não estava a par desse assunto e mudei de conversa.

Uma verdade terrível empolgou-me a mente: nós não fabricamos nem bicicletas... E achei graça quando um soldado que havia observado o trabalho das mulheres no campo, comentou:

- Aqui, “seu” tenente, as “fêmia” não tem vez! O Senhor não viu? Até as vacas puxam o carro!?

A Itália era como uma grande fazenda organizada, com enormes benfeitorias e oficinas erguidas por inúmeras gerações atravé dos séculos. Com os seus apartamentos bem arranjados e cheios de obras de arte. Seus campos cultivados, etc. De repente, um rio cresceu e inundou tudo. Os homens não puderam trabalhar. Algumas máquinas foram arrastadas pela correnteza. Alguns móveis, também. A lama chegou até a encher alguns apartamentos. Mas quando as águas baixarem, os homens voltarão ao trabalho e saberão o que têm a fazer. Máquinas e tornos matrizes fabricarão peças e máquinas destruídas. Faltará açúcar, chocolate e provisões por algum tempo. Depois, as coisas surgirão. O mesmo será na Holanda, na Bélgica e na própria Alemanha destruída. E é muito mais fácil fazer isto, muitas vezes mais, em menos tempo do que nascerem homens, criarem-se, crescerem, educarem-se, reproduzirem-se, em número suficiente à conquista deste nosso Brasil imenso, disperso, empírico, sem comunicações, até que ele seja um grande país, uma grande e próspera nação.

A Itália já produziu um “Netunia”, um “Oceania”, seus automóveis e máquinas. Dentro em breve fabricá-los-á outra vez, antes que façamos bicicletas. Um dia produzieremos tudo isto e muito mais, desde que sejamos mais práticos, mais objetivos, menos teóricos, menos burocráticos.

D) Os brasileiros voltam a encontrar o Brasil...

Os pracinhas só sentiriam a realidade, quando deixassem as terras da Itália; quando a FEB se desligasse do 5º Exército americano; quando eles voltassem outra vez, para a outra conquista, a do pão de cada dia... Não teriam mais aqueles agasalhos. Não teriam mais aqueles alimentos em quantidade e qualidade tais que mantiveram e até superaram as suas reservas físicas, apesar da pressão psicológica a que foram subemtidos e do desgaste a que fora entregue a sua Divisão, na guerra contra a pertinácia do tedesco audaz, dominando as alturas em defensiva.

Muitos e muitos teriam de voltar às favelas, aos mocambos, às taperas de taipa, de sopapo, às casas de sapê por estas terras a fora sem água, sem saneamento, sem luz elétrica, sem estradas, sem transportes no domínio das moscas e dos mosquitos, depois daquela abundância de tudo e até dos banhos quentes e frios dos acampamentos americanos...

Aqueles que voltaram, como eu, em navio brasileiro, experimentaram antes de pisar em terra natal, a mudança do trato, do ambiente: vinham deitados pelo chão, nos corredores e convés do vapor.

Os que mandaram o navio daqui, eram completamente “rombudos”, em matéria de assistência e compreensão. Gente do Lóide, gente do Estado. Se fosse uma companhia de particulares não teriam procedido assim. O que custava um simples toca-disco e um alto-falante? Alguns discos de música brasileira, mesmo pelo convés naqueles vinte dias de viagem (o dobro do transporte americano) por vezes expostos à chuva e às intempéries, seriam a recepção musical brasileira, um abraço fraterno e amigo.

Mas não. As marmitas não eram mais nem lavadas direito, quanto mais esterilizadas, como no sistema americano. Faltou água para o banho. A comida má. Em pouco tempo, os desarranjos intestinais tomaram conta da tropa. Os jornais do Recife (primeiro porto nacional) testemunharam os protestos dos soldados, logo ao desembarque. Correu, porém, uma lista de assinaturas (que muitos firmaram sem maiores formalidades, pois eram comuns as tomadas de nomes como recordação dos camaradas), declarando a ótima qualidade dos alimentos. Como sempre, as realizações no papel...

Mas, os soldados deste navio, compreenderam, talvez inconscientemente, a razão de ser do conforto que tiveram na Itália: quando o barco entrava no porto do Recife, quem nos saudou primeiro foi um grande transporte norte-americano. E o fez estridentemente com os ruídos dos seus apitos e os acenos entusiásticos dos seus marujos. Então, os pracinhas, por eles mesmos, de forma imprevista e espontânea começaram a cantar o “Deus Salve a América!”

Ouvi no 6º Regimento de Infantaria, o seguinte fato: - um oficial superior americano fôra visitar, devidamente acompanhado por outro oficial brasileiro, uma posição nossa em Torre de Nerone, de grande importância para todo o 5º Exército. Esta posição era constantemente visada pelo inimigo. O capitão (aliás muito popular no Regimento) aproveitara a presença momentânea de um superior, para se queixar dos reiterados atrasos das provisões, o que deixava os homens de sua companhia em situação difícil.

Este capitão foi punido, mais ou menos sob o fundamento de se portar de forma inconveniente em presença de oficial superior estrangeiro. Entretanto, este mesmo “oficial superior estrangeiro” quando lhe estendeu a mão em despedida, referindo-se à sua reclamação lhe dissera o seguinte:

- “É assim que se comanda, capitão!

Sim, porque os norte-americanos não desejavam arrastar consigo, uma divisão de subnutridos. E quando não encontram as coisas como eles desejam, dizem-no com aquela franqueza a que nós não estamos acostumados, como os seus médicos diziam com toda a naturalidade, aos comandantes de companhia, quando a situação higiênica não andava de acordo com as suas normas. É sempre aquele princípio: um homem se faz em vinte anos e uma máquina em vinte minutos. Estraguem-se as máquinas, poupem-se os homens.

Sim, a Itália era outra paisagem com outra moldura para aqueles homens. Outra impressão bem diferente daquela do seu velho e conhecido “Exército de Caxias”.

Na arremetida da Força Expedicionária através da Península, os soldados sentiram de perto o contato de um povo diverso, outros costumes e de uma geografia inédita e surpreendente para eles. Deitaram-se em terras brancas de neve, em campos floridos, pelos trigais. Fizeram, daquelas casas campesinas, quartéis de inverno. Dormiram em suas camas, em seus celerios. Beberam-lhes o vinho e cantaram-lhes as canções.

Ah! a Itália! Há de suspirar o pracinha em todos os recantos do Brasil. E contará aos filhos e netos, aos amigos e vizinhos, histórias de mil e uma noites.

Muitos dirão:

- Aquele cara é um garganta!

Outros mais “patriotas” dirão:

- Por que ele não volta lá pra Itália?

Mas ele estará ouvindo suas próprias palavras; suas últimas palavras.

- “Doppo domani noi andaremo via de qui

- A rivederci – Itália!

E os expedicionários recordarão canções como Mamma, La Strada del Bosco, Bambina tu me me piace. Firenze Dorme ou daquela traduzida em todas as línguas inclusive para a italiana: Lili Marlene.

Em Mamma era a recordação das mães distantes; na Strada del Bosco, o passeio românico e bucólico pelo bosque; em Bambina tu me piace, como o nome diz, a declaração de amor às garotas que lhes agradaram. E como naqueles versos de Firenze Dorme, há de haver sempre em suas recordações, um Arno de prata espelhando um firmamento de estrelas fosforescentes e sorrisos de vida e alegria daquelas signorine, como eternas canções napolitanas. Jamais faltará, também aquela rosa de Lili Marlene, presa nos seus corações “com o fio dos seus cabelos de ouro”...

E, viva la Torre de Pisa
Che pende, che pende
E non va a giù...


Para eles, assim foi a Itália. Assim serão as suas recordações...




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Re: O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#4 Mensagem por Clermont » Dom Ago 28, 2011 6:17 pm

III - DIFERENCIAÇÃO DISCIPLINAR.

A) O brasileiro, um indisciplinado.

Da mesma forma que a uma nação poderosa é fácil montar um exército poderoso, a uma nação disciplinada fácil é manter um exército disciplinado.

Constituímos nós uma nação disciplinada? O brasileiro, é em geral indisciplinado. Acusam-no de preguiça, indisposição para o trabalho, ineficiência, vagabundagem. O que lhe falta, porém, é legalidade, educação positiva especializada e estímulo. Qualquer trabalho de que se não tenha conhecimento fundamental é enfadonho.

Para nós, a obrigatoriedade é, talvez, pior do que o próprio esforço. Existe como que, um complexo de escravidão. É evidente que em toda parte do mundo há pouca vontade pelos trabalhos pesados, trabalhos braçais. É natural. A lei do menor esforço faz flutuar o homem em balões de desejos cômodos. Nós viemos, porém, há bem pouco tempo, de uma época em que os “senhores” mandavam e os “escravos” trabalhavam. E, parece, existe até hoje esta revolta mestiça dentro de nós. Os empreendimentos mais pesados, de amanho da terra, de escavações, de limpeza, qualquer coisa que aproxime da criadagem, são ligados inconscientemente à idéia da servidão e o homem os repele com um pavor de recém-liberto... É como se uma voz, interior relembrasse: - Não sou escravo! Talvez esteja aí o hábito das mãos finas, a aspiração do mando, da autoridade, que atrai o homem aos cargos políticos, às poses administrativas, aos manda-chuvas da terra – (sabe com quem está falando?) etc.

Certa vez, num “engenho de açúcar” em Pernambuco, surpreendi o “Senhor de Engenho” procurando os alfabetizados entre os trabalhadores da sua propriedade para lhes indicar os nomes ao sorteio do Exército. Perguntei-lhe porque não enviava os analfabetos que seriam alfabetizados (neste tempo, eu entendia ainda menos de Exército) ao que o proprietário respondeu:

- Homem alfabetizado é homem perdido. Aprendeu a ler, não quer mais trabalhar. Vai tocar viola, cantar modinhas, passar jogo de bicho. Não pára mais. Muda-se para a vila e da vila para a cidade. A enxada para ele é uma desonra. Se esta é a verdade, eu lhes apresso a viagem...

É possível que esteja neste complexo da escravidão, o pavor acentuado que temos por certos trabalhos, a procura dos cargos burocráticos, dos empregos públicos ou de escritório onde o cidadão engravatado e limpo se sujeita a perceber muito menos do que um mestre-pedreiro, um pintor, um mecânico. Engenheiros, agrônomos, químicos, até há bem pouco tempo de mãos finas, engomados ante as mesas ministeriais. Os bacharéis verbosos, os “doutores”, como os proprietários de terras – "capitães", "majores", "coronéis".

Recordo-me, agora, do prazer sádico, da vingança daquele sargento em Recife, ao tempo da guerra, dirigindo-se aos soldados:

- Quem sabe inglês aí?

Diversos se apresentaram. Então, o sargento comandou:

- Ótimo. Peguem aquelas vassouras e vão para a faxina!

Certa vez, o pelotão ocupava uma granja, no norte da Itália. Usávamos uma privada rústica, situada externamente ao lado da casa dos contadinos (como é comum lá). Dos americanos recebíamos todo o material, inclusive um pó desodorante. Mas, ninguém queria limpar o banheiro à vista dos italianos. Porém, algumas noções sobre a necessidade do asseio e a afirmativa de que a prática da higiene não humilha ninguém, fizeram desaparecer o “complexo”.

A indisciplina nacional salta aos olhos em qualquer parte. No trânsito, está a confusão que “uma semana” de ordem não redime. O atraso dos trens, o das chegadas ao trabalho e às saídas dele, a desobediência das posturas e regulamentos, etc. Quantas vezes tenho visto, por cima do letreiro: - “É proibido conversar com o motorista ou com motorneiro”; o guarda que pegou uma “carona”; “pagar” a gentileza com dois dedos de prosa com o motorista ou o condutor...

Cada cidade tem uma percentagem assombrosa de habitantes abandonados ao seu destino solapando a levíssima camada de educação das minorias instruídas e orientadas. Pelas ruas, os papéis andam soltos. Nos encostos dos bancos de cinema, bondes e ônibus, e até em paredes, as marcas dos pés inquietos. As crianças, fugindo das “camisas-de-força” dos apartamentos, sem jardinhs, sem parques vigiados, vêm para as ruas bater bola e brincar de bandido. E o rádio leva até elas os teatros comerciais, onde na exploração do som, quase que só existem tiros, sadismo, choro e ranger de dentes.

Nos cinemas mais distintos, em meio de cenas artísticas e elevadas, é comum ouvirem-se piadas de mau gosto, gritinhos neuróticos, histéricos, assobios acolhidos pelas gargalhadas de aprovação. As estatísticas de homicídios, assaltos, violências, inclusive de autoridades, falam por si mesmas, do respeito em que são tidas as leis e os princípios mais comezinhos de educação social.

Não seria, pois, de admirar, que a disciplina no Exército, sofresse, por um lado, os efeitos do reflexo nacional e tivesse, por outro, a repressão mais violenta, no sentido de conseguir um soldado respeitador, pontual e ordeiro.

Analisaremos, por conseguinte, nesta parte, a diferenciação disciplinar sentida pelos soldados, no Brasil e na Itália.

B) A disciplina rotineira do quartel.

A vida do conscrito é constituída por uma série permanente de desfalques na sua vontade e liberdade, em benefício da equipe, do conjunto. É uma fase em que o indivíduo, depois de chegar à idade adulta, tem que regredir em sua vontade já liberta. Em benefício dele próprio, da segurança de sua vida e da vida dos outros, é que se torna necessário que cada um aja em função de um todo.

Em qualquer exército de qualquer parte do mundo, esta iniciação na vida militar é desagradável. Uma porção de princípios, etiquetas, formalidades, simbolismos, teorias, disposições regulamentares, reduz o pobre mortal a uma vontade comandada por outrem.

Só mesmo a contigência de todo um povo ver-se ameaçado pela ferocidade de outro, a necessidade imperiosa de todos defenderem como um só homem as fronteiras nacionais, é que obriga um cidadão a tamanho sacrifício e situa outro em tão honroso quão delicado posto como o de comandante.

Depois de fardar-se e apresentar-se aos de casa todo ufano, vai sofrer a primeira timidez, ao sair à rua. Começa a sentir-se olhado de todas as direções. No quartel, ele entra como um anjo e o sargento o espera como um demônio... O recruta é a melhor distração do ano. É como se o sargento quisesse logo descontar os juros do esforço e do suor que vai derramar no fazer daquele “paisano” um soldado...

Será breve um farrapo. Acorda sempre pela metade do sono. O soldado adaptou ao toque de alvorada, uma letra que é a expressão da sua angústia:

“Ai meu Deus
Que vida apertada
Nem bem eu me deito
Já toca a alvorada...”


Ou então:

“Ai meu Deus
Que vida esta minha
Nem bem eu me deito
O Plantão me aporrinha.”


Desde que acorda até à noite, tem que fazer as coisas às carreiras. A ordem-unida, o manejo das armas, a maneabilidade, a instrução física, as marchas, o serviço na guarda, a limpeza dos armamentos, a instrução geral, toda um invenção diabólica comprimida em um ano de serviço militar, como se fôra mesmo de propósito para não “dar vez” ao soldado... Sua, esfola-se, suja-se na terra ou na lama, lambuza-se de óleo quando não se “perfuma” no cheiro dos muares...

Tem que saber dirigir-se ao superior, perfilar-se, fazer a continência, “cantar” o número, o nome, a subunidade, a unidade... e tudo com a mão esquerda bem colada à coxa, e a direita em continência, sem baixá-la, a não ser que o oficial ordene. E se o braço esquerdo não cai naturalmente, se está arqueado, o superior dirá que ele é uma asa de açúcareiro... Se na farda lhe falta um botão, o superior dir-lhe-á: "Você está nu, soldado. Vista-se e venha falar comigo!"

Na vida civil, a gente só cumprimenta aquele a quem estima. E tanto pode ser um bom dia, um alô, um “o que é que há” etc. Mas o soldado tem que andar sempre vigilante, em cada rua, em cada esquina, em cada canto. E não adianta sair à paisana, porque soldado só pode andar fardado.

À noite, lá está ele na rua, na praça com a namorada (até à hora de recolher ao quartel) ou aproveitando uma folga que terá no dia seguinte por ter feito uma marcha de vinte ou trinta quilômetros. Mas, aqui e ali passam os cabos, os sargentos, os oficiais... O idílio é constantemente desmanchado pelas continências.

Às vezes, no ônibus, está ele todo satisfeito, bem sentado junto à vizinha. Entra um superior e lá se foi o lugar...

Teve espírito, portanto, o autor (não sei se anônimo) desta quadrinha que ouvi de soldados do Exército em Pernambuco, com a música do toque de corneta para o banho, em que o soldado se crê indigno de ser amado:

“Mulher que ama soldado
Ama cachorro também
Cachorro ainda tem rabo
Soldado nem rabo tem...”


Ou então este dito bem carioca: - Soldado não tem vez (isto é, oportunidade).

C) Uma herança do Patriarcalismo na Caserna.

Esses princípios comuns a todos os quartéis do mundo, não foram inventados especialmente para martirizar o cidadão que veste a farda e sim para lhe imprimir a vigilância, a presteza, a vivacidade na execução das ordens, mesmo ante o perigo do combate – finalidade precípua da instrução militar.

Entretanto, esta necessidade de moldar primeiro um cidadão que já deveria vir formado pela vida civil, exagera as fronteiras do rigor disciplinar do Exército e acentua muito mais a diferença entre o comandante e o comandado.

Não se trata da simples separação de alojamento, de rancho, de banheiros e privadas, de lugar de recreação, por si mesmos já bem diferenciados. O soldado brasileiro é tratado como um colegial, transição do patriarcalismo já analisado. A este homem que o Exército tem que preparar no quartel não se dá a amplitude da responsabilidade que deve ter. É a mesma coisa que ocorre nas fábricas, nos escritórios, nas empresas particulares: - é preciso a presença do chefe, do fiscal – como os alunos necessitam de um inspetor. Desde que o “mestre” esteja ausente, o “aluno” acende um cigarro, faz uma garatuja no quadro negro, joga uma bola de papel ou ensaia uma palhaçada qualquer... É outro defeito de origem nacional. Partimos do pressuposto de que todo o mundo é desonesto ou inábil: do princípio de desconfiar de tudo; criamos uma série de leis e regulamentos minuciosos; surgem os papéis, os selos, os carimbos. Os recarimbos, os autos, os flagrantes, as inquirições, os julgamentos mais complexos e intermináveis. Todo o mundo fica inibido, peado pelas exigências e pela burocracia. Finalmente, quando se apanha um que falhou, que furtou, que falsificou um cheque ou infringiu algo, não vai sofrer lá grande coisa... A falsa piedade, os arranjos, as provas, as testemunhas, as desistências, tudo favorece. Se há países em que se não pode acreditar muito na fiscalização, o Brasil é um deles. Seria necessário criar o fiscal do fiscal até o infinito. Os americanos, neste ponto, são mais práticos. Partem mais ou menos do princípio de que todos são bons e deixam correr a vida. Mas, uma vez apanhado o faltoso as conseqüências são duras. Doa a quem doer. Desta forma os honestos e bem intencionados não têm os seus passos tolhidos pela minoria desonesta.

Tanto na paz como na guerra, o homem representa em produção o que é realmente e não o que poderia ser. O que não cresce espontâneamente, de forma lenta e constante, não adquire consistência.

Um soldado “colegial” é uma preocupação permanente. A sua personalidade não atinge as alturas que lhe podem exigir as circunstâncias.

Este receio do relaxamento disciplinar entre comandante e comandado é que estreita de forma bem acentuada as exigências regulamentares de uns para outros, de maneira por vezes exageradas.

O soldado brasileiro saiu deste plano para outro muito mais restrito decorrente da própria convocação para a guerra. A vida de quartel piorou muito. Em primeiro lugar, a certeza de que embarcaria para a Europa onde a guerra o esperava plantou-lhe a angústia instintiva da morte. Ocorre nos homens, nestas situações, como nas plantas ameaçadas; há como que um desejo de vida de reflorir e fruticar. Obrigados a penosos exercícios, submetidos a mais forte exigências físicas, uma vez em folga, esses homens bebiam, expandiam-se, do que resultavam certos excessos mal compreendidos e maiores depressões físicas.

