E essa?
O ENLIL acorda quando não aguenta mais dormir. Não sabe que horas são porque não tem despertador, esse pérfido instrumento dos capitalistas para oprimir a massa proletária. Quando conclui que não consegue mais dormir, senta na cama. Com o controle remoto, abre as cortinas das janelas, inundando seu pequeno quarto, apenas um pouco maior do que uma casa de seis peças. O sol forte lhe relembra a África e isso lhe traz à mente privilegiada o imenso sofrimento das criancinhas Africanas, morrendo de fome, sede, doenças, guerras e abusos diversos, incluindo escravidão. Chora desconsolado ao lembrar disso. Ao levantar um menino pobre o vê à janela e grita:
- Tio, me dá um pãozionho, tioooo!!!
- Não sou teu tio. O governo é que tem que...bla bla bla bla
Meia hora depois o menino compreende que desse mato não sai coelho (muito menos pão) e vai embora, resmungando:
- Grã fino de m*, todo esse discurso só pra me dizer que não vai me dar nada, que se f*, vou roubar lá na padaria...
Triste, Enlil vai para a pequena Jacuzzi GG de casal que tem no banheiro de vinte e oito metros quadrados de seu quarto. Lá fica indignado com o governo por permitir que haja crianças com fome. Então lembra que o governo é o do Lula e se convence que não viu menino algum, deve ter sido uma ilusão. Sorri, contente.
Banho tomado, vai à cozinha, após ter descido oito andares e ter percorrido outros cento e vinte e dois metros da sala até lá. Sente-se de bom humor. Sorri para a empregada, dá um simpático "bom dia, cumpanhêra proletária, saudações democráticas do proletariado intelectual, um dia vamos ser iguais" e pergunta se a cozinheira já preparou o café da manhã. A empregada o olha com estranheza:
- Sinhozinho, são duas da tarde, como assim, café da manhã?
Ele então elabora um intrincado discurso, cheio de citações históricas, filosóficas e ideológicas sobre seu desprezo pelo domínio que o capital exerce sobre o proletariado usando o tempo e as obrigações criadas em função dele. Jacta-se de ser imune a isso. A empregada concorda, pensando "é, se eu fosse rica também falava assim".
Chega à cozinha. A cozinheira o conhece desde pequeno, ao ouvir sua voz atormentando a empregada já preparou o café. O recebe com um amplo sorriso branco no rosto preto:
- Bom dia, sinhozinho, tá na mesa, como o sinhô gosta.
Ele olha as trufas cheirosas, o caviar, os rotis de petites, os baghettes quentinhos, os croissants, as onze geléias light diferentes, os cinco sucos de frutas e pensa "sim, o Brasil está no caminho certo".
Após seu desjejum, veste um jeans, tênis Nike originais, camiseta do Che Guevara da Gucci, óculos de sol Armani e dirige seu Astra do ano até a Casa de Cultura Mário Quintana. Lá encontra, nas mesas dos bares rés-do-chão os seus amigos intelectuais revolucionários. Ao chegar já é interpelado pela deliciosa Jeanne Hoffmannn, entre eles conhecida como 'cumpanhêra Joana', herdeira de uma rede de supermercados, que trava com Johann Krug, entre eles conhecido como "cumpanhêro João", herdeiro de um grande banco, uma dura discussão sobre a matança indiscriminada de jacarés. 'João' acusa a 'cumpanhêra' de ser conivente, ela se defende alegando que o jacaré já estava morto quando ela comprou aquela bolsa em Paris e só usa de vez em quando, justamente em solidariedade aos jacarés. João:
- É? E essa tua jaqueta, é couro de marta, não?
- Não enrola, o assunto aqui é jacaré, não marta!
Enlil pensa sobre aquele grupo. Credo, um quarto do PIB Gaúcho está ali discutindo revolução e ecologia. Mas afinal, alguém tem CULPA de ser rico? E inicia então novo discurso, para gáudio dos amigos, que literalmente lhe bebem as palavras. Com as costumeiras citações, declara e prova que matar jacaré é errado mas se já está morto mesmo, para que desperdiçar o couro? Num verdadeiro Estado Socialista TUDO tem função social, até o couro do jacaré. E Lênin disse que...
Contornadas as divergências, resolvem ir visitar um acampamento do MST para levar-lhes sua solidariedade. Os coitados dos commies ficam assustados ao verem aqueles carrões cheios de gente chique. O líder comenta:
- Cuidado aí, cumpanhêros, devem ser traficantes, se as FARC sonharem que a gente tá de conversa com outros grupos vai ficá feio pra nóis...
Ignorando as reservas, o alegre grupo bebe cachaça da mais vagabunda com os sem-terra, fala mal do governo, daí se lembram que o governo é do Lula e passam a falar bem, daí começam a falar mal do próximo governo, daí lembram que vão votar na Dilma e claro que com esse apoio ela se elege fácil e passam então a falar bem do próximo governo também. Para não ficar sem ter de quem falar mal, começam um entusiasmado revival do governo FFHH. Agora sim...
Toca o celular do Enlil. Ele se afasta. É sua mãe querendo saber onde anda, o discreto jantar de quinhentos talheres em sua casa para angariar fundos para a candidatura do Serra vai começar em menos de uma hora, é melhor estar presente e bem quietinho e simpático ou babaus viagem a La Habana para colher cana pro Fidel. Com o rabo do olho vê a 'cumpanhêra Joana', meio embriagada, entrando numa das tendas com oito sem-terra. Orgulha-se. Isso sim é que é uma legítima socialista, distribui o que tem entre os camaradas e não exclui ninguém...
Bem, só agora notou que está escurecendo, gozado não ter sono. Despede-se da cumpanherada dizendo que tem de estudar para a prova de Filosofia. Em casa, veste o smoking da Saville Row e sapatos de couro de jacaré. Sente-se algo culpado. Lembra da 'Joana': é, quando sua mãe comprou o jacaré já estava morto mesmo...
E, após nova maratona do quarto à sala, vai para o jantar. Serra está lá. Mas esta já é outra história...