Regresso
"Não há pobres no Haiti. Agora todos são iguais"
Hoje
Um emigrante português, que vivia desde 1983 no Haiti, relatou as cenas de destruição. Chegou ontem a Portugal com os dois filhos.
Uma mala grande castanha é tudo o que resta de quase três décadas de vida no Haiti. A mala e os dois filhos, de 21 e 24 anos, que conseguiu encontrar depois de dias de preocupação no meio da morte e das ruínas de Port-au-Prince. Ontem, Gilberto Nunes António regressou à terra que o viu nascer há 61 anos, Portugal, mas não consegue esquecer o horror que deixou para trás. "Estou sempre a ver o sangue, as pessoas a pedir ajuda e ninguém para ajudar", contou à chegada ao aeroporto de Lisboa.
"Não sabia onde estavam os meus dois filhos e não dava para ver mais do que dois metros. Parecia um filme, vi prédios a cair sobre crianças e sobre as pessoas que estavam no passeio", lembrou, horrorizado. Gilberto, há 27 anos no Haiti, estava a conduzir quando a terra começou a tremer: "Perdi o controlo e só via prédios a cair." Até que o seu carro foi atingido. Por sorte, a porta do seu lado abriu-se e conseguiu escapar.
"Saí do centro da cidade a pé. Estava tudo destruído, as pessoas gritavam, choravam e louvavam a Deus", recordou, pouco antes de embarcar noutro avião para Faro. O destino final é a casa da irmã, em Portimão. A dele, ficou destruída: "Quando cheguei, vi que todos os edifícios estavam destruídos e não encontrava a minha casa nem os meus filhos. Subi aos escombros e continuava a não os ver."
Galliano, de 21 anos, contou ainda abalado o que aconteceu na fatal tarde de terça-feira. "Primeiro pensava que era um ciclone. Depois o tecto caiu e fui para a rua." A casa desmoronou-se atrás dele. Nessa altura pensou que ia "morrer ali mesmo". Encontrou o pai no dia seguinte, mas localizar o irmão mais velho foi mais difícil.
Darwin, de 24 anos, admitiu que ficou de tal forma "que nem sabia onde tinha a cabeça". Nos dias a seguir ao sismo ficou com amigos até finalmente reencontrar a família e embarcar no voo da cooperação espanhola. "Chorei muito, perdi muitos amigos. Do Haiti, trouxe muitas más recordações", disse em francês. O pouco que tinha era pão duro e água com sal, à qual juntava açúcar para poder consumir e "disfarçar a sede".
Apesar do que a família passou, Gilberto pensa regressar ao Haiti. O português, que teve quatro empresas e agora tinha uma fundação, quer voltar assim que tiver os meios para o fazer. Depois de ter visto tanta morte e destruição e ninguém para ajudar, quer ele próprio deitar mãos à obra.
Galliano não tem tanta certeza: "Não há vida no Haiti. Já não há ricos, já não há pobres. Agora, todos são iguais", desabafou.
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Tragédia
Morte é negócio para explorar alguns dos vivos
por ALFREDO LEITE, Hoje
Entre os escombros, há quem peça 1200 dólares para resgatar um corpo soterrado e organizar um funeral em Port-au-Prince.
Pode parecer estranho, mas não foi a notícia da morte de Marco Louis Destin que mais doeu a Keyla. "O corpo do meu irmão foi resgatado um dia depois do terramoto. Foi levado para a casa mortuária e agora ameaçam enterrá- -lo em vala comum", explica.
A ameaça tem a razão de quem faz da morte a vida. E com tanta morte, o negócio é ainda mais feroz.
"Pedem 1200 dólares (pouco mais de 800 euros) para podermos levantar o corpo e realizar o funeral", conta Keyla Eunice.
"Se não o fizermos até este sábado, será enterrado numa grande vala que vão abrir aqui perto do cemitério e nós queremos enterrar o nosso querido irmão aqui, junto a casa", acrescenta a secretária e tradutora.
Keyla, a mãe Ludie e alguns vizinhos começaram a recolher donativos, mas a colecta está longe do objectivo.
"Tudo o que conseguimos arranjar foram 600 dólares. Vamos ver se nos deixam fazer o funeral assim."
A tarefa não é nada fácil. Acompanhámos Keyla, com alguns dos seus familiares da remediada e escassa classe média haitiana, à casa mortuária onde repousa o irmão. Junto à porta do salão fúnebre "1000 souvenirs", aparecem mais famílias sem dinheiro a reclamar corpos.
Ao todo, para lá das portas de vidro preto estilhaçado, estão 30 cadáveres. Sem electricidade, as condições de conservação dos corpos degradam-se a cada instante que passa e nas ruas o cheiro pestilento torna-se insuportável.
Reina uma evidente tensão entre os proprietários da casa mortuária que, de um dia para o outro, devido ao sismo, também se tornaram nos donos do que a família de Keyla mais quer.
A discussão está quente, mas a dona da casa mortuária resolve condescender. Vai aceitar o levantamento do corpo contra o pagamento de "apenas" 600 dólares e, daí a pouco, decide autorizar a visita ao cadáver de Marco.
É Ludie Desde que mais se indigna: "Fecham o corpo como se fosse deles. Não é. Quero o meu filho! Quero fazer um funeral que é a única coisa que agora posso fazer por ele."
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