É preciso observar que esses soldados receberam sobre os ombros, o encargo de, eles – uma minoria incrível – desagravar e representar o Brasil na guerra que este declarara. Não existia uma situação geral de luta em que todo um povo tem que servir em qualquer frente e faz da desgraça geral um estado comum. Deste “élan” nacional que arranca das profundezas da alma, em lampejos de entusiasmo patrióticos, a vontade de combater. É, às vezes, chocante, ter um homem de lutar e talvez tombar longe de sua Pátria, quando sabe que atrás dele ficam dois mil; dos vinte mil que seguem, ficam quarenta e cinco milhões...

Assim, após sofrerem uma compressão tremenda, desde que se tornaram expedicionários, pois a “vida de soldado” piorou, ao embarcarem sentiram o desafôgo que analisaremos.

D) Disciplina militar americana.

Desde que sob a organização americana os homens caminharam para o grande navio transporte, outra seria a sua vida, outra a sua personalidade, outras aas circunstâncias.

As emoções e saudades já começaram a indiferenciar os homens, comandantes ou comandados. As próprias fardas, feitas para dificultarem o discernimento inimigo, já não distinguiam tanto o superior do inferior. O oficial já não tinha bagageiro que lhe carregasse o saco. Cada um que transportasse o seu e com ele galgasse as escadas do navio.

Ali a alimentação era igual para todos. Quem não prestasse serviço, oficial ou não, só teria direito a duas refeições diárias. Os que trabalhavam, mesmo soldado, recebiam três. Todos, indistintamente, estavam sujeitos aos mesmos perigos, aos mesmos rigores da guerra, pois a morte não tem preferências. Daí por diante as coisas seriam bem diversas...

Até aquele momento, o soldado do Exército tinha dado o seu “murro”, curtido o seus sofrimentos e as suas desigualdades sem que ninguém lhe atribuísse nenhum destaque. Estes, porém, que iam partir com uma interrogação atravessada na garganta, já haviam recebido palmas e flores pelas avenidas. Os jornais proclamavam, em negrito, qualidades que eles nem imaginaram. E dentro em breve, eles que sempre foram chamados, simplesmente, “praças” receberiam o diminutivo carinhoso de “pracinha”...

Quando o grande transporte ganhou o alto mar, esta bela cidade do Rio de Janeiro, já invisível, deixou de ser o torrão natal daqueles brasileiros de todos os recantos e cada um aninhou dentro de si as suas saudades. A imensidão Atlântica fez de cada homem uma enseada tranqüila. Depois, a alma artista e simples do povo começou a falar pelas cordas dos violões e dos cavaquinhos, das cuícas e pandeiros. E o homem cantou músicas sentimentais como “Na Baixa do Sapateiro” e relembrou “a morena mais faceira da Bahia...”.

E veio o cinema americano em filmes novinhos para alegrar o soldado. E vieram as brincadeiras, as lutas de boxe, a presença de Netuno na passagem do equador, as músicas do alto-falante, as notícias, o serviço religioso. Uma vez ou outra os exercícios de salvamento ou o toque de alarme lembravam a presença do inimigo naquelas águas imensas em que só o radar penetrava.

A disciplina não deve partir somente do soldado. Deve estar em tudo que o cerca. E tudo naquele transporte emana disciplina e ordem. Tudo era feito a tempo e à hora. Os marujos em seus postos, juntos das suas armas, nos postos de observação, no trabalho de limpeza ou renovação da tinta, na cozinha, etc. Não se via o comandante. Não se viam oficiais dando ordens, sargentos para lá e para cá. Aqueles americanos pareciam mudos. Era como se cada um fosse comandante de si mesmo. E os brasileiros se adaptaram àquele estado geral como peças de máquina.

É que os americanos traziam da vida civil e mecânica, a sua disciplina natural. Nos Estados Unidos, todos sabem mais ou menos o que seja a atenção à lei e o preço da sua desobediência. Governantes e governados se respeitam e se acatam, porque ambos respeitam e acatam a autoridade maior que é a Lei. As suas forças armadas, parcela daquele todo, não podiam fazer exceção. Não se viu o Congresso dos Estados Unidos punir públicamente um dos mais bravos e valorosos generais – o General Patton – por ter esbofeteado um soldado em crise histérica? A posição não cria imunidade. A falta ou o crime de uma autoridade, por mais alta que seja, não desmoraliza as instituições. Errar é humano e ninguém deixa de ser humano ao ocupar um alto posto. O que desmoraliza as instituições é a impunidade daqueles que mais as deveriam respeitar.

Cada um deve saber quais os seus direitos e quais as suas obrigações. Mas esta mentalidade legal, que sem dúvida existe mais perfeita ainda, em países como a Suécia, Suíça, Inglaterra, etc., não é conseqüência espontânea. É, sim, fruto da vigilância permanente do espírito de ordem e de legalidade, vividos há séculos. O mais é uma simples decorrência destas. Soube que na Suíça, durante a guerra, nas repartições, nos escritórios particulares, no comércio, os civis trabalhavam equipados. A seu lado, estavam as carabinas, a sua máscara, os capacetes de aço. A um toque de alarme, todos estariam prontos e correriam a seus postos para defender a pátria. E cada um sabia o que fazer. Dir-se-ia que o comando americano poderia prescindir da vigilância que mantinha, pois o soldado – um civil que vem de uma vida organizada e legal – por si mesmo saberia manter aquela constância e equilíbrio no cumprimento do dever. Porém, a autoridade, seja qual for, não pode esmorecer na constância da perfeição. A natureza humana é fraca e tende à inércia. Conseguida a ordem, é preciso mantê-la como a uma chama que se não pode apagar.

Vi, naquele transporte, como se conseguiu isto. Cada um é responsável pelos seus atos e obrigaçòes da mesma forma que é senhor dos seus direitos e vantagens. Mas, o comando não espera pelo esmorecimento daquele padrão para remediar. Diariamente, o subcomandante do navio, acompanhado de um taquígrafo sai à inspeção mais rigorosa que eu já vi. É como se fôra a primeira, após um ano de ausência e, entretanto, é o comum de todo dia. De lanterna à mão, vai a toda parte. Entra em banheiros e privadas, camarotes e alojamentos, corredores e recantos, cozinhas e frigoríficos. Nada escapa! De lanterna acesa, agacha-se para ver por baixo dos móveis, esfrega o dedo sobre as coisas em busca de qualquer sujo, abre os armários e gavetas para ver a ordem interna, interroga, observa. Qualquer falta, uma simples torneira que vaza, uma caixa de descarga sem funcionamento uma desobediência regulamentar, ele a proclama e o taquígrafo anota.

Os nossos camarotes de oficiais, eram também visitados. Nós tinhamos de varrê-los, espaná-los, passar um pano úmido sobre o encerado, forrar as camas, limpar as pias e os espelhos e deixar à porta a lata do lixo para ser recolhida. Se na inspeção o camarote não estava “very well”, ou pelo menos “well”, a conseqüência era a cadeia.

Por obrigação acompanhei o subcomandante americano nestas inspeções e só não consegui entrar no frigorífico, porque o frio era demais... Da porta vi, porém, a ordem, arrumação notável das caixas de ovos, de frutas, de conservas. Que limpeza! De lá não emanava nenhum odor desagradável, que eu esperei encontrar em tão grande frigorífico, em meio de tão variado sortimento.

Ora, diante de uma inspeção real, assim, permanente, constante, honesta, o homem, qualquer que ele seja, compreende que é inútil deixar de fazer as coisas como devem ser feitas. A ordem, a obrigação, torna-se a rotina. E como o hábito é a repetição de um ato, os homens ao fazerem, todo dia, às mesmas coisas, habituam-se por si mesmos, dispensando que se lhes dêem ordens a cada passo, que se lhes dêem instruções a cada momento, que ocasionariam má vontade, atritos, vexames, gritos, sermões, relaxamento da autoridade, insensibilidade de caráter e confusão.

Em lugar dessa vigilância permanente (não sobre os homens, porém sobre as tarefas), imagine-se uma inspeção assim: um dia a tropa toma conhecimento de que um general ou outro oficial superior, no dia tal visitará o quartel. Um frenesi apodera-se de todos. Os soldados exercitam-se para uma apresentação exemplar. É um corre-corre, um limpa-limpa, um esfrega-esfrega, um lava-lava medonho. Bronze e metais ficam espelhando. O pátio do quartel, as privadas, banheiros e a cozinha são objetos de atenções especiais. Os detritos desaparecem. Os desinfetantes entram em ação. As moscas são apanhadas de surpresa numa guerra mortal. As coisas são arrumadas e o que sobra é empurrado para dentro das gavetas e gavetões. Ao chegar a autoridade, tudo está perfeito! Uma ordem do dia traduzirá a satisfaçào do general e todos terão uma folga justa e merecida após aquela azáfama terrível.

Mas o dia seguinte é um Deus nos acuda, pois muita coisa não será encontrada. A poeira, volta. As moscas, indecisas e descrentes, também. O mau cheiro... onde haveria de estar o mau cheiro, se não no seu lugar lógico e natural? A cozinha? Um mercadinho de detritos, folhas, carnes expostas, panos sujos, o diabo!

Uma inspeção dessas é uma escola de ilegalidade, de fraude à lei regulamentar. É a indisciplina comandada porque ensina o soldado a ludibriar o seu superior.

Nós possuimos unidades modelos. Os nossos quartéis são, em geral, bem construídos. É fácil, por conseguinte, manter a limpeza. Onde existe vassoura e água corrente não pode haver mau cheiro. Se não existem detritos e se as latas ou depósitos de lixo estão bem fechadas, não pode haver moscas. É verdade que ao nosso homem falta, infelizmente, os princípios elementares de higiene. Não sabiam forrar as camas direito, o que constituía vexame para as enfermeiras. Presenciei isto no 7º Hospital em Livorno. Entretanto, apesar de ter passado ali alguns dias, as ligeiras palestras que mantive com eles, surtiram o efeito desejado. O elemento humano é bom, moldável. O que lhe falta é educação. Aulas bem orientadas com utilização do cinema educativo mostrando o certo e o errado, seria o remédio. Alias, nós temos o Instituto Nacional do Cinema Educativo que poderia prestar ótimos serviços. As organizações cinematográficas que fazem filmes medíocres poderiam contribuir para a educação do povo pelo cinema, desde que o Governo incremente a produção de películas desta natureza, concedento prêmios anuais que as estimulem. Para os cozinheiros, copeiros, ajudadntes de cozinha, etc., só mesmo um microscópio... No dia em que se apanhar a água aparentemente limpa, os alimentos, aparentemente bons, e se fizer este pessoal ver pelo microscópio os “bichos” em movimento, neste dia acreditarão no micróbio e terão certeza de que “nem tudo que brilha é ouro”...

A disciplina americana parece diferir da nossa, precisamente porque ela não se exerce sobre os homens, individualmente, acompanhando-os como uma sombra feitora, porém sobre os resultados, os atos, as obrigações que deles se esperam. O regulamento manda que se faça assim. Cada um sabe como deve fazer. Então que se cumpra. Se o resultado não está de acordo com os preceitos regulamentares, com as determinações superiores, pune-se imediatamente. Este processo de dar autonomia ao homem, empolgando-o pela responsabilidade, pode ser exercido em qualquer circunstância e sobre qualquer elemento. Durante as oportunidades que tive de comandar, inclusive centenas de soldados descontentes, retirados de vários pelotões e que ficaram no acampamento em Francolise, fiz experiências que me parecem satisfatórias. Orientar o homem pela doutrinação; deixá-lo livremente e sob sua responsabilidade executar a ordem; puni-lo ou distingui-lo no final, se deixou ou não de cumprir o dever. Depois que a ordem, o asseio e tudo o mais se tornarem verdadeira rotina, o homem adquiriu o bom hábito e dificilmente o perderá.

E) Existe uma disciplina própria da Linha de Frente.

Já vimos acima, mais ou menos, a pressão que a vida de quartel imprime no conscrito, acrescida dos complexos da nossa formação nacional.

Outrora, as elites se dividiam entre os que permaneciam nas profissões liberais e os que seguiam a carreira das armas. Dessarte, os seus filhos não se encontravam no quartel porque a tropa era formada pela massa comum e desfavorecida. O civil que ia ter no quartel era o “homem do povo”, que saía do “comando paisano” para o “comando militar”.

Se observarmos bem este aspecto da nossa formação encontraremos conclusões interessantes quando à estrutura mental das chamadas “Classes Armadas” e das “Classes Liberais” – militares e “paisanos”.

A proporção que nos democratizamos, estes sintomas vão desaparecendo. Houve, também, a grande influência da simplicidade e civilismo do Exército dos Estados Unidos. Acontece, todavia, que o militar em contacto pemanente com a grande proporção de soldados incultos, no esforço de fazer do nada – um homem respeitador da lei do quartel, um disciplinado, absorve grande parte daquela rusticidade. A falta de formaçào educacional e legal do soldado prejudica bastante a disciplina consciente. O inculto não pode transformar-se de uma hora para outra, senão pelo grito, pelo medo, pelo receio do comandante. A sua mentalidade não pode ter a noção co comportamento pelo dever, pelo direito, o que deveria ser moldado desde o berço no equilíbrio jurídico e legal de toda a nação. Em geral, a força é a condição primária que respeita. Desta forma o comandante, o militar corre o risco de influenciar o espírito pela autoridade, pela indiscutibilidade dos seus princípios, de suas ordens. Se isto ocorrer, pode ele caminhar para a intolerância.

Quando a disciplina não é consciente, o soldado despersonaliza-se, inibe-se, anula-se na inconstância, não adquire um ritmo racional no cumprimento de suas obrigações.

Ao pisarem na Itália ao som das bandas militares americanas, os soldados começariam a perceber cada vez mais a diferenciaçào disciplinar entre a sua vida no Brasil e na guerra, entre o que ele chamaria o “Exército de Caxias” e o “Exército da FEB”. Haveria de dar o seu “murro”, porém, sentindo o prazer da camaradagem, o valor da sua personalidade, a importância da sua “maioridade militar”.

Ainda sobre a impressão das ordens e contra-ordens, do manda e desmanda, da “última forma”, antes de seguir para a linha de frente ele traduziu em verso, com a música de “Deus Salve a América” o seu desapontamento com o “Saco A”, saco que acompanha o combatente que vai para o front:

Chegou a hora
Da cobra fumar
Saco “A”
Às costas
Ó que murro
Que a gente vai dar!

Pega o saco!
Larga o saco!
No lugar!
Chegou a hora
Da cobra fumar!


É preciso notar, entretanto, que a rigidez disciplinar decresce, naturalmente do quartel para os acampamentos de paz ou retaguarda da guerra, e desta para a frente de combate.

F) A disciplina na Frente, é mais humana.

Na guerra, os expedicionários encontraram, por entre múltiplos fatores,ambientes para a expansão da personalidade. Aquele rigor do quartel deixou de ser necessário. Em plena campanha a disciplina aforuxou as rédeas. Certas exigências - necessárias no quartel - perderam a razão de ser. Esta diferenciação disciplinar era flagrante.

Em combate, cada um está entregue ao seu destino, quanto aos deveres que deve cumprir. Um simples erro pode ser a morte. No oficial desaparece o “professor”; no soldado, acabou-se o “aluno”. Ambos eram combatentes e a teroria dava lugar à prática.

O instinto de conservação passaria a ser o disciplinador comum. Se um soldado procedesse de forma imprudente, seus próprios colegas reprová-lo-iam. Ninguém está disposto a sofrer as conseqüências de atos alheios, com sacrifício da vida.

Meditei sobre isto no deslocamento através do lindo e fértil Vale do Pó. Parecíamos perdidos. Os alemães desapareceram e nós precisávamos tomar contato com eles. Montamos os caminhões ainda com o sol bem alto. Corremos estrada afora num ambiente de desolação. Não há nada tão triste e silencioso como as ruínas recentes de um combate. Tudo o que antes representava vida palpitante de uma civilização transformava-se na figura mais completa da morte. Pelos campos, animais inertes. Galhos retorcidos, cortados, perfurados. Árvores prostradas nos rios. Ali, viadutos arqueados em destroços sobre a a estrada. Barreiras derramando-se pelas estradas. Estradas desequibrando-se em despenhadeiros. Vilarejos transformados em diabólicos e confusos depósitos de materiais de construção. Uma parede em pé guarda ainda um quadro. Por entre os montões das ruínas, estranha exteriorização de uma cozinha como uma natureza morta. As aves fugiram. Nem um cão vagabundo. Só o silêncio e uma poeira tênue e estática amortalham o espaço como se fosse, realmente, um vale de pó. De intervalo a intervalo, os agachados tanques tedescos apontam ainda os seus canhões inúteis e ostentam nas chapas de aço camufladas as queimaduras e os efeitos dos certeiros impactos. Desceu a noite e continuamos a correr atrás do que parecia um fantasma.

Tive a impressão de que estávamos passando pelo mesmo lugar. Os dez pneumáticos do meu caminhão gemiam sobre a terra revolvida das estradas carroçáveis. (Por que não íamos pelas auto-estradas? Estariam minadas? ) Aqui e ali letreiros alemães indicavam campos de minas: - MINEN. - Tê-los-iam abandonado na pressa ou as plantaram de propósito em terreno limpo para nos confundir? Depois, uma noite lívida, transparecia numa claridade de velório. Um frio penetrante e seco veio juntar-se ao da nossa inquietude. (O nosso avanço pelo Vale fôra tão rápido que constituiu um problema para a artilharia e para a aviação. Lugares tidos como ocupados pelo inimigo já estavam em nosso poder. Foi por isto, talvez, que um avião aliado bombardeou Zocca quando esta cidade já havia sido tomada por nós.)

(Neste deslocamento, escapei de um desastre, exclusivamente por ter cumprido o que julguei ser o meu dever. Na corrida um dos três caminhões do meu pelotão passou à frente. Numa rápida parada, tendo verificado este fato, desejoso de ter sempre à mão a minha tropa e como seria dificíl manobrar naquela estrada carroçavel, deixei o carro onde vinha e me transferi para o da frente. Alguns momentos depois, aquele caminhão que eu deixei virou desastrosamente num precipício. Morreram o motorista e o sargenteante da companhia. Os soldados ficaram todos feridos e com várias fraturas e só foram encontrados, parece-me, pelas tropas do 11º Regimento, no dia seguinte. Só o meu sargento auxiliar escapou ileso por ter saltado do caminhão, no momento exato da virada.)

Os caminhões corriam e corriam perseguindo uns aos outros como se ninguém quisesse ficar para trás. Numa encruzilhada não vi mais ninguém à minha frente. Para que lado teriam ido? Saltei e decidi a direção a tomar, observando pelo tato as marcas dos pneus na poeira da estrada.

O inimigo poderia estar oculto. As vilas emergiam de repente como cemitérios abandonados. Disparávamos as nossas metralhadoras, jogávamos granadas. Só as detonações ecoavam ao longe.

Corríamos há bastante tempo por entre parreiras erguidos como caramanchões sem fim. De repente, uma decisão superior nos faz parar. Então, o silêncio caiu sobre nós como um ruído imprudente. Vi como os soldados permaneciam quietos, embuçados em seus capotes. Ninguém ousou minorar a frieza com um cigarro. Nenhuma palavra...

Não me agradava aquela parada. Estávamos entre bosques, expostos na claridade branca da estrada. Se o inimigo estivesse oculto ali? Bastaria destruir os caminhões das extremidades e nos varar com as suas “lurdinhas” antes que, atônitos, pudéssemos tomar posição.

De repente, um lindo canto de pássaro, de dentro do bosque cortou o silêncio que nos envolvia. Os alemães tinham o costume de fazer comunicações, imitando pios de aves noturnas. Do outro lado do bosque, bem perto de nós, outra ave lançou ao ar o seu gorgeio estridente, como resposta. O sargento ao meu lado perguntou-me:

- Ouviu, tenente?

- Ouvi.

Os soldados, apesar da fadiga, mesmo parados os carros não se levantaram dos seus lugares nem fizeram ruído. Evitaram descer até para verter água, fazendo-o de cima dos caminhões, com a natural precaução das minas traiçoeiras.

É interessante observar que os combatentes, usando capacetes e field-jacquets americanos, não traziam distintivos. Mas os sentidos se multiplicavam para ver e ouvir. Nestes momentos, os homens adquirem “olhos de jeep”...

Na frente, o perigo irmana a todos. Do soldado ao sargento, do comandante do pelotão ao da companhia, a identificação é em geral completa. O instinto, polariza os homens, reunindos-os. O exemplo é decisivo.

