FT: Solução para a crise tem de ir além da austeridade
Martin Wolf
03/07/11 08:52
Desfrutem da crise que aí vem. Não é isto que o Banco de Pagamentos Internacionais (BIS) diz aos EUA e outras economias sobreendividadas, mas é isto que se depreende do seu último relatório anual.
Pessoalmente, sempre tive em consideração os avisos sobre excessos monetários e financeiros emitidos pelo BIS no tempo de William White, ex-conselheiro económico do banco. Estimo muito Stephen Cecchetti, seu sucessor, no entanto, discordo da ideia-chave deste relatório por subestimar os obstáculos à austeridade global.
Insistir no ajuste monetário e orçamental é uma situação constrangedora. Porém, tempos excepcionais exigem políticas excepcionais. O que torna os tempos que correm excepcionais? O facto de algumas economias se encontrarem numa situação a que o Jerome Levy Forecasting Center chama "recessão controlada", isto é, um período de desalavancagem sustentada do sector privado.
O relatório do BIS rejeita implicitamente esta leitura, advogando um aperto monetário e orçamental a nível global. Este argumento assenta em dois pressupostos. Primeiro, a economia mundial está prestes a atingir a capacidade máxima. Segundo, "é essencial debelar o sobreendividamento, quer público quer privado, para construir fundações sólidas para um crescimento real elevado e equilibrado, e um sistema financeiro estável. Isto pressupõe aumentar a poupança privada e actuar firmemente para reduzir os défices nos países que estiveram no epicentro da crise".
Consideremos, primeiro, a política monetária. Vamos supor que tínhamos um Banco Central mundial com metas de inflação. Como deveria actuar perante a subida dos preços das matérias-primas quando as expectativas de inflação também se encontram sob controlo? Um banco desta natureza teria de reconhecer que se trata de uma mudança nos preços relativos, o que reduz a capacidade e os salários reais. Admito não saber se a subida é uma tendência pontual ou duradoura, no entanto, teria interesse em evitar uma escalada nas expectativas de inflação ou uma espiral salários-preços. Mas será que também teria interesse em travar aumentos nos salários nominais para compensar o impacto inflacionista da subida nos preços das matérias-primas, mesmo que isso implicasse uma forte desaceleração do crescimento económico? Não me parece. Mas se o fizesse, iria transmitir instabilidade à economia real em resposta a movimentos erráticos e imprevisíveis nos preços das matérias-primas.
Na prática, não só não temos um banco central mundial como as condições de inflação são divergentes. Nos países de rendimento elevado, a inflação está razoavelmente controlada, ao passo que em muitos países emergentes a tendência é de subida, devido ao consumo de matérias-primas ser mais intensivo nestes do que naqueles e ao facto das suas economias terem tido uma expansão mais forte.
Uma política monetária, para ser adequada, tem também de ser diversa. Felizmente, o mundo em que vivemos permite-o: os países emergentes devem contrair e os países de rendimento elevado devem contrair mais lentamente. Já está a acontecer, mas não basta porque muitos países emergentes procuram desesperadamente evitar a apreciação da taxa de câmbio.
O que devem fazer os países de rendimento elevado? Neste ponto, o relatório do BIS demonstra que a actual histeria sobre o impacto dos balanços dos maiores bancos centrais não tem razão de ser, mas também diz que o abrandamento económico chegou ao fim - situação plausível no caso dos países emergentes. O BIS sublinha igualmente o erro cometido na década de 1970, quando se subestimou o impacto do choque petrolífero na capacidade, e afirma que, actualmente, a capacidade de reserva é, também ela, exagerada. Porém, o custo unitário do trabalho e as expectativas estão hoje mais controlados do que então. Em minha opinião, chegou o momento dos bancos centrais fazerem uso da sua credibilidade. Devem vigiar atentamente as expectativas de inflação, mas não devem agir antecipada ou preventivamente.
Proponho agora reflectirmos sobre a questão que maior debate tem suscitado: a política orçamental. Eis a minha pergunta: saberá o BIS que não é possível gerir excedentes financeiros em todos os sectores ao mesmo tempo?
Já poucos duvidam que a dívida do sector privado é excessiva nalguns países de rendimento elevado, mas como podemos reduzi-la? O BIS formula quatro abordagens: pagamento da dívida, incumprimento, rendimento real mais alto e inflação. Vamos excluir a última e concentrar a nossa atenção na primeira. Por pagamento entenda-se gastar menos que o rendimento. É o que está a acontecer no sector privado dos EUA. As famílias geriam um défice financeiro (excesso de despesa face ao rendimento) de 3,5% do PIB no terceiro trimestre de 2005, tendo-se a situação alterado para um excedente de 3,3% no primeiro trimestre de 2011. O sector empresarial também gere um excedente modesto. Como os EUA têm um défice da balança corrente, por definição, o resto do mundo também está a gastar abaixo do seu rendimento. Quem está no lado oposto? O Governo. Eis o que significa "recessão controlada": todos os sectores, excepto a Administração Pública, procuram fortalecer os seus balanços ao mesmo tempo.
O BIS diz que isto não basta. Os países extremamente alavancados que gerem défices orçamentais estruturais têm de eliminá-los o mais depressa possível. É justo, mas onde devem ocorrer os ajustamentos que visam contrabalançar esta situação?
Tudo indica que os excedentes externos são estruturais ou, pelo menos, extremamente persistentes. Devido ao encargo da dívida, os excedentes no sector das famílias também tenderão a ser sustentáveis. Uma redução significativa nesses défices orçamentais vai, provavelmente, exigir um contrapeso, isto é, a redução dos excedentes no sector empresarial. Isso pode acontecer de duas maneiras: através de um aumento do investimento ou de uma redução dos ganhos retidos. No primeiro caso, teríamos um ajustamento via crescimento, no segundo, via recessão. Qual delas é a mais provável? Se o leitor é daqueles que acredita que uma forte contracção monetária e orçamental pode levar ao aumento do investimento, proponho-lhe outro conto do vigário. Se o ajustamento mais plausível for o da redução dos lucros, isso significa, forçosamente, uma queda no produto, o que impossibilita a redução do encargo da dívida através de rendimentos reais mais altos. Resta o incumprimento, por exclusão. Até poderia funcionar, mas pressupõe uma crise e a destruição de activos financeiros.
É inevitável pensarmos em termos de contrapeso a um forte aperto orçamental. A resposta que permite evitar ainda mais problemas no sector privado dos países sobreendividados supõe uma mudança nos défices externos. Ora, o reequilíbrio externo - que presentemente se encontra mais ou menos bloqueado - e o reequilíbrio orçamental são os dois lados da mesma moeda.
O BIS tem razão: é necessário normalizar as políticas monetária e orçamental. Porém, só será possível eliminar os défices orçamentais estruturais quando o ajustamento estrutural no sector privado estiver completo ou se registarem grandes mudanças nos défices externos. Por último, o ajustamento externo só poderá ter lugar quando houver grandes mudanças nas economias excedentárias.
O BIS faz um apelo arrojado no sentido da desalavancagem simultânea dos sectores público e privado, mas o que pode funcionar como contrapeso? Eis a questão que se coloca e para a qual o BIS não apresenta nenhuma resposta convincente.
Tradução de Ana Pina
http://economico.sapo.pt/noticias/ft-so ... 21813.html