Conta-se que a um aspirante recém-chegado ao front fôra entregue o comando de uma posição avançada e perigosa. As provisões só podiam chegar até lá, em mulas e assim mesmo à noite, por causa da interceptação do inimigo. (Entregar um comando destes a um aspirante, sem antes promovê-lo à tenente, parece-me um erro de efeito psicológico desastroso para os comandados veteranos. A uma tropa é aborrecido a chegada de outro tenente. Todos desejam saber quem será. E se vem logo um aspirante...) Mas, como ia dizendo, logo na primeira ou segunda noite, os tedescos deram um “golpe de mão” vigoroso sobre aquele posto avançado. O pobre aspirante não pôde conter a sua tropa e, com ela, bateu em retirada. Entretanto, um cabo que estava em um dos flancos comandando um grupo, aferrou-se ao terreno e repeliu o ataque. Foi um sucesso! Já lhe haviam destinado uma condecoração. Quando o cabo chegou à companhia receberam-no chamando-o de herói.

- "Herói coisa nenhuma", replicou o cabo, "se eu soubesse que estava sozinho, eu tinha é caído fora, também!"...

Ante esta declaração, não levaram mais em conta a realidade e desistiram da condecoração ao cabo...

Quando chega a hora decisiva, não se escolhem lugares especiais.

É conhecido o fato de um coronel, homem de coragem notória, que antes do bombardeio destruidor de Montese, estimulara os seus comandados, considerando-os afiados, dizendo-lhes:

- O meu batalhão está uma navalha!

No momento do combate, ele fôra examinar a situação realmente perigosa dos seus homens ante o bombardeio inimigo e tivera de repente que mergulhar na terra, é lógico. E o interessante é que, no meio daquela confusão, um soldado teve a presença de espírito de gritar:

- Aí, navalha!...

Mas, voltando à disciplina instintiva, imposta pelo medo, ante aqueles soldados quietos, silenciosos, sentados nos caminhões depois de mais de dez horas de viagem, recordei as nossas manobras no Brasil.

Nos combates simulados, o soldado sabe que o inimigo é uma ficção. Sabe também que os tiros e as explosões não têm outra conseqüência a não ser o ruído. Não há minas escondidas, nem perigo de vida. A disciplina neste caso, é muito mais difícil. O soldado cava um abrigo, sem entusiasmo. Não se protege devidamente. Expõe-se, escolhe lugares pouco apropriados para se deitar, etc.

Nas marchas de aproximação ou nas patrulhas noturnas, fazem-se ruídos incríveis, acendem-se as lanternas, quebram-se galhos de árvores. Era comum, ouvir-se bem longe, diálogos como este:

- João! Ó João!? Onde está você!?

O outro respondia aos berros:

- Tô aqui!

- Espera por mim!!

E era aquele zunzum, aquela conversa, uma praga, um palavrão...

Na guerra, porém, o perigo real é um disciplinador que está presente e vigilante. O homem não precisa que se lhe recomende silêncio. Ele mesmo gostaria de ter os pés tão leves, que nem tocassem o chão. Já não digo para evitar a explosão de uma mina oculta, mas para não estalar uma folha. O soldado que no Brasil, durante os exercícios, usava a sua picareta sem entusiasmo, sob um bombardeio gostaria que a sua cabeça fosse uma perfuratriz que fizesse o seu corpo penetrar na terra como um arado... Ele cava com ardor desconhecido. Será capaz de cavar até com os dedos e as unhas, se não tiver ferramenta.

O tenente e o sargento, neste ponto, sentem um grande alívio. E os soldados mais autonomia. Por eles mesmos, terão mais cuidado com as armas automáticas, com os fuzis, funcionamentos e lubrificação. Não se esquecem das suas rações alimentares, da ferramenta de sapa, acompanham com maior vivacidade os movimentos dos seus comandantes.

Dão e recebem igual consideração.

Em compensação, os comandantes (cabos, sargentos, tenentes e capitães) vêem aumentar outras responsabilidades, surgir outras preocupações. Sim, porque o mesmo medo que disciplina e coordena, o mesmo instinto de conservação desenvolvendo a vivacidade do homem, pode criar, também, inibições e recalques, variando de pessoa, de conformidade com seu temperamento.

Conheci um soldado que se apegara à religião. Homem respeitador e querido pelas senhoras italianas que dele se despediam quase com lágrimas nos olhos e não se acanhavam de beijar maternalmente as suas faces de “mouro”. De uma feita, ao ouvir um ruído intermitente de avião, de aparência tedesca, corri ao celeiro para ordenar que se apagasse uma luz tênue que transparecia. Ao chegar ali, encontrei uma vela acesa e este soldado de joelhos, tirando o têrço que outros também de joelhos, respondiam religiosamente.

Qual não foi porém, a minha surpresa, ao terminar a guerra, ao verificar que este mesmo soldado, devoto e sério, transformara-se num verdadeiro mulherengo, e vivia desfiando um rosário de safadezas...

Outros podem dar-se às perversões de caráter, ao saque, à brutalidade e à embriaguez ou mesmo à covardia absoluta e incapacidade para o combate. Felizmente, estes casos mais graves, contituíam exceção, pois em geral somos um povo de boa índole, mormente se tivermos em conta, o abandono educacional em que vivem os nossos patrícios.

Durante os avanços, ao chegar a um determinado ponto, têm a tendência natural para se espalharem, por curiosidade de ouvir dos habitantes locais informações sobre os inimigo, de ver e observar os costumes, as coisas que os cercam. Se o estacionamento é mais prolongado, surgem as namoradas, as amantes...

Houve um soldado no meu pelotão, que por duas vezes desapareceu por uma das casas que pontilham os campos italianos, sem comunicar previamente ao sargento. Era um sertanejo nordestino, contador de histórias, que fazia todo o mundo rir nos momentos mais sérios. Por duas vezes, na hora de deslocar, faltava-me este soldado. Adverti-o sériamente de que o abandonaria desarmado onde estivesse, se repetisse a falta. Precisamente, quando do cerco da 148ª Divisão alemã, quando íamos deslocar em marcha, ele não estava presente. Por causa de um homem, não poderia retardar o deslocamento do pelotão. Só na madrugada seguinte, este homem me apareceu. Quando foi levado à minha presença, disse com uma espontaneidade que lhe revelava o estado de espírito:

- “Virge Maria, seu Tenente!”

Embora fingisse indiferença pela sua chegada e o incumbisse de uma missão, sem levar em conta seu cansaço, senti um grande alívio ao vê-lo de volta. Não sei como nos encontrou. Penso que não fôra ele um sertanejo, ter-se-ia perdido. Mas era necessário dar o exemplo que, aliás, o corrigiu. Após a guerra, jamais repetiu a falta. Nos momentos de deslocar, vi-o sempre equipado e pronto. Era o primeiro...

Em geral, porém, o pelotão, a companhia, vive como família. Depois dos combates, como o de Montese, vi-os em repouso, reunidos, irradiando toda aquele pressão psicológica de um dos maiores bombardeios já vistos na Itália. Ora riam nervosamente comentando um fato, uma passagem perigosa, o aperto de um camarada:

- Puxa, fulano passou como uma listra!

Às vezes, reproduziam a aproximação das granadas em onomatopéias que mais pareciam a buzina de um Ford primitivo: fon-fon, fon-fon... É só pena que voa...

Falavam sem parar. Riam a valer. A pretexto de recordar um camarada que não voltou, que morreu (o próprio Capitão que fôra atingido por uma chuva de estilhaços) comentavam os fatos com sentimento, fisionomias abatidas e caíam num silência de pedra, angustiante. Nós todos estávamos sentados ali. O Capitão subcomandante da companhia, que assumira o comando em pleno combate, também. Os soldados interrogavam-no, nas conversas, pedindo o testemunho deste ou daquele comentário. Jamais tinha eu visto tamanha simplicidade, tamanha camaradagem. Aquilo era um desabafo. Segundo me contaram houve quem vomitasse sangue com o deslocamento de ar provocado pelas explosões. Realmetne, o ruído era um só. O bombardeio extraordinário da nossa artilharia e se não me engano dos norte-americanos e ingleses juntavam-se ao do alemão, transformando aquela zona num verdadeiro inferno. (Eu vi no meio do campo, como que abandonada, uma bateria de poderosos holofotes aparentemente antiaéreos, colocados por trás de um monte e visando o lado inimigo. Pelo que me disseram, tinham por objetivo clarear as cristas dos morros ocupados pelos tedescos.)

Aquela vida em comum, vinculada pela ansiedade, sobrepôs-se às emoções humanas, às posiçòes sociais, aos postos hierárquicos e proporcionou ao soldado brasileiro as balizas de uma grande diferenciação entre a vida militar na paz e na guerra, entre o quartel e a campanha, fazendo-os distinguir o Exército Nacional, o Exército de Caxias, da FEB.

G) A falsa disciplina afasta a compreensão dos soldados.

Uma das coisas por que os praças em geral tinham antipatia, era o rigor diciplinar que os divorciava dos oficiais. Já não me refiro à diversificação dos ranchos, alojamentos, dos chamados “círculos”, mas à maneira de falar, à rigidez das atitudes e principalmente à continência em toda parte, a cada canto, a todo o momento, mesmo na rua. A obrigação de ceder o lugar no bonde, no ônibus, no cinema, o que constrange, principalmente quando o soldado, cabo ou sargento vai acompanhado de sua esposa. Observei, aqui no Brasil, que muitas vezes o praça se humilha mais fingindo que não vê o superior hierárquico, parando para ver uma vitrina, tomando direção diferente, por exemplo, do que se cumprisse logo seu dever fazendo a continência. Na Itália, começaram todos a imitar o norte-americano, em cujo Exército não existem estas exigências, pelo menos na prática. Na rua, vi cruzarem-se oficiais e soldados cada um para seu lado, sem se saudarem a todo o momento. Na fila do teatro ou cinema, a vez era do primeiro que chegasse. Nos ônibus e transportes, o lugar era de quem o encontrasse vazio. Isto, a princípio, me deu a impressão de que os norte-americanos eram “apaisanados”. Mas é um engano. Quando o soldado, sargento ou oficial tem que se dirigir a um oficial superior ou se é por este interpelado para um consulta, uma informação qualquer, em plena rua, perfila-se, faz a continência com vigor militar, numa atitude correta e respeitosa como um cidadão educado trata em público um desconhecido. Vi-os, também, nos quartéis, quando se dirigem a um superior. Em serviço, o soldado norte-americano é “mil por cento” soldado. Recordo que tive que ir certa vez a um quartel americano em Florença. Quando para lá caminhava observei a atitude da sentinela, que em passadas marciais ia e vinha na calçada do quartel. Todos os seus movimentos se repetiam com precisão matemática. Chegava até à extremidade, parava, olhava de um lado e outro, fazia meia-volta (diferente da nossa) e assim de um lado para o outro, sempre na mesma atitude, sempre do mesmo jeito, como determinava o seu regulamento. Quando cheguei à altura da entrada do quartel, encontrei-me com ele. Parou, fez um movimento para mim desconhecido e só quando percebi que ele me apresentava armas e respondi à continência, foi que ele fêz “ombro-arma” e prosseguiu impassível a sua caminhada...

Tive a oportunidade de verificar em fotografias e noticiários cinematográficos de expedições científicas e civis que o sistema é o mesmo: cientistas e mecânicos, ajudantes, autxiliares, entram na mesma fila pra a “bóia”, sentam-se nos mesmos bancos. É o resultado de uma nação organizada, disciplinada em que cada um sabe quais as suas obrigações, os seus deveres, sem que a camaradagem quebre o respeito que todos devem ter recíprocamente. Contaram-me, também, que nas fábricas e oficinas norte-americanas, operários, gerentes, mestres, técnicos andam de macacão ou em manga de camisa, sendo difícil para o visitante distinguir, à primeira vista, o mestre-artífice, o técnico, o engenheiro ou químico do operário comum. À noite, numa “boite”, num “night-club” metido em seu “smoking” pode estar o engenheiro ao lado da mesa do simples operário, jantando, rindo, divertindo-se... Esta educação e esta disciplina da vida civil de padrão elevado não poderiam sofrer, dentro dos limites da organização militr, solução de continuidade.

No front, assim vivia o praça brasileiro com os seus oficiais, por força das circunstâncias da guerra, já analisadas acima. Já haviam observado o sistema norte-americano e, naturalmente, tomaram aquela modificação como sendo própria à FEB, e não como uma conseqüência do combate da guerra.

Tudo isto distanciava muito a Força Expedicionária do sistema disciplinar vivido no Brasil, acentuando cada vez mais os traços diferenciais daquilo que o pracinha chamava o “Exército de Caxias” e a FEB.

H) A rotina, mal aplicada.

Lá mesmo na Itália existia o Depósito do Pessoal, que relembrava ao soldado da frente a vida militar no Brasil. É que o Depósito, como retaguarda, tinha que manter maior disciplina, como se fosse um acampamento de paz onde os efeitos da guerra, o medo, o instinto de conservação e a camaradagem não criaram o clima mais solidário da frente.

E o homem do front sentiu isto de tal forma que consideraria um castigo se o enviassem para o Depósito. Por sua vez, os veteranos não eram bem vistos ali... A nós – oficiais recém-chegados, em aulas cheias de teorias (uma das quais afirmava que “o soldado alemão em defensiva não vestia a pele do inimigo” – princípio clássico que havíamos aprendido e que averiguei não ter caído em desuso) nos foi recomendado muitas vezes:

- Não dêem ouvidos às “histórias do front”.

O soldado da frente que batesse ali, estava frito. Não poderia sair, a não ser fugindo; tinha que ficar naquela favela feita de pinheiros abatidos, sem contato com mulheres, sem distração, deslocado do ambiente dos seus camaradas do front. Acordava com a alvorada. Tinha que entrar em forma para os exercícios de ordem unida e combates simulados... E se quisesse sair por ali apenas com o elegante e confortável gorrinho de lã ao invés do capacete de aço, caiam-lhe em cima como vespas. Não fizesse continência aos duzentos oficiais que por ali viviam para ver uma coisa! O seu descanso era o ruído das metralhadoras e das explosões das “bazookas”. Entretanto, parece-me que somente um ou outro ia bater lá. A frente precisava de soldados. Aliás, até hoje não compreendi porque as companhias viviam desfalcadas no front enquanto o Depósito mantinha milhares de soldados. No front, soldados ocupavam postos de cabo, cabos de sargento, sargentos de tenente e lá no Depósito aquele pessoal todo...

O Depósito era para os veteranos da frente a lembrança mais viva do Brasil, do quartel, no que ele tivesse de desagradável.

Quando terminou a guerra, um sargento meu foi até lá, conseguir um meio de receber os seus vencimentos. (Eu também passei três meses sem receber.) Quando o sargento voltou eu perguntei:

- Como vai o Depósito?

- Ah! Tenente, lá, a guerra não terminou ainda! Eu ia entrando calmamente e de repente quase me atiro no chão. Foi um tiroteio tão forte que eu pensei que os tedescos tinham voltado à guerra outra vez....




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Re: O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#5 Mensagem por Clermont » Dom Ago 28, 2011 6:17 pm

IV - CONCLUSÕES.

A) Problema da assistência psicológica.

É meu desejo chamar a atenção dos oficiais da ativa estudiosos e de visão larga, para este ponto, visto que apenas contribuo com o meu depoimento despretensioso, enquanto eles muito poderão fazer com os seus conhecimentos especializados em prol de um assunto de alta relevância no campo da disciplina e bem-estar do homem durante a guerra – de efeito psicológico imprevisível na formação e sustentáculo do moral da tropa.

A pressão de cima para baixo numa guerra é enorme. Toda a tropa da frente recebe o impacto de duas forças contrárias: a do inimigo que procura barrá-la por todos os meios materiais e a do Comando que a arremete contra o inimigo, usando de todos os meios materiais e psicológicos.

O homem do front tem assim o seu consciente terrivelmente comprimido pelo instinto de conservação e pelo cumprimento do dever, do que podem advir recalques e complexos incalculáveis, capazes de provocar profundos desequilíbrios físicos e mentais. Seria de mister, por conseguinte, a bem da saúde do homem que voltará à vida civilizada e da própria sociedade, que esses recalques fossem de momento em momento, sublimados por um repouso longe do front, onde o homem pudesse tomar contato com a vida civilizada de cujos hábitos e ambientes, a servidão do combate o afastara. Este é um ponto conhecido. Preciso é, pois, que seja levado em consideração como uma das teses mais importantes no planejamento da vitória sobre o inimigo.

A pressão exercida pelo Comando brasileiro foi bem acentuada. Pareceu-me, todavia, que esta rigidez decorreu da grande responsabilidade dos nossos comandantes que, apenas com uma divisão, representavam o Brasil na Segunda Guerra Mundial. Os brasileiros não podiam falhar, custasse o que custasse. Naturalmente, se se deixasse uma tropa à vontade, quase não haveria avanços... Mas, nós éramos apenas uma divisão. Se fracassássemos, seria o descrédito para a Força Expedicionária Brasileira. Daí a pressão ter sido tremenda e por vezes exaltada.

Isto criou uma mentalidade de indiferença e até de desestima pelo Alto Comando.

Surgiu um fatalismo displicente e irônico na Frente de Combate, que poderia ser traduzido nestas expressões: “Já vai tarde”, “O azar é seu”, etc. Sim, quem morresse ali, já ia tarde, envoltol no saco branco dos mortos...

A FEB foi uma das divisões mais “sugadas” e uma das que mais produziram no âmbito do 5º Exército americano. Isto já passou. É preciso, entretanto, aprender para o futuro.

O soldado brasileiro, apesar dos pesares, não teve uma assistência psicológica e mesmo material como a dos norte-americanos. (Basta observar que até oficiais feridos, quando tiveram alta do hospital, estavam sem farda brasileira, sem dinheiro, etc. Houve quem tivesse que sair com farda americana e quem se viu sujeito à contribuição de colegas e soldados numa “vaquinha”.)

Os homens saíam da frente numa proporção que talvez atinja a metade da tropa em combate. Destarte, a metade ou quase a metade não soube o que era um descanso num hotel, em cidade da retaguarda onde se distraísse e sublimasse as emoções recalcadas pelas duas pressões opostas.

Na Itália, depois de vários dias de acampamento, passei a noite numa vila às escuras e tive um desejo súbito de bater à porta de uma das casas. Parecia um absurdo. Não fui porque o italiano não iria compreender o meu gesto. Há dias, porém, que eu não via uma simples cadeira, um objeto familiar, um prato de louça ou um copo de vidro. Tive vontade de estar numa sala de visitas, sentir as quatro paredes de uma casa e todo um ambiente doméstico, enfim um recanto familiar.

É realmente duro para um homem civilizado, passar dias e meses dentro do mato, comendo em marmitas, sentando-se em bancos de madeira, sem encosto ou no chão, comendo com as mãos sujas ou as lavando muito mal no capacete de aço, longe de uma infiidade de coisas a que nos acostumamos desde crianças... É quando sentimos quanto valem objetos de que nos utilizávamos sem lhes dar maior importância.

B) A displicência dos serviços da retaguarda.

Os chamados serviços de retaguarda organizam-se em vilas e cidades, pela maior facilidade de instalações. Aí é que começam os perigos do que chamarei - instalação doméstica da retaguarda. O homem procura familiarizar-se com o ambiente, instalar-se domésticamente.

Ora, numa guerra, a população local sofre as conseqüências mais variadas. Na Itália, grande parte dos homens ausentes, deslocados, prisioneiros, aumentou ainda mais a desproporção entre o número de pessoas do sexo feminino geralmente maior e o do sexo masculino, acentuadamente entre os vinte e trinta e cinco anos. Havia falta de certos gêneros essenciais como gorduras, chocolates, doces, etc., sabão, acúcar, café couros e sapatos, tecidos, gasolina e outros produtos não vitais, mas de que os povos civilizados sentem a falta no conforto cotidiano, principalmente as mulheres, como perfumarias (baton, pós, sabonetes, talco, etc.). O combatente começa por se aproximar das casas, pela curiosidade humana de conhecer aquela gente, saber o que houve, como agiu o inimigo, quais os seus hábitos, etc. Conversa com os velhos mais acessíveis, alisa a cabeça das crianças (o combatente torna-se sentimental. Hajam vista as fotografias que leva consigo. Os prisioneiros alemães, tinham em seus bolsos inúmeras fotografias de suas famílias. O mesmo acontecia com os americanos e em ponto menor com os brasileiros). Oferece caramelos e chocolates ou conservas de suas rações. Surge, então, a mulher desejada. Daí por diante, as visitas se repetem, desanuviam-se as dúvidas, nasce a intimidade, e familiaridade. O combatente torna-se amável, dá presentes: caramelos, doces, chocolates, gêneros outros mais desejados. Entra-se, assim, na fase da “escatolagem”
(jargão da FEB: negociar com "escatoleta", alimentos enlatados) (quanto maior o pôsto, maior a generosidade, principalmente se é o pessoal que lida com os provimentos) e aí começa a história. Era uma vez...

Ora, enquanto o combatente do front está empenhado em salvar a pele e sustentar o terreno conquistado, o militar da retaguarda é tentado a uma vida doméstica, principalmente quando o inimigo não conta com superioridade aérea, como aconteceu na Itália. (Mesmo com a superioridade aérea do inimigo, é preciso notar que os ataques à retaguarda visam, em última análise, a frente de combate. A área desta é incomparávelmente inferior à daquela; esta é quem vai suportar o peso dos impactos inimigos, agravados pela irregularidade dos suprimentos pela perturbação ou desorganização da retaguarda.)

A vaidade tem mil formas. A concupiscência duas mil. O combatente da retaguarda vai amolecendo o espírito e o corpo e o resultado só pode ser prejudicial para a frente de combate, seja pela desídia, pela indiferença egoísta, seja pela utilização desonesta (sexual ou venal) dos provimentos para o regalo, volúpias e bem-estar da instalação doméstica da retaguarda. No mesmo local onde estêve o Depósito do Pessoal, instalaram-se antes os alemães, que deixaram uma cantina, aliás muito bem acabada (de madeira, pré-fabricada, e que servia para nós como Sala de Instrução), pois bem: soube que naquele mesmo local, fôra preso e fuzilado um oficial alemão por estar vendendo gasolina no câmbio negro. Quem conhece o rigor e a disciplina germânicos, pode imaginar o quanto fôra tentado este militar em vender um produto precioso de que tanto careciam os tedescos... Nada há a acrescentar, pois...

Estas considerações não têm, é óbvio, intuitos de generalizar. Nem todo combatente da retaguarda é assim. Mas o ambiente é propício ao desfalecimento moral, à quebra, pelo egoísmo, da solidariedade aos camaradas da frente, operando-se até, um movimento inconsciente de despeito e inveja àqueles que, na verdade são os verdadeiros combatentes. O aparecimento na retaguarda do combatente do front, eclipsa, naturalmente, qualquer militar não combatente, porque o fato de enfrentar o perigo e andar ileso pelas veredas da morte, dá ao homem um traço de masculinidade, uma auréola de respeito, que vêm desde os tempos mais remotos, pois os caciques, os chefes, sempre foram os mais fortes, os que lutavam e destruíam os inimigos com mais denodo e maiores riscos. Este mesmo mecanismo psicológico emergente das profundezas do inconsciente humano, operou-se em proporções muito maiores, no Brasil, quando já se havia apagado o ruído das palmas e das ovações com que o povo recebeu os expedicionários. Antes da partida, muitos se consideraram felizes em não seguir. Depois, estes homens que voltaram com uma história a contar, ostentando o mais relevante serviço que um cidadão pode prestar à Pátria, constituem sempre uma pedra no sapato de quem não foi. E um movimento surdo, talvez inconsciente, de tantos que não foram, contra tão poucos que seguiram, dissimula-se na mais velada ironia, na mais fingida indiferença e despeito. Este fato, foi agravado pelas histórias entusiásticas que os combatentes trouxeram da Itália. Fato natural, porque, passados os perigos e vicissitudes, o homem que deles emergiu os transforma em momentos de gratas recordações, acentuando sempre os mais favoráveis, mais alegres, mais agrádaveis. Por isto, muitos no Brasil, consideram a ida da Força Expedicionária Brasileira, simples viagem de turismo pela Itália... e com isto, fazem o jogo inconsciente de despeito e da ironia.

O perigo maior está no aparecimento de uma casta da retaguarda. Verdade é que, para o bom andamento e desempenho da frente, faz-se mister elementos especializados na retaguarda. Pessoas que se tornam tão aplicáveis, tão práticas que substituí-las seria um transtôrno prejudicial. Porém, a certeza de não ir para o front é mais um estímulo à domesticidade.

Numa guerra, por ser justamente um delírio, um surto de barbárie da civilização, devem preponderar os elevados padrões. Na retaguarda os princípios de honradez devem ser invioláveis, sob pena de desmoronar-se a estrutura combativa do povo e dos soldados.

C) A Campanha da Itália não foi um teste perfeito.

Nós, brasileiros, não podemos contar com o exemplo da campanha italiana. Nossas vitórias foram legítimas, indiscutíveis e honrariam qualquer força armada de qualquer parte do mundo. Não as tomemos, porém, como perfeita organização e eficiência nossa. A Itália não foi um teste perfeito, completo para o nosso espírito de organização e sob este prisma, para o Alto Comando, se bem que o tenha sido para os conhecimentos militares dos nossos oficiais e para o valor combativo e audaz dos nossos cidadãos. Incorreremos em grave erro e até em perigo para o nosso futuro, se pensarmos de forma diferente. Lá tínhamos excelentes vias de comunicações, os extraordinários meios do poderio industrial dos Estados Unidos, e uma quantidade de suprimentos de toda ordem, jamais vista por nenhum outro exército do mundo, em tempo algum. Soldado algum jamais combateu com tamanho confôrto como o soldado americano. O Comando Brasileiro, sob este prisma material, agiu encaixado dentro dos quadros do IV Corpo do 5º Exército dos Estados Unidos, esquadrinhado pela sua organização e serviços. E apesar disto, o soldado brasileiro não gozou do mesmo conforto do soldado americano. E onde estaria, então, a eficiência? É que o homem brasileiro sofre privações permanentes. O homem, quando mais rústico, mais suporta os contratempos de uma guerra que é por natureza rastejante, primitiva e burtal. Demais disto, acostumados à frugalidade, à carência e à deficiência que a nossa pobreza reflete no Exército, o expedicionário experimentou uma sensação de melhoria tal, com os provimentos e organizações americanos que chegou até a diferenciar o “Exército de Caxias” da FEB.

Numa guerra que por desgraça tivesse como palco a nossa querida América do Sul, numa vastidão destas (basta imaginar que a Itália é comparável, em superfície ao Estado de Santa Catarina), sem vias de comunicações terrestres, com estes aranhóis ziguezagueantes em plena terra, sem asfalto ou cimento, sem transportes, sem aquelas catadupas de material de uma indústria portentosa, é que teríamos, a medida da nossa organização; veríamos quanto somos primários na intensidade da vida atual, quanto os soldados haveriam de sofrer e quanto se faria necessário uma retaguarda sólida, honesta, rígida, capaz de suportar e suprir os impactos sofridos na frente.

Somos um país pobre. Uma nação reduzida, carregando, como um caracol, uma concha tão grande que nos imobiliza. Não poderíamos nos dar ao luxo dos desperdícios. Basta considerar quanto nos custam as nossas manobras, em locais preestabelecidos, acessíveis por estradas regulares e num terreno por demais identificado pelos oficiais e sargentos. Após as manobras, os nossos homens estão ressentidos, abatidos, pelos contratempos naturais de um simples combate simulado.

D) A Importância dos Serviços Especiais.

E quanto mais pobres e mais carentes somos, mais teremos necessidade de assistir o combatente, confortá-lo pelo carinho de toda a nação. E por esse motivo é preciso que as forças armadas em seus estudos, em suas observações, analisem este ponto - o dos Serviços Especiais - da Assistência Psicológica, experimentando-os desde já como um assunto tão importante como os que servem de tese nas manobras.

Os americanos levavam isto muito a sério. Nas grandes cidades italianas, requisitaram grandes hotéis e restaurantes, destinando-os aos oficiais e soldados. Havia estações de cura e campos de repouso. Os dias que o homem passava na retaguarda, eram de felicidades. Estava só como um viajante. O preço da estada, no hotel, era apenas “pro forma”, tal a modicidade da quantia. O combatente podia levar uma companheira para as refeições, pagando um pouco mais. O Hotel Excelsior, um dos mais importantes de Roma, era um deles, variando apenas a qualidade dos hóspedes. É possível que o Excelsior não tivesse conhecido dantes tamanha animação, pois as danças americanas enchiam o ambiente de uma alegria incontida. As refeições eram feitas ao som de boas orquestras. Havia flores nas mesas. E enquanto os casais se serviam como gente civilizada, um violinista vinha para junto, passeando pelo amplo salão e arrancando das cordas do seu violino acordes plangentes de belas canções.

Os restaurantes, destinados apenas aos que passavam pela cidade, tinham, também, flores e músicas regionais. Nào faltavam locais para divertimento dos homens. Night-clubs (musical box), cinemas, estádios esportivos onde lutadores se exibiam, cantinas onde se vendia de tudo e do melhor pelo preço de custo, além das distrações naturais da própria cidade.

Contaram-me que os norte-americanos, transferiram do front uma divisão completa para Monte Cattini, a fim de que repousasse nesta estação de cura.

Estas distrações e comodidades distribuídas religiosamente aos combatentes, destinavam-se a todos. É verdade que se mantinha a separação entre pretos e brancos. (Vi unidade completa constituída exclusivamente de nipo-americanos que, aliás lutaram bravamente na Itália.) Todos, entretanto, eram tratados com o mesmo desvêlo, as mesmas atenções, da mesma forma que não havia diferenças entre o tecido, as peças de roupa e as botinas de combate, os alimentos e os cigarros dos oficiais e dos soldados. Cada um, por uma necessidade disciplinar, tinha os seus lugares: hotel dos sargentos, dos oficiais e dos soldados. O conforto e os meios, eram praticamente os mesmos.

Vi em Roma, enormes caminhões cheios de soldados, percorrendo os pontos mais importantes da cidade. Por um alto-falante, o guia dava explicações interessantes sobre os locais visitados, os fatos históricos, os monumentos, as obras de arte, etc.

Penetramos muitas vezes nestes ambientes americanos e fomos sempre muito bem acolhidos por eles. Só não podíamos dormir nos hotéis, porque não tínhamos autorização especial do nosso comando. Dormíamos nas casas dos italianos onde pagávamos um preço extraordinário. Nestas condições, uma simples refeição da manhã, custava muito mais do que a hospedagem e as refeições nos excelentes hotéis dos americanos. Os que trabalhavam em serviços na retaguarda, não estavam sujeitos à pressão do perigo do combate a cada passo. Localizados perto de boas cidades, podiam visitá-las constantemente.

À par da pressão do Comando que por si criou uma mentalidade de indiferença e ironia na frente, como já acentuei acima, havia esta má distribuição nos descansos, quando o soldado não fôsse bater no Depósito do Pessoal, também mencionado supra.

Em revide, o soldado do front apelidou o soldado da retaguarda, de “Saco B”, saco guardado na retaguarda, enquanto o “A” seguia com o combatente.

Diversas modinhas, surgiram, então, traduzindo humoristicamente esta diferença psicológica entre o front e uma retaguarda, em grande parte “instalada domesticamente”.

Recordo-me, por exemplo, desta (Música de Vida Apertada):

“Ai, ai, meu Deus
Como é bom viver
Na retaguarda
Como um saco 'B'


... (Descrevia as comodidades da retaguarda para terminar dizendo que ela vivia...)

Sem tedesco ver...”

Vi certa vez um boletim reservado em que se punia um capitão muito popular em sua tropa e que suportara pesados bombardeios e andara até em duelos de pistola com o tedesco, por ser encontrada a sua companhia “alongada perigosamente” na estrada e os soldados carregando sacos às costas.

Eu já havia observado isto e procurara por todos os meios evitr este fato no meu pelotão. A causa, porém, estava em que o soldado não tinha confiança. O infante conduzia objetos adquiridos, coisas sem valor real, porém de valor estimativo, recordações que desejava levar para a Pátria. Era comum desaparecerem essas coisas, rasgando-se os sacos, ou pelo extravio dos mesmos, durante os transportes. (Eu mesmo sofri isto.) O homem era obrigado a separar o que julgava mais valioso e carregá-lo consigo. De quem a culpa? Como resultado a nossa tropa não tinha boa apresentação. As fardas bem sujas, eram lavadas pelas italianas nos estacionamentos. Até na retaguarda as lavadeiras entravam, muitas em suas bicicletas, nos acampamentos para apanharem as roupas dos soldados. (Mesmo quando, como em Francolise, os americanos puseram uma lavanderia com capacidade para cinco mil peças, à nossa disposição.)

E se não fossem os field-jacquets americanos, a nossa apresentação seria ainda pior. Depois os soldados não andavam rigorosamente equipados como julguei que acontecesse, talvez por falta de resistência física dos nossos homens.

Quando se rendeu a 148ª Divisão, cercada por nós, e que eu vi passarem ante os meus olhos milhares de soldados alemães, foi que eu observei como estavam eles equipados, bem fardados e apresentáveis.

Contava-se, não sei se por pilhéria, que um dos oficiais prisioneiros solicitara receoso que não lhe entregassem “àquele partigiano”, dirigindo-se a um nosso camarada. (os partigiani eram os maquis ou patriotas italianos, homens da resistência subterrânea, vestidos com blusões que os americanos jogaram de pára-quedas nas montanhas. Traziam um lenço em geral colorido amarrado no pescoço, e pareciam mais bandoleiros. No final da guerra, entravam nas cidades em caminhões e fizeram uma bruta confusão. Muitas vezes tive receio, porque não sabia se eram mesmo “partigiani” ou simples alemães disfarçados em fuga.)

Mas os soldados brasileiros não sentiram esta diferença de tratamento entre a retaguarda e o front, esta falta de descanso decente, daquelas distrações a que naturalmente teriam direito como participantes de um exército americano. Não sentiram, porque, vinham do desconforto e da pobreza brasileiros, e souberam defender-se de uma forma que os comandantes toleraram, mas que não deixava de ser uma burla necessária à disciplina de uma tropa.

As provisões, os agasalhos, os transportes americanos, como foi dito, por si mesmos já lhes davam um tratamento que eles jamais experimentaram no Exército brasileiro. E além disto, estavam na Itália, país pontilhado de cidades e vilas pitorescas onde a gente encontra a cada passo um marco histórico e pisa a terra com receio de topar com o crânio de algum César...

Depois da guerra, surgiram as “tochas” que eram passeios não autorizados e simplesmente tolerados pelos comandantes imediatos, no âmbito da companhia, batalhão, etc.

Se fôssem pegos pelo pessoal da retaguarda, o azar seria deles... Assim, de acordo com o posto, as viagens eram mais longas. Oficiais, e às vezes sargentos, saíam de jeeps. Economizava-se a gasolina da cozinha e dos dois jeeps da companhia, e com ela um dos jeeps poderia sair estrada afora por uma semana ou menos, de acordo com as circunstâncias. Os soldados se arranjavam pedindo carona aos milhares de automóveis americanos e brasileiros que cruzavam as extraordinárias autovias italianas. Assim, “acendia-se a tocha”, expressão cuja origem não sei. Houve quem fosse até Paris.

Não é de admirar que assim se tivesse procedido. Se muitos e muitos da retaguarda inclusive do Depósito do Pessoal, foram autorizadamente à Paris? Se eles iam à Roma e à Florencá e outros lugares onde eram hospedados em hotéis americanos, e mesmo andavam acima e abaixo bem apresentáveis e bem servidos, bem transportados, por que haveriam os comandantes do front de negar àqueles homens que arriscaram a pele e lutaram tão bravamente, um passeio e uma folga? A “tocha” foi uma justiça irregular, mas, foi uma justiça. Quando os homens descrêem da justiça, fazem-na pelas próprias mãos. O cuidado está, em que ela não falte, e em que os homens não percam as esperanças de que ela se fará.

Esta foi a razão por que os combatentes do front não estranharam. Visitaram as cidades e os pitorescos vilarejos peninsulares, alimentando-se das bem empacotadas e até camufladas rações de combate ou pagando altos preços nas “tratórias”. Penetravam nas distrações americanas ou nos bailes e saraus familiares improvisados pelos italianos, gozaram, enfim, do que lhes ofereceram.

E) E o Comando?

Apesar do respeito que devo ao Marechal, seria fantasia dizer que tenha havido afeição pelo nosso Comandante-Chefe. O Alto Comando não podia ser bem visto na frente. Nem na retaguarda. Os comentários, os apelidos, as críticas que se faziam, eram uma demonstração do que afirmo. Reconheço, como já disse acima, que esses comentários em grande parte, resultavam da pressão que todo o comando exerce sobre a linha de frente. A FEB deu um “murro” medonho. Era a primeira vez em que o Exército Nacional atravessava o Atlântico para lutar em terras da Europa. Constituíamos, apenas, uma divisão e sobre ela, sobre os Comandantes pesavam grandes responsabilidades. Embora encaixada no 5º Exército americano, tivera de adaptar-se ao complexo mecanismo militar, ianque. Os Comandantes, por amor próprio e por patriotismo, quiseram mostrar suas habilidades, a capacidade militar, e o espírito combativo dos brasileiros, ao apresentar o melhor rendimento possível e o menor incômodo aos americanos. E “vamos pras cabeceiras!”... De forma que a pressão foi grande. Na própria FEB, o pessoal do 6º Regimento se queixava de ter sido o mais “sugado”, o menos condecorado, o menos falado... Vemos, por conseguinte, que nestas condições espinhosas, o nome do Marechal Mascarenhas não seria utilizado por afeição, por estima dos soldados.

Pelo que pude observar e pelo que escutei, a estima real dos combatentes vai decrescendo da companhia até o Comandante do Regimento. Eles prezam realmente os oficiais e o comandante da companhia com quem vivem, com quem lutam, com quem sofrem. Depois, em grau menor, os comandantes dos batalhões. E assim, até o do Regimento.

Distanciados do Alto Comando, os combatentes não têm conhecimento das altas indagações e dos planejamentos dele. O que sabem é que a pressão é séria, que o Alto Comando não quer conversa, que eles, inclusive o seu Capitão, estão arriscados a ser considerados covardes por “dá cá aquela palha”... Que a missão tem de ser cumprida, custe o que custar.

Entretanto, se o pessoal do Alto comando participou de um banquete, se foi condecorado, se fez isto ou aquilo, aí sim, todos sabem logo. E os comentários são insopitáveis, incontroláveis. Mas, como o inimigo está no outro lado, e não pode “dar sopa”, o combatente descarrega a sua insatisfação no inimigo e faz blague da retaguarda... Ouvi muitos comentários, por exemplo, sobre um oficial do Estado-Maior, que surpreendera um major da Tropa prestando informações em têrmos do front, ao dizer que “as bombas estão caindo muito”. E como não perdoasse aquela falta de precisão terminológica, aparteou com ar técnico: “Bombas que o senhor quer dizer, são granadas, não é?...”

O nome mais usado na frente, pelo que ouvi, era o do General Zenóbio. Porém, a impressão não era de simpatia, pois o General Zenóbio era considerado como intratável. Ouvi contar, que o tedesco tinha conhecimento de sua visita ao front, porque, nessas ocasiões, era sempre provocado por nossos elementos. O azar, porém, é que só quando o General saía, era que a “pena voava...”

Muito conhecida foi esta modinha cantada com o samba “Atire a primeira pedra”:

Covarde sei que me podem chamar
Mas, eu em Castello não hei de voltar...
Atire a primeira “bomba” tedesco
Que eu quero ver Zenóbio avançar...


Daí as minhas conclusões ao encontrar na Diferenciação Técnica, na Diferenciação Geográfica e na Diferenciação Disciplinar entre a vida de paz, de quartel no Brasil e a vida de guerra na Itália, o motivos materiais e psicológicos pelos quais os pracinhas distinguiram o Exército Territorial do Exército Expedicionário; o Exército de Caxias, como sempre ouviram denominar o Exército no Brasil, distinguia-se daquele “Exército” diferente em técnica, sistemas, transportes, provisões, etc., vivendo em outros ambientes geográficos e lutando dentro de princípios disciplinares bem outros que os do quartel.

Na realidade, a FEB era o próprio Exército de Caxias (como não poderia deixar de ser) usando os fields-jacquets, os capacetes, os agasalhos, os cigarros, as comidas, a gasolina, os transportes e as comodidades americanas, e avançando pelas terras da Itália unido pela confraternização dos filhos de uma mesma Pátria, aproximados pela solidariedade do sofrimento, da luta e do perigo comuns. Cobertos pela mesma bandeira - “auriverde pendão da minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança.”

Estas são as minhas impressões.

F) Considerações finais.

As conclusões que poderemos recolher do que foi exposto, são as de que a maior garantia de uma nação repousa no bem-estar, na educação, na capacidade de produzir riquezas, no desenvolvimento industrial e agrícola dos seus filhos. Quem não tem saúde nem educação nem disciplina civil, nem é capaz de produzir alimentos e utensílios para viver dignamente em tempos de paz, está vinculado ao fracasso e à derrota ao sobrevir uma guerra.

Veja-se o exemplo dos EUA: em menos de três anos, a poderosa nação do norte transformou-se no “Arsenal das Democracias” enviando mantimentos, armas de todos os tipos, máquinas leves e pesadas a dezenas de povos e mobilizou, instruiu e equipou milhões de soldados que combateram bravamente em todas as frentes do conflito. Observe-se que foi precisamente nesta época de trabalhos hercúleos e responsabilidades tremendas que os Estados Unidos construíram para nós a poderosa usina siderúrgica de Volta Redonda.

Por que conseguiram isto? Porque os Estados Unidos eram o maior parque industrial do mundo. As terras habitadas, os homens educados na visão prática do trabalho metódico, racional, padronizado; fábricas e organizações gigantescas levantadas pelo espírito empreendedor dos seus cidadãos; comunicações de todas as espécies, rápidas, confortáveis.

Estas considerações, eu as faço com o pensamento voltado para a América Latina e especialmente para o Brasil.

Atualmente, atravessamos um período sem ameaças de invasão ou de guerra de conquista. O único país que, se quisesse, poderia conquistar-nos, seriam os Estados Unidos. Mesmo sem falar na “bomba atômica”, eles desbaratariam todos os exércitos sul-americanos reunidos, antes de podermos tomar fôlego. Felizmente, o povo americano do norte não tem idéias de conquistas territoriais, pois como todo povo amante da liberdade, respeita a liberdade alheia. O exemplo das Filipinas a quem os Estados Unidos concederam a independência é decisivo.

Entretanto, o mundo é cada vez menor e não somente as populações crescem como necessitam um padrão de vida mais elevado. Hoje, ninguém cobiça as nossas terras imensas, que nós não conseguimos, ainda, habitar, aproveitar, desenvolver e civilizar. Quem pode prever as reviravoltas do mundo dentro de um século? Mesmo que não haja nenhum perigo de agressão futura, precisamos agir em benefício desses milhoes de patrícios que vivem a era do barro em pleno século atômico e prover o essencialmente necessário afim de que os nossos filhos e netos possam manter uma vida realmente civilizada.

A América Latina está com um atraso de mais de cem anos e precisa correr para apanhar em tempo o comboio da civilização e do progresso, que já passou, que já se perde de vista, lá adiante...

Pois bem: em lugar de nos unirmos em prol dos nossos povos, gastamos uma fortuna colossal em armamentos de guerra. Ora, se o Chile compra armas, a Argentina não pensará que ele se prepara para combater o Japão. Se a Argentina emprega milhões e milhões, adquiridos durante o regime democrático, em tanques, canhões e aviões a jato, o Brasil não pode imaginar que os nossos irmãos do sul estejam em preparativos para atacar seres de Marte... E toda a América do Sul se atira numa corrida armamentista, na qual se esgotam as nossas enfraquecidas economias e disponibilidades.

As grandes divergências que separam o mundo oriental do ocidental, serão solucionadas pela paz ou pelo conflito armado entre os grandes. Teremos pela frente grandes dificuldades a resolver. Não será com a nossa fraqueza, com a nossa mortalidade infantil, com esta falta de gêneros de primeira necessidade, com esta carestia, com o pauperismo, enfim, que haveremos de influir nos problemas de paz ou de guerra que agitam o mundo.

Os Estados Unidos só se envolveram em questões internacionais na I Grande Guerra. Até então, preocupavam-se com os problemas internos, montando o extraordinário poderio econômico que ostentam hoje. Em 1914, eles eram, já, um peso respeitável na balança internacional. Não porque possuíssem grandes exércitos, o que não ocorria, e sim porque já haviam edificado uma indústria colossal, uma agricultura racional e sólida num país cortado por vias de comunicações de primeira ordem. Sua marinha mercante era das primeiras. Eram eles capazes de construir desde a bicicleta até o couraçado, os altos fornos siderúrgicos, as máquinas que fazem máquinas.

E o que somos nos nesta era atômica? Não fabricamos bicicletas. As máquinas que usamos, desde o ventilador elétrico, são importadas. A base da nossa agricultura é a enxada, o processo rotineiro e a fome, aliada às moléstias, espreita o nosso povo.

Penso, portanto, que seria este um interessante trabalho para os homens de prestígio e inteligência das Américas: lançar as bases de um planejamento para a América Latina, a fim de que possamos desviar grande parte dos nossos recursos em obras de real contribuição ao desenvolvimento dos nossos povos. Em lugar de tanques – tratores, niveladoras de estradas, escavadeiras. Em lugar de canhões e metralhadoras – arados e utensílios agrícolas e industriais.

Se fosse absolutamente impossível reduzir o exército territorial, talvez fosse viável uma organização em que, substituindo outras tropas, surgissem mais unidades de engenharia, inclusive engenharia sanitária, de forma que se pudesse empregar grandes contingentes no trabalho de construções de estradas, pontes, saneamento dos campos e de cidades do interior, etc...

Dir-se-á que a função do Exército é bem outra. Direi, todavia, que a situação do Brasil é de emergência e o problema do povoamento do campo e da fixação do agricultor deve ser atacado de rijo, sem perda de tempo. Um serviço desta ordem prestado pelo cidadão convocado seria mais valioso à segurança e fortalecimento naiconal do que a simples instrução militar.

Porque é preciso deslocar o eixo de equilíbrio do litoral para o interior. Todo o mundo o afirma, todo o mundo o proclama. Mas não é com palavras e discrusos, que os agricultores ficarão nos campos e os habitantes do litoral deixarão as cidades.

Esses problemas que vêm de longa data não se resolvem com decretos, carimbos e portarias.

Os Estados Unidos têm, também, os seus problemas. Roosevelt, ao se referir às quinhentas mil pessoas de vida incerta, fazia graves advertências, embora este número fosse insignificante para a população dos Estados Unidos, de cerca de cento e trinta milhões de habitantes. Dizia o grande estadista:

“As famílias migratórias, a situação de suas crianças, crianças que não têm lar e famílias que não podem deitar raízes, que não podem viver numa comunidade... Isso exige uma consideração especial. Mas estou tentando achar um lugar para elas. Isto significa, nos têrmos mais simples, um programa para o repovoamento permanente de pelo menos um milhão de pessoas na bacia de Colúmbia e numa porção de outros lugares. E lembrai-vos que o dinheiro gasto com isso, depois de um projeto cuidadoso, será devolvido ao governo dos Estados Unidos em somas muitas vezes maiores, num tempo relativamente curto”.

“Não há dúvida de que nosso futuro está em perigo quando aproximadamente um milhão de crianças em idade de freqüentar um colégio elementar não estão na escola, quando centenas de distritos escolares e mesmo alguns Estados inteiros não tem verbas para boas escolas. O que quero dizer realmente é isto: gostaria de imprimir na primeira página de todos os jornais dos Estados Unidos uma lista dos mais atrasados distritos escolares e dos Estados mais atrasados em matéria de instrução nos Estados Unidos. Este tratamento seria rude, mas toda gente nos Estados Unidos poderia ficar sabendo onde havia as piores condições de saúde e de educação.”

E mais estas palavras lapidares que deveriam pesar nas consciências de todos os brasileiros:

“Pelos olhos da criança é que devemos olhar a nossa civilização. Se pudermos apresentar em linguagem simples algumas das necessidades básicas da infância, veremos mais claramente as questões que desafiam a nossa inteligência.”

“Supomos que, para ser feliz, uma criança tem de viver num lar em que encontre calor, alimento e afeição, que seus pais cuidem dela quando ela adoeça; que encontre na escola os professores e os elementos necessários a uma educação, que quando cresça haja para ela um emprego e que um belo dia possa estabelecer seu próprio lar.”

“Quando considerarmos estes elementos essenciais para uma infância feliz, sentimo-nos entristecidos por saber que há muitas crianças que não podem ter o que acabamos de supor.”

“Preocupa-nos o futuro da nossa democracia quando as crianças não podem ter as coisas que se reconhece significarem segurança e felicidade.”

A Segurança Nacional está em povoarmos a terra imensa deste país. Não somente povoá-la, porém, dar ao povo os meios educacacionais e técnicos indispensáveis ao trabalho compensador de extrair da terra e das máqunas os meios de uma subsistência decente, compatível com a civilização que o mundo já conquistou. Pois, se no presente, não paira sobre nós a ameaça de invasão e conquista deste patrimônio colossal que os nossos antepassados nos legaram, devemos aproveitar a oportunidade de alcançar o comboio do progresso e preparar o corpo e o espírito para as surpresas do porvir.

Roosevelt ao definir os deveres da democracia, apontava, com felicidade, os rumos que o futuro nos reserva:

“A democracia deve inculcar em seus filhos a capacidade para viver e assegurar as oportunidades para o exercício dessa capacidade. O êxito das instituições democráticas não é medido pela extensão do território, pelo poder financeiro, máquinas ou armamentos, mas pelos desejos, esperanças e satisfações profundas dos indivíduos, homens, mulheres e crianças, que formam a sua cidadania.”

“Nossa segurança não é unicamente uma questão de armas. Forte tem de ser o braço que as brandir, clara a visão que as guie; insubjugável a vontade que as comande.”

___________________________________________________________________________

José X. Góis de Andrade, 1º Tenente da Reserva, Infantaria. Pernambuco, 1916. CPOR do Rio de Janeiro, 1944. Voluntário da FEB, embarcou com o escalão do Recompletamento de Pessoal, indo para o Depósito do Pessoal, e daí, transferido para o 6º RI, 7ª Cia, durante o combate de Montese, assumindo, posteriormente, o comando do 3º Pelotão. Medalhas de Campanha e de Guerra. Advogado na vida civil. - Extraído de “Depoimento de Oficiais da Reserva Sobre a FEB”. 3ª Ed. 1950.




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Re: O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#6 Mensagem por Túlio » Qua Dez 07, 2011 6:38 pm

Texto esplêndido. Vale a leitura e reflexão... :wink: 8-]




“Look at these people. Wandering around with absolutely no idea what's about to happen.”

P. Sullivan (Margin Call, 2011)
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Re: O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#7 Mensagem por Reginaldo Bacchi » Dom Jan 29, 2012 4:28 am

“Depoimento de Oficiais da Reserva Sobre a FEB”. 3ª Ed. 1950, é um livro famoso.

Leitura obrigatória de todo aquele que quizer conhecer a história da FEB.

Depois deste, leiam os livros de Cesar Campiani Maximiano.

Bacchi




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Re: O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#8 Mensagem por Wingate » Seg Jan 30, 2012 9:03 am

As organizações cinematográficas que fazem filmes medíocres poderiam contribuir para a educação do povo pelo cinema, desde que o Governo incremente a produção de películas desta natureza, concedento prêmios anuais que as estimulem.
As tropas norte-americanas tinham o PRIVATE SNAFU, um personagem de desenho animado criado especialmente para alerta e instrução dos soldados:




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Re: O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#9 Mensagem por Andre Correa » Seg Fev 06, 2012 9:49 am

Muito obrigado por ter postado Clermont...
Vale mesmo muito a leitura e reflexão sobre o que era realidade nos anos 40 e ainda é hoje... :|

[009]




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Re: O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#10 Mensagem por Clermont » Seg Ago 13, 2012 7:00 pm

IMPRESSÕES DE UM INFANTE SOBRE O COMANDO.

Por Demócrito Cavalcanti de Arruda, 1949.

Dois aspectos se destacam, em relação à tropa, na atuação do Comando: o militar e o humano.

Sob o aspecto militar, o Comando impõe-se à tropa pela eficiência da organização e treinamento dos combatentes para a guerra e pela sua habilidade em campanha, definida nesta lei muito simples e muito importante, de conseguir a vitória sem sacrifícios inúteis.

Sob o aspecto humano, é a capacidade de compreensão e o interesse pelos subordinados que fazem o prestígio da Comando jundo do soldado. Sabemos que o Comando é uma equipe de trabalho debaixo da orientação de um Chefe, para a tropa, porém, o Comando é, concreta e visivelmente, a personalidade do Chefe. E, na realidade, ainda é a pessoa do Chefe, com as suas qualidades e deficiências, os seus hábitos e idiossincrasias, quem caracteriza o Comando.

Dentro desse espírito, fixemos algumas impressões de um infante sobre o Comando da FEB na Itália.


ATUAÇÃO MILITAR.

Observemos, inicialmente, o quadro modesto onde teve de operar o nosso Comando.

Ao ocupar as primeiras posições na frente, em setembro de 1944, a tropa brasileira limitava-se a um pequeno destacamento, "Combat-Team", aproximadamente de cinco mil homens: um regimento de infantaria, um grupo de artilharia, uma companhia de engenharia, uma companhia de saúde e outros pequenos elementos complementares.

Só, em meados de novembro daquele ano, a chegada de novos contingentes do Brasil, permitiu a organização de uma divisão de infantaria completa, na linha de frente, ou seja, quinze mil homens. Outras remessas de soldados, no total de dez mil homens, destinavam-se ao recompletamento das baixas e à manutenção dos serviços auxiliares: Correio, Banco do Brasil, hospitais, cemitério, etc.

Portanto, sete meses e meio de campanha, quatro dos quais com a frente estabilizada, e uma simples divisão de infantaria - eis os modestos elementos da experiência do nosso Comando. Acrescente-se a sua incorporação a uma unidade superior americana, o IV Corpo de Exército, do 5º Exército americano, de quem recebia todas as diretrizes fundamentais e secundárias, e eis definido o modesto papel do nosso Comando nas operações da Itália.

Incluída a FEB na organização militar americana e desta se beneficiando, como raiz num solo feraz, é fácil perceber que não foram os problemas de estratégia ou de logística, com grandes manobras de permeio, os que ocuparam a atenção do nosso Comando. Mesmo porque não acreditamos que o nosso comando estivesse habilitado para enfrentar questões dessa natureza. Os seus problemas foram bem mais simples e e elementares decorrentes do emprego de uma simples divisão de infantaria como unidade combatente e do seu funcionamento, vindo dos americanos todos os elementos necessários. Problemas, por conseguinte, mais de coordenação e distribuição dos meios provenientes dos escalões superiores, do que propriamente de concepção e organização.

Dentro deste quadro restrito e rigorosamente delimitado, indícios não faltaram da inexperiência do nosso comando, ou da sua incapacidade de previsão.

Sobre as condições deficientes da organização e treinamento da FEB, leia-se, nas páginas deste depoimento coletivo, o testemunho de vários dos seus oficiais, e é do próprio Comandante-Chefe a confissão sobre o estado lastimável de instrução e treinamento com que a tropa brasileira chegou à Itália e, neste estado, foi empregada em operações de responsabilidade.

En campanha, a situação de um inimigo desprovido de espírito ofensivo, em pleno processo de uma derrocada próxima, poupou-nos de conseqüências mais sérias das fraquezas do nosso Comando, ao mesmo tempo que realçava a responsabilidade e o espírito de iniciativa dos pequenos comandos: pelotões, companhias e batalhões. Pois, a verdade é que, taticamente, a guerra na Itália, no setor da FEB, foi uma guerra das pequenas unidades.

Com efeito, seja pela compartimentação variada do terreno na Toscana e contrafortes dos Apeninos, seja pelos pequenos efetivos lançados em frentes demasiado extensas (em setembro de 1944, o Regimento cobria uma frente de 13 quilômetros; em outubro, de 20 a 30 quilômetros, quando os regulamentos militares prevêem uma frente de três a quatro quilômetros...), as missões recebidas tornavam-se tarefas exclusivas das pequenas unidades, agindo isoladamente, sem ligações imediatas, que respondiam, assim, pelo êxito ou malôgro das operações.

Uma rememoração dos feitos hoje incorporados à nossa tradição militar, confirma a observação. Na fase inicial, Camaiore foi esforço de uma companhia reforçada com outros pequenos elementos; Monte Prano, obra de uma patrulha; Monte Valimono, conquista de uma companhia, como o foram Monte Acuto, Prano e Fiano. No Vale do Serchio, uma progressão de quinze quilômetros, culminada com a ocupação de Barga e Galicano, foi jornada de um batalhão. Os louros de La Serra foram de uma companhia, como Castelnuovo foi de um batalhão e, ainda, Montese e Zoca. De tropa equivalente a um regimento foram as vitórias finais de Colechio e Fornovo.

Em contraste, quando vimos o Alto Comando empenhado, diretamente, numa operação, presenciamos o revés em Garfagnana e quatro ataques sangrentos e fracassados no Monte Castelo, com um epílogo que se tornou famoso, quando o insucesso não deixava mais dúvidas, do General comandante da operação ir embora, dizendo ao comandante do regimento em apuros: "Coronel, assuma o Comando!"...

A guerra na Itália, no setor da FEB, sob o ponto de vista de comando, foi essencialmente empresa de pequenos escalões e foi mais esforço dos tenentes e capitães do que propriamente dos oficiais superiores.


ATUAÇÃO HUMANA.

Que é que faz a força de um General? Indagava o 1º Cônsul Napoleão, no Conselho de Estado, em maio de 1802, e ele mesmo respondia:

"As qualidades civis, o golpe de vista, o espírito, o cálculo, os conhecimentos administrativos, a eloqüência, enfim, o conhecimento dos homens. Tudo isto é civil. O General que mais realiza é o que reúne as qualidades civis."


Sob o aspecto humano, foi de penosa mediocridade a impressão que nos deixou o nosso Comando na FEB. Faltou-lhe qualquer sopro de grandeza, principalmente de grandeza humana. Nossos chefes, de modo geral, se apegam mais à letra de um regulamento de disciplina, por exemplo, que proíbe o inferior de fumar na presença do superior, ou não retirar a mão da pala, na continência, enquanto não receber autorização, do que à conquista da confiança dos homens pela tolerância, pelo tato, pela compreensão e interesse dos sentimentos dos subordinados. A conseqüência é que em lugar da cordialidade, existe nas fileiras uma surda hostilidade; a má-vontade, em vez de uma solícita cooperação; direi mesmo uma atmosfera de temor que se exprime na desconfiança com que o nosso pracinha se aproxima da maioria dos nossos Generais ou oficiais superiores. Porque, a maioria das vezes em que um soldado encontra o seu superior é dentro da rigidez protocolar do serviço e de uma calculada austeridade que só deixam raiva e decepção nos homens. Cria-se uma atmosfera de constrangimento para estes que, até em licença, preferem desviar-se do caminho a ter contato com os seus Chefes.

Essa atmosfera psicológica constitui um dos primeiros choques de todo o oficial da reserva ao entrar na caserna e confesso que, durante dois anos e meio de estadia no Exército, foi uma das coisas que, negativamente, mais me impressionaram.

Muitas razões existirão para explicar este comportamento dos nossos oficiais superiores diante dos soldados: a formação defeituosa da Escola Militar, talvez embebida de padrões prussianos, certo espírido de casta, a ignorância maciça dos nossos convocados, etc. Uma coisa, porém, é certa: os nossos Chefes pouco contato têm com a tropa, com os homens que constituem a tropa. À medida que sobem as funções, mais se acentua esse fato. Os comandantes de regimento já conhecem mal os seus soldados e os generais não passam do círculo dos oficiais do seu Estado-Maior. As suas visitas são raras e protocolares, indo, quando muito, aos postos de comando das companhias, nas visitas de inspeção. Mesmo com os oficiais inferiores, os seus contatos se restringem a umas impressões dadas, monologadamente, num salão nobre do corpo, em meio do silêncio pesado dos ouvintes.

Na guerra, apesar do exemplo contagiante dos americanos, essa situação pouco mudou; as razões para o pouco contato se acumularam e os soldados poucas vezes viam os seus generais, a não ser quando iam para retaguarda, para serem, então, admoestados sobre um botão que faltava na túnica, sobre as botinas mal engraxadas, sobre uma continência mal feita, ou qualquer mesquinharia dessa espécie para homens que acabavam de sair dos "fox-holes" ou trincheiras da frente.

Sobre o nosso Comandante-Chefe, ouvi o testemunho de um S2 de outro batalhão, oficial portanto de Estado-Maior do comando dessa unidade, que me disse tê-lo visto, em seu batalhão, apenas duas vezes em toda a campanha da Itália: após a conquista de Castelnuovo e após a rendição da 148ª Divisão alemã, ocasiões, diga-se de passagem, bem propícias para toda a gente da retaguarda vir à frente e deixar-se fotografar em profusão, como aconteceu.

Em meu diário de tenente de uma companhia de fuzileiros, registrei, em sete meses e meio de campanha, uma única visita do comandante do regimento e outra do Comandante-Chefe, confinada esta, ao comando da companhia, numa época de dias inteiros de pasmaceira, e não é do meu conhecimento que ele tenha estado mais vezes em nosso batalhão.

Não se diga que as atribuições de um General-Comandante de uma divisão sejam tantas que venham a privá-lo do contato da tropa, ou que tenha tanta responsabilidade que deva ser poupado dos incômodos da frente. Ao contrário; os exemplos e as observações feitas na luta levam os comentadores a exigir até mesmo a presença dos comandantes de corpos de exército na linha de frente. Leio, por exemplo, num estudo sobre "os imponderáveis do combate", do tenente-general R. S. Mc Lain, veterano americano, observações dessa ordem, que qualquer infante subscreverá inteiramente:

"A coragem no campo de batalha convém, não apenas aos comandantes de pelotão e companhia, mas pelo menos até aos comandantes de corpo de exército. Quando um batalhão se detém, é preciso que alguém o impulsione para diante; se o comandante do regimento não é capaz, o comandante da divisão, o subcomandante ou algum outro oficial tem que tomar a iniciativa, dar o exemplo e arrancar a unidade. Isto nem sempre se consegue mediante simples ordem.

Quando um Comandante, pelo menos, de corpo de exército para baixo, não visita seus batalhões de primeira linha com freqüência, esse fato é, por si, um indício evidente de que lhe faltam qualidades de Chefe."


E é do supremo comandante ocidental - Eisenhower - essa anotação, magnífica pela oportunidade, sobre os preparativos de invasão da Europa:

"Os comandantes mais graduados passavam o máximo de tempo possível em visita e inspeção das tropas. Os registros feitos por um oficial mostram que em quatro meses, do dia 1º de fevereiro a 1º de junho (1944), eu visitei vinte e seis divisões, vinte e quatro aeródromos, cinco navios de guerra e incontáveis depósitos, usinas, hospitais e outras instalações importantes. Bradley, Montgomery, Spaatz e Tedder tiveram programas semelhantes. Estas visitas, por entre uma série de conferências e de reuniões de Estado-Maior, eram necessárias e valiosíssimas."


Visitas de alguns outros oficiais superiores, tivemo-las, é verdade, quando acompanhavam algum oficial americano que o IV Corpo enviava, ou como as que o
Comandante da Infantaria fazia imprudentemente, algumas vezes, com um séquito de ajudantes de ordens a percorrer, em horas calmas, as posições da frente, sem nenhum plano, e para desespero dos que aí permaneciam, porque, daí por diante, essas posições, assim reveladas, passavam a ser objeto de concentrações de fogo inimigo.

Ressalvadas essas visitas negativas, podemos assegurar que os nossos altos chefes nunca conheceram, exatamente, as nossas posições avançadas e a conseqüência mais séria é que nunca avaliaram, nem podiam avaliar, adequadamente, a vida e os sentimentos dos homens dos "fox-holes", bem diversos dos homens do Quartel-General.

Típica dessa ignorância das posições avançadas, é a informação que se lê, por exemplo, à página 110 do livro "A FEB pelo seu Comandante", resumida nesta nota do calendário da FEB, à pág. 257:

"Novembro, 14 - Início da defensiva agressiva da 1ª DIE. O II/6º RI conquistou e ocupou a Cota 670."


Para os componentes do batalhão citado, isto é um enorme disparate, porque a operação indicada acima nunca houve. À nossa companhia, 4ª Cia, coube exatamente ocupar parte dessa cota, no flanco direito do batalhão, aí permanecendo todo o inverno, de 2 de novembro a 3 de março, com exceção de um intervalo de quinze dias em fins de novembro. Nessa posição substituímos tropas da 1ª Divisão Blindada americana, em "fox-holes" cavados nas encostas Sul e Oeste da Cota 670, mantendo os alemães as contra-encostas Norte e Leste, numa distância média de 80 metros. Essa, foi a linha entregue pelos americanos e que permaneceu até princípios de março quando, só então, foi atacada e ocupada.

Informações levianas, como a citada, sobre uma posição avançada de responsabilidade e onde nos conservamos quatro meses a fio, sofrendo, aí, o batalhão 75 % das suas baixas na Itália, só se explicam pelo desconhecimento completo do terreno e, principalmente, pela falta de contato que existia entre a massa dos combatentes e o Comando.

Desconhecimento que também se estendia a questões da própria organização básica dos combatentes, conforme tivemos ocasião, mais de uma vez, de descobrir entre surpresos e deliciados.

Assim é que, certo dia, em fins de julho de 1944, ao apresentar-se um oficial ao Comandante-Chefe da FEB e anunciar-lhe, como é de rigor disciplinar, a função que, então, exercia de subcomandante de uma companhia de fuzileiros (a 2ª do 6º RI), o General disse-lhe, ingênuamente: "eu não sabia que havia subcomandante em companhia de fuzileiros"!...

Outra feita, no dia 31 de agosto daquele ano (todos esses detalhes estão anotados em vários "Diários de Campanha", um documentário precioso para a história da FEB...), numa das suas raras visitas à tropa, ao lhe ser apresentada uma seção de morteiros 60 mm de uma companhia de fuzileiros, ainda no I Batalhão do 6º RI, Sua Excelência se admirou que a seção tivesse três peças, indagando, em seguida, quem era o oficial comandante, sendo-lhe informado que não havia nenhum oficial porque... pela organização, a função era própria de um modesto 3º sargento!...

Se no terreno tático, relativamente simples, aconteceu tal alheamento do Comando em relação à situação avançada dos homens, é fácil imaginar-se o desencontro que existiu, no terreno dos sentimentos, entre a tropa e o Comando. Desencontro que, quase sempre, foi divórcio e, algumas vezes, foi revolta, contida apenas pela compreensão unânime e instintiva de evitar uma situação que, ocorrendo em solo estrangeiro, se poderia tornar humilhante para as nossas forças armadas e dolorosíssima para o conceito do nosso povo.

Uma situação de extrema contenção, viveram-na, pelo menos, todos os integrantes do 1º Escalão da FEB, nos acampamentos do vulcão em Nápoles, em Tarquínia e Vada, em conseqüência do pouco tato do nosso Comando. Uma tremenda vaia coletiva, vaia de cinco mil homens, que então assistimos; uma impertinente convocação dos sargentos, transtornada pela presença, em massa, de uma oficialidade sombria e os loucos tiroteios de acampamento que se deram, ficaram, no espírito dos que os assistiram, como testemunhos de uma situação que quase foi explosiva graças, exclusivamente, à incompreensão e pouco tino do nosso Comando.


(continua...)




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Re: O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#11 Mensagem por Clermont » Sáb Ago 18, 2012 1:22 pm

(...parte final)

LEGENDA AO ACASO.

1) "Espírito Democrático".


Independente das instruções baixadas pelo Comando para a censura da nossa correspondência na Itália, - censura irritante pela obsessão de cortar qualquer vago comentário pessoal que lhe parecesse político, porém compreensível até certo ponto, principalmente quando o expedicionário falando da ditadura italiana parecia ofender a nossa ditadura cabocla, - houve outro fato curioso de censura política na história da FEB. Foi a censura existente no noticiário de "O Cruzeiro do Sul", o jornal quinzenal da FEB na Itália.

Órgão oficial da Divisão, os seus primeiros números foram modelo da imprensa então existente em nosso país: ou não tinham notícia alguma de interesse, ou as notícias vinham dosadas segundo as conveniências da "Hora do Brasil". A política era proibída. A partir de certo momento, entretanto, a evolução interna do país começou, timidamente, a filtrar-se nas colunas do jornal e, de número a número, a seção, uma modesta seção de terceira página, foi tomando corpo e despertando interesse na tropa. Foi quando viemos a saber do congresso de escritores de São Paulo e da sua declaração de princípios, da promessa das eleições, da anistia política, dos primeiros comícios, notícias que, evidentemente, sacudiam nosso torpor e nos davam um motivo de fé em nosso país.

Mas, o Comando parece não ter entendido assim, porque, logo depois, reagia à sua maneira. A maioria dos combatentes ainda hoje ignora, por exemplo, que houve duas edições do número 3º do jornal, a primeira tendo sido recolhida por causa do noticiário político, modesto noticiário, por sinal, que trazia do Brasil e que, em boletim reservado, destinado à leitura dos oficiais, tivemos conhecimento de severa advertência do Comandante-Chefe ao oficial responsável pelo jornal (seu grande amigo pessoal), prevenindo-o e responsabilizando-o da perturbação que tal noticiário, no entender do Comando, estaria provocando no espírito da tropa. Por instruções, ainda de cima, os diretores dos pequenos jornais em circulação nos regimentos (o precursor deles foi o "E a Cobra Fumou", no 6º RI) foram chamados ao gabinete do comando e gravemente admoestados sobre o aparecimento de comentários políticos. Felizmente, as coleções desses jornais foram guardadas para se avaliar a origem desses ingênuos temores; mas, naqueles dias, inadvertido ainda sobre a evolução interna do país, era dessa forma que o nosso comando dava mostras do seu espírito "democrático"...

2) Racismo.

Outras manifestações do espírito democrático do nosso Comando, já conhecêramos anteriormente, inclusive algumas do mais puro racismo.

Em 1943, quando o nosso regimento foi designado para fazer uma demonstração física em São Paulo e se tratou da seleção e organização das turmas componentes, veio uma ordem surpreendente, partida de um general: "tirem fora os negros!" A ordem não foi cumprida, mas houve uma posterior, recomendando colocá-los no meio das turmas, evitando a testa e as pontas.

Igual espetáculo ocorreu no Rio, em março de 1944, quando se preparava um desfile da infantaria expedicionária. Nas vespéras da sua realização, lá veio do mesmo Comandante, já nosso conhecido, a ordem: "Excluam os negros!" O problema era que, excluídos os negros - e por aproximação, também os cafuzos, os mulatos, os morenos, etc. - pouco restaria da nossa infantaria. A ordem, mais uma vez, foi desconhecida; mas, não pudemos deixar de guardá-la em nossos espíritos como testemunho sobre a conduta do nosso Comando.

3) Palavra de honra.

Aconteceu isto na Vila Militar, às vésperas do nosso embarque para a Itália. O General-Comandante da Infantaria, um dia, entra de surpresa no quartel e manda formar todo o regimento. Enquanto entram em forma, todos se perguntam: que iremos ter? Alguma notícia de embarque?

Não - o que trouxera o General fôra coisa diferente. Naquele tempo, as unidades expedicionárias de São Paulo e Minas haviam sido concentradas no Rio. Em conseqüência, todos os fins de semana, centenas de soldados, com licença ou sem ela, se escapuliam para uma visita à família, com idéia de que aquela talvez fosse a sua última despedida. Era um movimento intenso e irreprimível nas estradas, que o boato da rua logo caracterizou como deserção em massa. Os oficiais da tropa conheciam o fenômeno: a maioria dos soldados ia embora entre a sexta e o sábado à noite, para voltar na segunda-feira; alguns demorariam um dia ou dois; só os mais afoitos ficariam uma semana. O certo é que todos voltavam. O Comando controlando, certo dia, as faltas nos quartéis, assustou-se e pensou que fosse mesmo deserção. Daí, aquela visita inesperada ao quartel.

Formado o regimento, em linha de companhias, oficiais à frente, no estádio interno, o General, acompanhado dos seus oficiais, encaminha-se para a arquibancada e, pelo microfone, faz veemente apelo ao cumprimento do dever, reprovando aqueles que estariam tentados a fugir. De repente, o General muda de tática e resolve dar um golpe teatral. Com voz pausasda, diz ele:

"Eu sei que neste regimento não há nenhum covarde. Mas, se alguém não quiser ir para a guerra, eu dou a minha palavra de honra de que nada lhe acontecerá. Ao contrário, eu mesmo arrumarei a sua desconvocação e darei a passagem de volta para casa. Esta é a minha promessa de honra. Quem não quiser ir para a guerra, que saia de forma e dê dez passos à frente!"


O silêncio acompanhou as últimas palavras do General. Intimamente, nenhum de nós acreditaria existir no seio da tropa algum candidato a ir para casa com a pecha de covarde. De repente, um murmúrio vindo das fileiras trouxe uma nota de sensação: um sargento e três soldados tinham-se apresentado, aceitando os termos da oferta do General. Queriam ir para casa, mesmo tachados de covardes. Enquanto na tropa a preocupação de cada um era saber do vizinho quem fôra e quantos foram, a estupefação veio coroar a cena: irritado com o gesto daqueles quatro simplórios que tinham tomado ao pé da letra a sua palavra de honra, o General acabara de ordenar o recolhimento deles ao xadrez...

4) Encontro com o Comandante-Chefe.

De um encontro ocorrido no dia 3 de novembro de 1944, em Porreta-Terme, Itália, entre a oficialidade do nosso batalhão e o Comandante-Chefe, - encontro, aliás, que foi o único, e provocado por nós, em toda a campanha - guardo duas impressões muito vivas do modo de agir daquele que foi o nosso condutor na guerra.

A primeira impressão refere-se ao modo como tratou aos tenentes, então presentes; a segunda, a uma curiosa solução dada a uma dificuldade nossa do momento.

A - O nosso problema. O II Batalhão do 6º RI fôra destacado da tropa brasileira e pôsto à disposição do comando de um grupamento blindado americano, para substituir elementos seus em Torre de Nerone - Cota 670, posição de responsabilidade, a cavaleiro da estrada de Pistóia-Bolonha, próxima de Vergato. Saído, na noite de 1/2 de novembro de suas posições à esquerda do Serchio, o batalhão viajara 120 quilômetros durante todo o dia 2, para o vale do Reno, com a previsão de se fazer a substituição na noite de 3/4. O alojamento na noite de 2 fôra ruim e o reconhecimento das posições, feito pelos oficiais durante o dia 3, completado com uma troca de informações com os americanos, convenceu-nos da impossibilidade material de fazer a substituição naquela mesma noite.

De um lado, o esgotamento físico dos homens, com três noites seguidas sem dormir, fora a fadiga que já traziam de posições anteriores e, o que era mais grave, uma deficiência pesada de material em todas as subunidades, como morteiros, metralhadoras, munição (a munição dos blindados era de calibre diferente da das nossas armas), principalmente, do precioso material de transmissão: rádios e telefones. Do outro, a responsabilidade de guardar uma posição conquistada duramente, uma semana atrás, e que já suportara cinco contra-ataques, ilhada numa linha de alturas todas em mãos alemãs.

A solução natural era adiar a substituição por 24 horas, tempo suficiente para o descanso e reequipamento dos homens. Foi o que ocorreu a todos e foi o que o comandante do batalhão aprovou, ouvidos todos os oficiais. Com essa solução, não só concordou o comandante americano da Torre, mas foi quem mais apontou a sua necessidade, devido às deficiências apuradas em nosso material. Restava entrar em contato com o comandante do grupamento blindado, com sede em Porreta, para obter a autorização oficial.

Mas, ao chegar em Porreta, soube-se da presença do Comandante-Chefe brasileiro. Naturalmente, em vista disso, resolveu o comandante do batalhão expor a situação ao General, antes de se entender com o comandante americano do setor. Cientificado da pretensão dos oficiais, por um ajudante de ordens, o General se dispôs recebê-los.

B - Contato com os tenentes. Cansados, enlameados e preocupados, os oficiais foram conduzidos a uma das salas do magnífico balneário que servia de posto de comando e, aí, aguardaram a chegada do Chefe que havia muito não viam.

Esse, apareceu pouco depois, rodeado de oficiais do seu Estado-Maior e, na sala, o seu primeiro gesto foi falar alguma coisa, em voz baixa, a um dos seus oficiais que logo transmitia, em voz alta, uma ordem surpreendente: "O General ordena que os tenentes se retirem da sala. Só o major e os capitães, aqui, devem permanecer!"...

Os Tenentes? Importará saber que 80 % dos que foram à guerra, repousam nos cemitérios dos quatro cantos do mundo? Que são, esses, os únicos chefes que vivem, integralmente, a vida do pracinha, que conhecem a sua situação e, em conseqüencia, são as melhores fontes de conhecimento da tropa? Que é sobre eles, afinal, que repousa a sorte dos planos de batalha, quer atacando ou defendendo, quer vigiando ou patrulhando? Era aos seus tenentes que Patton costumava se dirigir e, às vésperas da arrancada da sua avalanche blindada, que o levaria da Normandia à linha do Reno, ele visitava todas as divisões do seu Exército, para reunir os comandantes de pelotões e companhias e dirigir-lhes a palavra.

O nosso futuro Marechal agiu de modo oposto: ao defrontar-se, pela primeira vez, com a oficialidade de um dos seus batalhões, a sua primeira ordem foi mandar que os tenentes se retirassem. É possível que na origem de uma ordem dessa espécie estivesse o fato da maioria daqueles tenentes serem da reserva...

C - Solução do Problema. Saídos os tenentes, o General, sem indagar, sem informar-se, sem tratar de saber primeiro qual a razão exata da presença daquela oficialidade ali, como teria feito qualquer chefe de mediano senso crítico, ou qualquer atento chefe de empresa civil, o General começou a falar, como se aquela gente estivesse fugindo ao cumprimento do dever, recusando cumprir uma ordem, ou acovardada diante de uma missão difícil. Com um exórdio patético sobre "o nome do Brasil, o prestígio do Brasil, a Bandeira do Brasil, a honra", etc., o General encaminhou o seu discurso por aí, para desapontamento e constrangimento daqueles oficiais presentes, contidos em silêncio pela rígida interpretação da disciplina.

Um capitão, entretanto, timidamente, pediu licença para falar. O General nem lhe prestou atenção. O capitão repete a tentativa: "Com licença, General!" "Cale-se! O Sr. não tem nada a dizer."

- "Mas, General", insistiu o capitão, com nitidez e veemência: "O Sr. está enganado. Tudo isto que o Sr. acaba de falar não se trata conosco, nem é nada disto que o Sr. acaba de dizer. Ninguém está se recusando a subir a Torre de Nerone."

- De que se trata, então? perguntou supreso o General.

- "Simplesmente disto: é que estamos sem munição, com muitas armas estragadas, sem rádio, sem telefones."

A indignação do General voltou-se para o comandante do batalhão: "Major, como é que o Sr. deixou o batalhão ficar nestas condições?"

Não me recordo, exatamente, da resposta do Major; porém, dois meses de contato com o inimigo e 30 quilômetros de progressão, com chuvas, lama, montanhas, respondiam pelo Major. E as requisições de abastecimentos que não eram atendidas em tempo, explicavam o resto.

O General entendera, afinal, o problema. Qual seria a sua solução?

A solução veio tão inesperada, quanto a capacidade de quem a concebera: o batalhão subiria de qualquer forma, naquela noite, para substituir os americanos.

- "Mas, General, e a munição? E as armas automáticas, os morteiros? E os rádios, os telefones?"

O General: "Os Srs. não têm facas? Cada soldado não recebeu uma faca? A munição irá depois. De qualquer forma, o batalhão subirá hoje, porque, se for preciso, eu assumirei o comando do batalhão e os meus oficiais de Estado-Maior, o comando das companhias."

Apoiados nas "facas" do Marechal, o batalhão subiu, na noite daquele mesmo dia, disposto a enfrentar, quixotesco, o ferro das metralhadoras e morteiros nazistas. Mas, devo acrescentar que passou pelo dissabor de ver os americanos se recusarem a entregar-lhe a posição, até que fôsse recompletado seu material, o que só ocorreu 48 horas depois, provocando, nesse meio tempo, uma concentração imprudente de homens e movimento que despertaram a atenção do alemão e o recrudescimento dos seus bombardeios, com o cortejo fatal de baixas na tropa.

Nos quatro meses que iríamos passar ilhados na Torre de Nerone-Cota 670 - meses de um longo e frígido inverno europeu - entre 3 de novembro e 5 de março de 1945, e onde o nosso batalhão iria deixar 77% dos seus mortos e 72% dos seus feridos de toda a campanha italiana, nunca mais esqueceríamos, em nossa solidão, o Marechal com as sua "facas"...


____________________________________________

Demócrito Cavalcanti de Arruda, capitão da Reserva, Infantaria. Paraíba, 1918, CPOR de Recife, 1938. Estágio, 1939. Convocado como 2º Tenente em dezembro de 1942 e classificado no 6º RI. Promovido a 1º Tenente em setembro de 1943. Comandante de Pelotão de Petrechos da 4ª Companhia do 6º RI, embarcou com o 1º Escalão da FEB, passando, depois, a Subcomandante de Companhia. Ferido em Montese em 17 de abril de 1945. Medalhas de Sangue, de Campanha e de Guerra do Brasil. Bacharel em direito - Extraído de “Depoimento de Oficiais da Reserva Sobre a FEB”. 3ª Ed. 1950.




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Re: O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#12 Mensagem por Clermont » Qua Mar 18, 2015 6:42 pm

AS BASES DA LIDERANÇA.

General NELSON WERNECK SODRÉ

Se é possível generalizar o que sentimos e ouvimos dos companheiros, a idéia das novas turmas de oficiais, no início da vida profissional, vincula-se muito à impressão, bastante presunçosa, mas até certo ponto natural e compreensível, de que lhes cumpre introduzir sérias alterações na estrutura militar, que o estabelecido é um amontoado de erros e de rotina, que a tarefa que lhes cabe é, portanto, de acabar com esses erros e essa rotina, alterando tudo: o Exército, em suma, estaria perdido sem eles. Esses sentimento de superioridade, essa atitude missionária, não é negativa em si mesma. Revela, antes, a vocação autêntica, a confiança da juventude em sua força. Não importa que haja acentuada dose de ingenuidade nessa atitude, ela ajuda, impulsiona, estimula. É o antídoto da rotina, do conformismo, da aceitação fácil e cômoda, da satisfação vazia, da inércia esterilizadora. Pouco a pouco, no contato com a realidade, aquele impulso tende a enfraquecer-se; no choque com a resistência passiva mas inexorável da rotina, começa a diluir-se. O pior, no entanto, está nas decepções que se sucedem, nas desilusões, nos sonhos dissipados, nas feridas que se abrem quando a ingênua oferta de esforço é acolhida com escárnio, às vezes, com indiferença, quase sempre. Menos do que as crianças, mas ainda com restos intatos de seu amor à verdade, à sinceridade, os jovens dificilmente perdoam a burla, ressentem-se depressa com o acolhimento hostil às suas iniciativas, não toleram a acomodação.

Ter tido, como primeiro contato com a organização militar em que nos enquadraríamos, a triste experiência da Contabilidade da Guerra não foi começo auspicioso. Segunda decepção nos esperaria em São Paulo: ao nos apresentarmos ali, eu e Miguel de Assis Vieira, fomos levados ao General Daltro Filho, comandante da 2ª Região Militar, que nos informou, para princípio de conversa, que o 2º Grupo de Artilharia de Dorso, unidade que escolhêramos para servir, já não estava em Jundiaí, mas em Itu, junto ao 4º Regimento de Artilharia Montada. Assim, tendo o direito de escolher a guarnição onde servir, e nada nos sendo esclarecido sobre a mudança havida, teríamos de servir em outra, que não escolhêramos, em unidade que não era a nossa.

(...)

Chegamos a Itu de trem (início de 1934) e, depois de indagar onde era o quartel, subimos a longa rua em rampa que sai da estação da Sorocabana para o centro da cidade; o regimento ficava do outro lado, na entrada da cidade pela rodovia que a ligava a São Paulo. Na subida, com Miguel, dei duas topadas nas lajes da calçada; prometi que, se desse a terceira, não ficaria ali. Saímos, por fim na larga praça em que ficava o quartel, imóvel adaptado para fins militares ao tempo de Calógeras, grande ministro administrativo. Antes de ser utilizado pelo Exército, fôra o Colégio São Luís, dos jesuítas, e guardava todos os sinais da ocupação e da finalidade religiosa, inclusive a igreja, encravada na enorme massa edificada que se estendia por toda a extensão da praça.

Era construção imponente, cuja fachada os comandantes anteriores haviam tido o senso de não alterar, colocando, apenas, na entrada principal e na secundária, símbolos militares. Desde a entrada principal, ao longo do edifício central, estendia-se largo corredor, do qual saíam outros, que percorriam pavilhões laterais, e onde numerosas portas se abriam para salas da administração, gabinetes de comando, dependências burocráticas. Logo depois da entrada, à direita, estava a porta que dava para o gabinete do comandante; à sua frente, à esquerda, estava a escada que dava acesso ao pavimento superior. O comandante da guarda informou-nos que era hora do intervalo entre o expediente da manhã e o da tarde, o comandante estava almoçando em casa. Mas havia oficiais no cassino, entre eles, o subcomandante. Subimos. O cassino dos oficiais compreendia três enormes salões, um em seguida ao outro; o primeiro era de festas, o segundo, de refeições e jogos, de instrução o terceiro. Atravessamos o de festas, na penumbra, e desembocamos no de jogos. Em comprida mesa, alguns oficiais almoçavam: o da cabeceira, de costas para nós, que entrávamos, devia ser o subcomandante. Levantaram-se e nos apresentamos. O subcomandante era capitão. Declinou o seu nome:

- Horizontino.

Pelo espanto, o constrangimento e a palidez de Miguel, compreendi que havia algo de insólito. Depois de sairmos dali, explicou-me. Como antigo aluno do Curso Anexo da Escola Militar, conhecera, ali o período anterior ao comando do General Pessoa, que eu não conhecera. A figura execrada, naquele período, fôra justamente a de Horizontino, capitão-ajudante, peça essencial da disciplina. Miguel estava horrorizado e só repetia:

- Barbaridade! Servir com o Horizontino! Começar a carreira com o Horizontino!

Eu não podia compreender nitidamente aquele horror, e menos ainda senti-lo: não experimentara aquele regime em Horizontino se tornara detestado. Ele era sorridente, untuoso; barba cerrada, boca de lábios roxos, dentes enegrecidos pelo fumo, não inspirava simpatia. Mas eu não me sentia inclinado a odiá-lo; não lhe sofrera os defeitos, não pertencera ao rol de suas vítimas.

No pavimento superior, a partir da entrada do cassino dos oficiais, estendia-se o corredor longuíssimo que correspondia ao do térreo. De um lado e de outro estavam os quartos dos oficiais que preferiam residir no quartel. Por um quarto mobiliado, com roupa de cama, sofria-se o desconto de dez mil réis; a alimentação importava em noventa mil réis, com cem mil réis, portanto, era possível viver ali. Ocupei um dos quartos. À tardinha, após a apresentação aos oficiais do Regimento, tratei de completar a minha instalação. Jantamos. Quando retornara ao arranjo de minhas coisas, bateram à porta. Para surpresa minha, era o Capitão Horizontino. À paisana, convidou-me:

- Vamos, aspirante. Falta ainda uma parte do ritual: a apresentação às moças da cidade.

Saímos. Verifiquei que Horizontino era vítima da solidão, desejava rompê-la e constituíra um círculo de amizades, particularmente femininas. Esse convívio amenizava a sua existência solitária e compensava o isolamento resultante da fama que o cercava, e que o mortificava, no meio militar. Nas funções, era meticuloso. Conhecia profundamente a rotina militar, os seus segredos, as suas armadilhas, os pequenos detalhes, tudo o que regulava o cotidiano e preenchia as longas horas da jornada diária, mas particularmente aquilo que firmava as relações entre pessoas, os laços de subordinação, a divisão do trabalho, os limites traçados a cada um, as áreas restritas à autoridade superior, nelas privativa. Sabia-se douto nessas pequenas leis, como os rábulas, e ironizava os que as desconheciam ou fraquejavam, apresentando-os como faltosos. Pertencia ao tipo de oficial que, superado como profissional, tornava-se exemplar como burocrata, tipo necessário nos corpos de tropa, embora desprezado pelo outro tipo, o daqueles que, voltando-se inteiramente para os assuntos profissionais, desconheciam a trama de pequenas normas e minuciosas regras – algumas não escritas, mas consagradas pelos costumes – que era o terreno em que os do primeiro tipo apareciam com destaque.

Cedo, muito cedo, verificamos nossa ausência total de preparação para a vida militar prática, para a sua rotina, para as tarefas cotidianas. Cedo verificamos que essa parte tinha importância, o desconhecimento de suas normas provocava comentários, merecia conceito desfavorável de pares e subordinados. Para tudo isso, entretanto, o mais bronco dos sargentos tinha sobre nós superioridade indiscutível, firmado nos longos anos de vida arregimentada. Que adiantava, agora, saber os segredos da fabricação dos canhões, cintagem e autocintagem, se não decifrávamos o vale de rações dos animais? Que adiantava conhecer numerosos processos de pontaria se os canhões saíam dos parques apenas para os pátios e atiravam raramente, enquanto o talão de pernoite nos aparecia como matéria mais difícil do que desenvolver uma expressão e integrá-la por partes? Éramos oficiais e não sabíamos se a parte do serviço diário devia ser assinada ou apenas visada, onde visar, o que deveria conter e o que poderia omitir. Mas o sargento-adjunto, que redigia a parte diária, sabia isso tudo. É claro que não havia ciência nisso, que isso era rudimentar – sempre foi – mas o fato é que não sabíamos, fato concreto, e não saber, no caso, nos diminuía aos olhos dos subordinados, enfraquecia a nossa autoridade, de que, entretanto, permanecíamos muitos ciosos, extremamente suscetíveis a qualquer arranhão nela. Horizontino, catedrático nesses assuntos, poderia nos ter ensinado, mas obedecia a uma norma não escrita: de que isso se devia aprender na execução, resultando os erros em ensinamentos inapagáveis. No último ano do curso da Escola Militar – excepcionalmente, porque fôra inovação – um dos instrutores da bateria nos reunira em sala e, apressadamente, fornecera tintura a respeito da rotina diária do serviço no corpo de tropa. Mas isso desaparecera de nossa lembrança tão depressa quanto entrara: as artes de execução gravam-se pelo uso e não pela informação.

No dia de nossa chegada, não sei por que motivo, dirigiu-se a mim o sargento-ajudante do Regimento, que ostentava o alto título de “brigada”: era um homem alto, empertigado, de fardamento irrepreensível, botas resplendentes; tinha a cabeça toda branca e inspirava respeito não apenas por isso, mas pelo seu todo. Fiquei inexplicavelmente aflito e tratei de enquadrar-me com a mesma rigidez e solenidade, como se fôra ele meu superior hierárquico: ali estava aquele velho soldado, com mais anos de serviço do que eu de idade, falando-me, em rigorosa posição de sentido, mãos coladas às coxas. Esse quadro ficou em minha memória até hoje; jamais se apagará.

(...)

Éramos, ali, quatro aspirantes, dois do Grupo de Jundiaí e dois do Regimento de Itu; na realidade, o Regimento funcionava como se composto de dois Grupos incorporados, seus organicamente, o de artilharia montada e o de artilharia de dorso. Nós, que havíamos escolhido este último, nos sentíamos prejudicados; aquele quartel não era o nosso, aquele comandante também. A turma anterior de aspirantes fôra vítima do mesmo desvio. Ao sermos distribuídos pelas Baterias, duas em cada Grupo, insistimos em ficar nas do nosso Grupo. Estávamos apenas vendo o problema pelo aspecto formal. Ele possuía, entretanto, outro aspecto, muito mais importante, essencial no caso. O homem é mesmo a medida de todas as coisas; o capitão é a medida de uma Bateria – ela é o que ele é. Para o jovem aspirante, que começa a sua carreira, jejuno de conhecimentos práticos, desprovido de experiência, o comandante de sua bateria tem importância considerável. Mesmo que não o seja por idéia preestabelecida, por algum plano divulgado, o capitão é o guia de seus subalternos, pelo simples fato do convívio direto, da responsabilidade que lhe cabe sobre o que fazem os seus comandados, sobre o que produzem.

Ocorreu-me a circunstância feliz de ter começado a carreira com um capitão de qualidade e, aqui, capitão aparece como sinônimo de comandante de bateria, que é a sua função de posto. Porque o meu comandante de bateria, nem era capitão, mas tenente; as baterias eram, ali, comandadas por tenentes, porque não havia capitães em número suficiente, os oficiais desse posto ocupavam funções superiores, como Horizontino. O meu comandante de bateria não era o que, convencionalmente, se conhece e se aceita como oficial de elite; salvo para mim, que sempre o considerei como tal, mantendo esse juízo; até hoje, quando já me distanciei dele mais de trinta anos e nunca mais o vi. Como quase todos os outros comandantes de bateria, naquele regimento e então, o Tenente Alfredo Lemos da Silva era ex-aluno da Escola Militar, expulso em 1922, anistiado e reincluído nas fileiras em 1930, tendo feito o curso da Escola Provisória, que fôra organizada para revisar os conhecimentos daqueles oficiais que haviam passado oito anos na vida civil e esquecido o que tinham aprendido na Escola do Realengo, até o dia em que se haviam levantado, ao comando do íntegro Coronel Xavier de Brito.

Seus conhecimentos profissionais não eram brilhantes, e sua modéstia, a modéstia mais natural que conheci, ocultava o que sabia, provado em algumas oportunidades, muito raras, quando se manifestava, para surpresa de muitos. Nele, grande era a natureza humana e, sem essa grandeza, nenhuma outra, válida, digna, alta, pode surgir. Possuía bondade natural, distante daquela que aparece à epiderme dos fracos e é moeda falsa; bondade de poucas exteriorizações mas certa e pronta nos momentos necessários, quando se mostrava em suas exatas proporções; bondade firme, sólida, consciente, tranqüila, sem arroubos, escondida até o instante em que precisava mostrar-se. Porque não havia nele nada de postiço, de aparente, de ostentado; tinha defeitos próprios da criatura humana e não os escondia; exaltava-se de vez em quando e despejava sua raiva como homem comum, em linguagem comum. Sua grandeza escondida só era passível de conhecimento ao longo do convívio. A simplicidade exterior com que se apresentava, e que a modéstia fazia maior, enganava os desatentos. A qualidades que possuía eram reveladas apenas nos momentos adequados, e aí esplendiam na dimensão precisa, infalíveis. Tudo isso configurava o traço de que muito se fala, e pouco se conhece, e que parece indefinível: caráter. Aquele homem humilde não sabia que era uma personalidade.

Fiquei devendo muito a esse homem excepcional que, no exterior, era o tipo do homem comum. O meio no 4º Regimento de Artilharia Montada era mau, difícil, corrompido e a situação favorecia vicejassem esses traços. De minha parte, ao lado da presunção peculiar à idade, havia outras deficiências que acarretariam atritos, e possivelmente sérios, não fosse, muitas vezes, a presença e a ação do Tenente Lemos. Eu não estava apenas decidido a consertar o Exército, levava esse propósito à impertinência e tinha o calo da impulsiva exteriorização, a ânsia, muitas vezes concretizada, pelo destampatório, a língua pronta, a malcriação irrompendo, fosse com quem fosse. Alguns casos comigo, ali, ficaram conhecidos, provocaram comentários; em uma dessas ocasiões, poderia ter-me inutilizado. Muitos tiveram paciência comigo, beneficiei-me da tolerância deles, e até abusei; nenhum como o Tenente Lemos. Jamais houve entre nós qualquer dúvida, qualquer divergência, qualquer atrito. Suas intervenções providenciais, quando isso ocorria com outros, eram salvadoras; em alguns casos, preventivas. Só a agia, entretanto, diante dos fatos; jamais se preocupou em aconselhar-me, jamais discutiu no sentido de dissuadir-me de assumir esta ou aquela posição, de cometer este ou aquele erro. Sua conduta, nesse sentido, era didática, embora inconsciente.

No Exército, sempre me repugnou a conduta daqueles que confundem os bens públicos com a propriedade privada, supondo que aqueles podem servir ao seu conforto, como seus, como coisa adquirida. Nosso comandante assim procedia. Enquanto o problema não me tocou diretamente, no serviço, contive-me e, devo confessá-lo, contive-me a custo. Um dia, por circunstâncias imprevista, aconteceu tocar-me. O regimento tinha três automóveis de turismo, presas da guerra contra os paulistas em 1932: o do comandante, o dos capitães e o dos tenentes, como ficaram conhecidos, pelo uso. O primeiro era de uso privativo do coronel, mais até de sua família; o segundo era monopolizado por um dos capitães, que dele se servia para ir aos clubes de jogo e aos bordéis da cidade, coisa que podia muito bem fazer a pé; o terceiro passava de mão em mão pelos tenentes, que podiam usá-lo, mediante permissão do comandante. Havia no regimento um campo de aviação, um pouco afastado; nele pousavam, vez por outra, aviões militares; estava entre os deveres do oficial-de-dia, assim que se aproximava o avião, providenciar o transporte dos aviadores, do campo à cidade, e a guarda do aparelho. Estava eu de serviço, certo dia, quando se aproximou um avião; dirigi-me à garagem e determinei a saída de um carro para trazer o piloto; o Sargento Vieira ponderou-me que um dos carros estava em São Paulo e o outro enguiçado, restava o do comandante. Indiquei-o e mandei que fosse retirado.

- Mas este é o carro do coronel, Aspirante. Não faça uma coisa dessas comigo, pelo Amor de Deus, que ele me prende!

Não fosse esse apelo do sargento e a possibilidade de risco para ele e eu não teria aceito de forma alguma que tal motivo –ser o carro de uso do comandante – acarretasse o descumprimento de ordem emanada, aliás, do próprio comandante. Dirigi-me, pois, ao seu gabinete e coloquei o problema. Jamais me passou pela cabeça ouvir o que ouvi, de sorte que estava desprevenido para a eventualidade. Embora já tivesse tido tempo suficiente para comprovar que o coronel não passava de regulete, usando e abusando de sua autoridade, não cogitei por um segundo que fosse na hipótese de ultrapassar o caso da mera formalidade de conseguir a sua aquiescência para poder cumprir uma ordem sua. Mas foi o que aconteceu. A princípio, ficou espantado, como se lhe tivesse sido proposto uma monstruosidade. Recuperou-se e disparou a decisão, já em tom de quem não aceita novos argumentos:

- No meu carro, não!

Fiquei paralisado pelo inesperado da resposta. E foi ainda sob esse impacto que retruquei:

- Nesse caso, não posso cumprir a ordem de serviço. Vou deixar o piloto no campo.

Ele me encarou, por cima dos óculos, e acrescentou, já irritado:

- Aspirante, a responsabilidade da boa marcha do serviço no Regimento é minha!

- Mas é minha a responsabilidade de cumprir os deveres que me pertencem, e o senhor está prejudicando esse cumprimento. Não estou pedindo o automóvel para ir passear nem para uso meu; estou apenas me esforçando para fazer direito aquilo que me cumpre fazer. E além do mais, o carro não é seu, é do Exército!

De um jato, despejei tudo o que estava acumulado dentro de mim há tempos e que eu não tolerava: a circunstância que me dizia respeito diretamente e a coisa essencial: o carro não era dele. Acredito que o inédito do incidente o tenha paralisado; apesar de todos os seus defeitos, que eram muitos, não parecia homem que se deixasse desmoralizar. Os régulos supõem, certamente, que só os vermes os cercam, e vermes não reagem. Ele estava despreparado para a eventualidade. Como não acrescentasse mais nada, olhando-me espantado, voltei-lhe as costas e saí. Fui direto à minha bateria e contei o caso ao Tenente Lemos que não fez comentário algum. Que eu tinha carradas de razão, sei até hoje, mas que a reação havia sido intempestiva e despropositada, só aprendi com o tempo. A responsabilidade era dele, a ordem descumprida era dele, eu nada tinha a ver com isso. Nem estava dentro de minhas possibilidades endireitar o Exército, a melhor maneira de endireitá-lo era buscar a perfeição desejada mas apenas nos limites de minhas atribuições e autoridade. O tempo me ensinaria isso, mas, de início, eu estava convencido do contrário e a presunção de acerto cegava-me: jamais um tenente pode corrigir um coronel. No dia em que isso acontecesse, a hierarquia estaria invertida.

(...)

Não sei se esses pequenos incidentes de vida cotidiana, em guarnição de província, interessam de alguma forma. Apresento-os como forma ao meu alcance de caracterizar-me a fim de que o depoimento pessoal possa ter a marca de quem o presta, com as suas insuficiências inclusive. Não as escondo, para que possam ser consideradas como fator de correção, ao longo da narrativa. Apesar desses incidentes, da posição de régulo do comandante, a vida era feliz, no Regimento. Os que se conservavam em posição discreta, aliás, tinham condições de eximir-se das arbitrariedades do chefe; restava-lhes, como inevitável, a tristeza do espetáculo. Esta poderia ter sido a minha atitude, era o que o bom-senso aconselhava, e talvez fosse a mais útil para a instituição. O temperamento do jovem oficial e as minhas características pessoais àquele tempo não me permitiam essa reserva, entretanto. Só as experiência me ensinaria que é inútil travar pequenas lutas; só as grandes compensam.

(...)

As conseqüências do levante constitucionalista refletiam-se ainda no contingente. Era constituído, em sua maioria, por nordestinos, e recebia, periodicamente, levas de outros nordestinos, para preenchimento dos claros. Havia, e isso começou depois de nossa chegada, parte minoritária de paulistas, recrutados pelo sistema de sorteio, quase todos oriundos da lavoura, muitos filhos de italianos. Na minha bateria, o grosso era de elementos da estiva do porto do Recife, alguns com pinta de facínoras; gostavam de cachaça, de arruaças e de andarem armados de punhal. Dávamos freqüentes batidas em seus armários, retirando verdadeiro arsenal de armas brancas. Os paulistas, pacíficos lavradores na maioria, temiam aqueles negros, mulatos ou curibocas sertanejos, hábeis na faca e prontos à desforra física. Entre esses nordestinos estava um preto, de apelido Pancada, com que lidei muito, homem bronco, provavelmente não muito certo da cabeça, às vezes obstinado em seus propósitos. A forma de conquistá-los estava em privar com eles, em não temê-los. Nunca tive motivo maior de aborrecimento, nunca me preocupei com a hipótese de enfrentar uma atitude de desrespeito, nunca andei armado fora do serviço, quando éramos obrigados a fazê-lo, nunca tive de ameaçar subordinado meu, e menos ainda de concretizar ameaças. Mas punia, e até com severidade, própria dos que se iniciam, as faltas que eles cometiam. Comigo, os graduados que, por vezes, se excedem nisso, não tinham facilidade para descompor os faltosos, para zombar deles: punir, jamais humilhar, fôra norma adotada, desde o princípio, por mim, e jamais tive motivo para arrepender-me.

Às vezes, as levas de nordestinos chegavam no inverno. A situação em que ficavam era dolorosa. Antes de serem distribuídos às baterias, permaneciam alojados na quadra coberta de bola-ao-cesto (basquetebol), recinto fechado mas frio, dormindo no chão, quase sempre sem cobertor. Não havia, de início, fardamento para eles, nem calçado, nem roupa de cama. O bando andrajoso ia da faxina para o rancho, do rancho para a faxina ou para as obras, dias a fio. Morriam muitos, dizimados pela pneumonia, outros se debilitavam a tal ponto que era preciso dispensá-los, e dispensá-los era privá-los de subsistência e, portanto, agravar a situação deles. Tive de assistir, por ser oficial-de-dia e julgar que isso estava entre as minhas atribuições e deveres, a lenta agonia de um desses nordestinos, já ocupante da enfermaria superlotada. Era a primeira vez que assistia alguém morrer: depois de algumas horas de lenta agonia, silenciou de vez.

(...)

O comando de subunidade é, realmente, escola importante para o oficial. Embora aí se trate, essencialmente, de instrução há problemas outros que merecem também atenção. E aprofunda-se, particularmente, o contato com o pessoal subordinado e com os seus problemas, que são os mais variados. O tenente é apenas instrutor; o capitão – e me refiro à função, e não ao posto – deve atender campo muito mais amplo. Cabe-lhe, além de tudo, a atribuição de punir e de recompensar, em primeira instância, no limite de suas atribuições. A faculdade de punir e de recompensar, aquela em destaque, definem responsabilidade e revelam experiência, pondo a nu o caráter da pessoa que a exerce. Um dos caminhos mais fáceis para aferir o que vale um oficial é ver como se porta em relação a essas atribuições e responsabilidades.

Os que, habitualmente, carregam no peso, ao punir, excedendo-se na gradação da pena, tornando-a desproporcionada à gravidade da falta, revelam, em regra insegurança, necessidade de afirmação para uso externo. Nem sempre os de mão leve são bons; em muitos casos, trata-se da vulgar busca de popularidade, de simpatia, na lisonja escondida ao subordinado que, no fim de contas, não conquista. O equilíbrio de julgamento vem com a experiência, nem sempre diretamente ligada ao tempo, mas à capacidade em aprender as lições da vida, mais difíceis do que as dos livros. É um erro supor que os subordinados apreciam a cega e indiscriminada benevolência, que transforma a tolerância em licenciosidade; eles são justo na avaliação da autoridade, quase sempre: o julgamento dos que dependem de nós é melhor do que o dos pares; o destes, melhor do que o dos superiores – em termos de aproximação da realidade. O faltoso recebe a punição, quando proporcional à gravidade da falta, com espírito tranqüilo, sem mágoa, sem ressentimento; o que o revolta é a injustiça, a desconsideração pelo que representa como criatura humana, e a desproporção da pena. Meus antigos subordinados, muitas vezes punidos, mantiveram-se meus amigos. Entre as coisas que podem perturbar-me, está cometer uma injustiça. Mais do que sofrer uma injustiça.

Em outros tempos, era o RISG (Regulamento Interno dos Serviços Gerais) que regulava as punições; tinha parte especial em que especificava as punições e a maneira de aplicá-las. Apareceu, depois, o RDE (Regulamento Disciplinar do Exército): ampliou muito o assunto, detalhando-o, mas inovou pouco. Na prática, algumas de suas disposições são esquecidas, com freqüência. Não me recordo se, antigamente, havia menção ao fato de que ninguém deve ser punido sem ser ouvido pela autoridade que deve puni-lo. Jamais deixei de proceder assim, ainda quando as faltas eram irrelevantes. As circunstâncias tem grande influência nas faltas e devem ser cuidadosamente consideradas em seu julgamento. As normas escritas, as antigas como as modernas, especificam agravantes e atenuantes. Mas é o caso concreto que permite estima a influência delas, porque individualizado, irrepetível. O critério da autoridade, assim, tem importância decisiva: a fria aplicação do regulamente não pode substituí-lo, de modo algum.

(...)

O outro caso em que a sensibilidade à justiça ficou evidenciada na conduta do General José Pessoa, ocorreu com o comandante do batalhão de infantaria sediado em Cuiabá. No quartel desse batalhão havia um posto rádio; um cabo e dois soldados repartiam os horários de escuta que permitiam manter a ligação da guarnição com o Quartel-General e, por essa via, com o resto do país. O pessoal rádio, subordinado ao comando local, para fins disciplinares, dependia diretamente da Chefia do Serviço de Transmissões, no Quartel-General, em tudo o que se relacionasse com aquele serviço. Uma das ordens mais severas que aquela chefia baixara era a que proibia ao pessoal rádio afastar-se do quartel e do posto, para evitar interrupção nas ligações via rádio. Ora, o comandante do batalhão, ao planejar exercício no terreno, decidiu que aquele pessoal deveria comparecer, permanecendo surdo à ponderação do cabo, que lhe mostrou a referida ordem de seu chefe técnico; no dia fixado para o exercício, antes de deixar o quartel, o cabo, fechando o posto e aprontando-se para acompanhar a tropa em marcha, participou ao Chefe do Serviço de Transmissões, por rádio, o que estava acontecendo.

Ao saber dessa participação, o comandante do batalhão prendeu o cabo, e criou o caso porque o chefe do Serviço de Transmissões em Campo Grande, colocou o general a par do que acontecia. Este, serenamente, escreveu uma carta pessoal e secreta ao comandante, aconselhando-o a anular a punição imposta ao cabo; fui eu quem redigiu a carta: era cordial, amistosa, mas firme, oferecendo saída condigna. Mas o homenzinho era teimoso: respondeu que mantinha a punição. Pelo regulamento, dentro de determinados prazos, a autoridade que aplica punição pode atenuá-la, relevá-la ou anulá-la, e a autoridade superior pode tudo isso, além de poder também agravá-la. O general não teve nenhuma dúvida: em boletim ostensivo, anulou a punição imposta ao cabo e mandou prender o comandante do batalhão que abusara da autoridade que o posto e a função lhe conferiam. Nunca mais tive conhecimento de episódio idêntico, jamais assisti sua repetição. A coragem de tal atitude excepcional foi das coisas que mais me mereceram admiração em toda a minha vida militar. No Exército, o superior tem sempre razão, e isso fomenta o desmando. A autoridade só se engrandece quando conhece e respeita suas próprias limitações.

(...)

Passei os quatro primeiros meses de 1953 no Rio de Janeiro, em férias e em licença; em 15 de abril estava de volta ao Regimento. Cabia-me o seu comando interino. Quando do afastamento do Coronel Correia Lima, oportunidade em que tal comando me tocava, recebera ele instruções de permanecer até a apresentação de oficial mais graduado que eu, evitando a minha ascensão funcional. O artifício, agora, estava difícil. Assim, ao apresentar-me, assumi o comando do 6o Regimento de Artilharia Auto-Rebocado, onde fôra posto de castigo, dois anos antes. Exerci o comando até os primeiros dias de novembro. Era experiência nova para mim e viria a exigir esforço extraordinário.

(...)

Velho regulamento, por longos anos usado em nosso Exército – anterior à fase de simples tradução ou cópia de similares norte-americanos, elaborados para condições inteiramente diversas – prescrevia que o chefe deve “ser instruído, dar o exemplo e comandar”. Nossa mentalidade, e não por culpas individuais, impedia que tais prescrições fossem levadas à prática; nossos chefes, via de regra, não eram instruídos, a maioria não possuía conhecimentos profissionais suficientes ou estavam desatualizados, nem tinham, na quase totalidade, a cultura geral que situa e vitaliza os conhecimentos profissionais; sob muitos aspectos, não davam bons exemplos, comandavam como régulos, cuidando que a função lhes emprestava direitos divinos, sem limitações nas leis e nos regulamentos, e que a coisa pública podia ser gerida como fazenda particular, dela dispondo à vontade, embora raramente isso atingisse as raias da improbidade. Aquele velho regulamento aconselhava, também, com a sabedoria da experiência: “Comandar... é conservar, em todas as circunstâncias, o coração ardente, a vontade firme, a visão clara e a razão serena”. Embora jamais me tenha aproximado sequer dessa plenitude qualitativa, no comando, procurei sempre esforçar-me para isso. As punições disciplinares foram consideravelmente reduzidas; as prisões celulares desapareceram; fui mais severo com os oficiais do que com os sargentos e mais com estes do que com os soldados, mas não deixei nunca de punir, quando era o caso, visando sempre corrigir, ao próprio, e advertir aos demais.

Por condições peculiares ao nosso povo, o comandante multiplica e amplia consideravelmente as suas atividades, quando deseja exercer as funções dentro das normas do velho regulamento que mencionei; deve ser, além de chefe militar, pai, padrinho, conselheiro, capataz, gerente, uma série de coisas. Aqueles que se furtam a desdobrar as atividades, de forma a atender todos esses aspectos, buscando conservar-se nos estritos limites da autoridade militar, reduzida à sua mais simples e esquemática concepção – e acabam por ser, até nisso, deficientes – provam apenas que não se adaptam às condições reais. Assisti chefes de excelente capacidade profissional fracassarem por isso. Os que admitem como humilde demais as funções extraordinárias do comando, supondo-se incompatíveis com a sua majestade, padecem de orgulho tolo que acaba por vitimá-los. Nada há de humilde na condição humana; ela esplende sempre, como coisa suprema. Não me furtei, jamais, a atender, com todo empenho, esses aspectos, essas solicitações, aparentemente menores do mister. É claro que algumas assumiam aparência pitoresca; outras eram insólitas.

Os mais tristes problemas com que tive de me defrontar foram, sem dúvida, os de alcova, sempre difíceis e quase sempre dolorosos e delicados. Apareceu na guarnição, onde devia permanecer por alguns dias, pela natureza de suas atividades, um cidadão que se fazia acompanhar de uma jovem de singular beleza. Pela idade e por tudo o mais, contrastava ela com aquele que se fazia passar por seu esposo; ou porque fosse aquela a sua oportunidade, ou porque desejasse fugir a dependência que não lhe era grata, ou por amor, essa mulher atendeu ao assédio de jovem oficial, meu comandado. É possível até que o assédio tenha partido dela. O caso, como é normal em pequena cidade, começou a despertar comentários. Acompanhava-o, de longe, prevendo que, em breve seria chamado a intervir e apenas desejando fazê-lo nas melhores condições, antevendo possíveis desatinos. Sempre me repugnou intervir em relações desse tipo; sempre me pareceu grotesca e absolutamente indevida a maneira como todos se julgam com o direito de regular a vida alheia, de ajuizar dos sentimentos ou dos impulsos dos outros, quando menos sob a forma de comentários.

O problema chegou-me, porém, em condições singulares: o pretenso esposo apresentou-se, no regimento e, com a maior clareza, solicitou-me que empregasse a minha autoridade para obrigar o oficial a afastar-se daquela com quem vivia. Tive de dizer-lhe que minha autoridade tinha limitações e que essas limitações não apenas a caracterizavam, mais do que isso: a robusteciam. De forma alguma poderia ser utilizada para aquele fim, e, se utilizada, poderia o oficial rebelar-se contra ela, com a razão de seu lado. Pensei que o caso ficasse resolvido, no tocante à minha intervenção, mas continuei a acompanhá-lo, sem nada dizer ao oficial, pois havia risco para ele no que estava acontecendo. Pasmei quando, dias depois, apareceu-me o mesmo cidadão, acompanhado agora por homem idoso que era o pai da jovem. O pretenso marido contou-me, então, toda a história e os detalhes foram sendo confirmados pelo velho: pedia a minha intervenção porque recebera a jovem das mãos de seu próprio pai; não eram casados. Compreendi, instantaneamente, o que havia debaixo daquilo tudo; o pai, homem de condição humilde, vendera a filha àquele cidadão rico e prestigioso; a venda fôra realizada pelo crediário: contra uma entrada forte e prestações mensais; eram as prestações mensais que sustentavam o velho e a família. Isso tudo foi surgindo aos poucos, com um tumor que se aperta e do qual começa a rolar a podridão.

Aquele velho não podia abrir mão das prestações; por isso, chamado, fôra correndo tratar de, com a autoridade paterna, obrigar a filha a manter o negócio contratado. Até aí, contivera-me para não dizer ao pretenso marido o que ele merecia ouvir, por pretender ficar com uma mulher que não o queria e utilizar para isso a autoridade de terceiro. Agora, com todo os dados do problema na mesa, não precisava mais ter cerimônias. Veio-me o ímpeto de pô-los para fora, aos impropérios e de lhes dizer quanto me repugnavam. Contive-me, entretanto. Bati o tímpano e mandei o soldado de ordem conduzi-los ao portão. Compreenderam e não me procuraram mais. O oficial pediu-me, depois, alguns dias de dispensa e permissão para viajar; a primeira parte estava na minha alçada, a segunda pertencia a atribuições superiores. Concedi ambas e solicitei aprovação para a segunda à autoridade que cabia concedê-la. Não contei ao oficial nada do que acontecera; não sei o fim da história.

(,,,)

As unidades de província dispõem, via de regra, de áreas mais ou menos extensas, junto do quartel ou afastadas, geralmente dos dois tipos. O 6º Regimento estava neste caso; ao lado e atrás da parte edificada, estendia-se área relativamente grande e inaproveitada; a alguns quilômetros da cidade, possuía invernada de grandes proporções que servia para exercícios reais e até para o tiro de artilharia. Unidades assim dispõem, então, de dois fatores fundamentais à exploração agrícola e pastoril: terra extensa e gratuita e força de trabalho numerosa e também gratuita. Quem não produz alguma coisa, quando menos para as próprias necessidades de sua tropa, em tais condições, faz prova de total incapacidade. Ainda nesse caso, entretanto, era regra o com comandante, como profissional cioso, desprezar esse aspecto, reputar desprimorosa qualquer atividade que não se revestisse das características especificamente profissionais, subestimar mesmo e fazer pouco de tentativas de outros, no sentido de plantar alguns pés de couve e criar alguma cabeças de gado. Tais tentativas, por isso mesmo, atacadas esporadicamente, abandonadas depois, retomadas adiante, para serem esquecidas em seguida, nada deixavam de si, seus benefícios eram praticamente nulos. Os que se esquivavam de encará-las, portavam-se como se o nosso Exército fosse perfeitamente organizado e dotado de todos os meios, tal como acontecia nas nações desenvolvidas, em que as Forças Armadas dispões de todos os recursos e as unidades, amparadas em largos orçamentos, devem dedicar-se apenas à preparação para a guerra. Aos olhos de qualquer observador, parece logo claro que, dadas as diversidades do nosso caso, a solução teria de ser também diversa.

Em países subdesenvolvidos como o Brasil, manter 100 mil homens unicamente dedicados à preparação para a guerra, particularmente nas condições atuais do mundo, é solução inteiramente alienada, pois não encontra suporte na realidade. Não se trata, no caso, de discutir o problema de serem necessárias ou não Forças Armadas relativamente numerosas e, conseqüentemente, onerosas nesses países. Este é outro problema, de profundidade política muito maior, escapando às possibilidades de indivíduos a sua solução. Trata-se de, partindo das condições reais, isto é, da existência de tais Forças Armadas e da necessidade de assegurar aos seus componentes os recursos necessários, procurar conseguir, pela utilização de fatores de produção ociosos e ao pé da obra, parcela ponderável dos pretendidos recursos. É claro que, para isso, é preciso contornar algumas dificuldades: as áreas disponíveis não podem perder a utilidade precípua, no caso, que é a de permitir exercícios táticos e, no caso do 6º Regimento, o tiro de artilharia. A força de trabalho disponível é constituída de soldados que foram retirados do trabalho ou do estudo para receberem instrução militar. Resguardados tais aspectos, não há razão plausível para que permaneçam ociosos, como costuma acontecer, fatores de produção tão importantes.

Parti, resolutamente, nesse rumo, sem nenhuma dúvida. O plano se desenvolveu progressivamente: iniciou-se com o aproveitamento de velha pocilga, onde refocilavam uns poucos suínos, transformada em criação de porcos de amplas proporções, rigorosamente planejada. Surgiu, em seguida, montagem de estábulo moderno, construído especialmente, servindo de base à produção de leite e manteiga. Culminou com a montagem de grande aviário, destinado a prover a unidade de ave e ovos. Na parte agrícola, ficou estabelecida a produção de mandioca e de milho, em grandes proporções, passando-se, em seguida, à produção de trigo, lavoura muito mais complexa do que as anteriores. Para esse trabalho, foi de extraordinária importância o esforço do Capitão Herculano Augusto Virmond mas, como tudo que realmente vale, repousou no trabalho de quantos ali passaram, sofreram e suaram. Plátanos e cinamomos são árvores comuns no Rio Grande; foram largamente plantados, balizando os caminhos que serviam à granja do 6o Regimento. E foi com isso, principalmente, que a unidade viveu. Enquanto os órgãos provedores faziam mil exigências burocráticas para fornecer uma câmara de ar, o 6o Regimento as comprava na praça, com o resultado da venda dos lotes de porcos ao frigorífico local. Tudo se fazia com a renda assim obtida, inclusive grandes obras de construção e de remodelação. E os soldados eram alimentados a leite, galinha e ovos; tudo revertia em proveito deles, da alimentação e do conforto que mereciam e do aparelhamento da unidade, com as viaturas abandonando os cavaletes. Dava-nos mais trabalho organizar a documentação relativa a um pneu furado – pois isto exigia inquérito, por espantoso que pareça – do que comprar dez pneus novos.


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Extraído de SODRÉ, Nelson WerneckMemórias de um Soldado. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1967.




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Re: O Exército Brasileiro dos Anos 1940 - Uma visão.

#13 Mensagem por Clermont » Dom Jan 19, 2020 12:52 pm





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