#2153
Mensagem
por Marino » Seg Nov 30, 2009 11:45 am
Revista do Clube Militar – Ano LXXXII / Nº. 434 / AGOSTO-SETEMBRO-
OUTUBRO DE 2009
(pgs. 26 a 29)
O Embaixador Gibson Barboza e a crise com o Paraguai (1965 – 1975)
Uma lição clássica de Ação Diplomática
Embaixador Marcos Henrique Camillo CÔRTES *
Nos últimos tempos foram amplamente noticiadas ações de governos de
países vizinhos nocivas aos legítimos interesses do Brasil que se têm
beneficiado de injustificáveis aceitação e complacência do governo
Lula. No mais recente desses casos foram feitas concessões unilaterais
às absurdas reivindicações do presidente do Paraguai visando à revisão
do Tratado de Itaipu. Assim sendo, parece muito oportuno recordarem-se
as complexas negociações que conduziram à sua assinatura, destacando-
se nelas a atuação competente e patriótica do saudoso Embaixador Mario
Gibson Barboza, falecido em 26 de novembro de 2007. Com esse objetivo,
resumo a seguir o histórico da sua atuação no período de novembro de
1966 a abril de 1974, que, na minha opinião profissional, constitui
uma lição clássica de Diplomacia.
A partir de 1965, o governo paraguaio iniciou uma intensa campanha
para obrigar o Brasil a aceitar a revisão do Tratado de Limites de
1872, no qual se estipulava que, subindo-se o rio Paraná, a fronteira
marcada pelo seu álveo é abandonada em um ponto determinado para
procurar-se a “linha divisória pelo mais alto da Serra de Maracaju”. O
Paraguai pretendia impor sua interpretação de que esse “ponto de
partida” se localizava um pouco acima do Salto Grande, com o que teria
plena soberania sobre este e incorporaria uma faixa do território
brasileiro. Nossa posição histórica (e até então incontestada) sempre
fora de que esse “ponto de partida” situava-se defronte à principal
das chamadas Sete Quedas, conhecido como Salto Grande ou Salto de
Guaíra.
Em junho de 1966, em Foz do Iguaçu, os Chanceleres Juracy Magalhães e
Raúl Sapena Pastor assinaram a Ata das Cataratas numa tentativa de
equacionar uma solução e atenuar a animosidade do Paraguai, porém logo
se reacendeu a reivindicação paraguaia. O governo brasileiro resolveu
então, em novembro de 1966, transferir de Viena para Assunção o
Embaixador Gibson. [Daqui por diante, a fonte principal deste artigo é
a sua excelente autobiografia, intitulada “Na Diplomacia, o traço todo
da vida” (3ª Edição, revista e ampliada (2007) / Editora Francisco
Alves), da qual farei algumas transcrições e resumirei alguns
trechos.] Nas suas palavras, “(...) Era um enorme desafio. O Brasil
encontrava-se à beira de uma guerra com o Paraguai, ou melhor, o
Paraguai estava à beira de uma guerra com o Brasil, por um litígio de
fronteira.”
Três circunstâncias complicavam a questão. Na margem oeste do Paraná
existia uma minúscula instalação conhecida como Porto Coronel Renato
(um barracão e pequeno ancoradouro, mantidos por meia dúzia de
soldados), cuja posse estivera desde sempre com o Brasil mas que
passara a ser reivindicada pelos paraguaios, originando graves
incidentes.
A segunda complicação decorria do fato de que “o Brasil, que firmou
todas as suas fronteiras por meios pacíficos (acordos internacionais
de arbitragem ou negociações diretas), tinha de preservar o princípio
sagrado de Direito Internacional Público da inviolabilidade dos
tratados de fronteira. Coerente com essa conduta, era preciso evitar –
até o limite máximo – o recurso à força armada. Deixar que se abrisse
uma brecha nesse princípio primordial seria colocar em tela de
julgamento toda a complexa teia de instrumentos jurídicos que regulam
o traçado de nossas fronteiras, o nosso perfil físico, tão
laboriosamente fixado. Obviamente, isso era simplesmente impensável!”
Por último, contribuía para a complexidade da problemática o fato de
que a maioria do EB estava alinhada a uma posição de força: resistir,
se preciso pelas armas, contra a pretensão paraguaia de tirar um
pedaço do nosso território. Assim sendo, era preciso mostrar que, às
vezes, é necessário conter o justo ímpeto dos militares para que se
possa defender a soberania nacional por outros meios – especialmente
os diplomáticos.
Ademais, a situação geopolítica e geoestratégica se mostrava muito
desfavorável: (1) o Paraguai comemorava cem anos do “martírio da
raça” (Guerra da Tríplice Aliança, 1865-70); (2) havia sinais de
simpatia internacional pela “causa do pequeno Paraguai”, que exigia
acirradamente um trecho da fronteira comum; (3) o governo paraguaio
contava com apoio da Argentina para se manter “duro” com o Brasil; (4)
a opinião pública paraguaia já estava emocionalmente firmada e se
mostrava irredutível, aumentando uma hostilidade ostensiva, inclusive
com recusa de atendimento a brasileiros nas lojas da capital; (5) no
dia da chegada do Embaixador Gibson a Assunção houve queima da
bandeira brasileira, “buzinaço” em torno da Embaixada e pichação dos
seus muros. Ora, considerando-se a rigidez do regime ditatorial, nada
disso seria possível sem, no mínimo, o beneplácito de Stroessner.
Gibson definiu claramente qual teria de ser o objetivo primordial:
encontrar uma solução pela via diplomática para a controvérsia criada
pelo Paraguai, sem qualquer prejuízo para o princípio da
inviolabilidade do Tratado de Limites e da soberania brasileira. Isso
se coadunava com o Objetivo Nacional Permanente (ONP) de preservar o
princípio do Direito Internacional de que “pacta sunt servanda” (“os
tratados têm de ser respeitados”), que sempre foi uma das colunas
mestras da Diplomacia brasileira.
Gibson conceituou também os dois objetivos decorrentes: (1) definir as
bases para o aproveitamento conjunto do potencial hidrelétrico do rio
Paraná no seu trecho contíguo e (2) assegurar a geração de energia
para a demanda previsível para as próximas décadas. Constituíam dois
Objetivos Nacionais Atuais (ONAs), convindo recordar que, se não se
construísse Itaipu, a economia brasileira teria sido paralisada
irremediavelmente.
Para atingir todos esses objetivos, Gibson equacionou uma Diretriz de
Ação Política – “(...) a solução (terá) de passar pelo aproveitamento
conjunto, entre os dois países, do imenso potencial hidrelétrico do
Paraná” – e uma Diretriz de Ação Estratégica – “Tecer uma teia de
interesses entre Brasil e Paraguai de tal porte que gerasse efetivos
benefícios aos dois países, permitindo que o diferendo territorial
passasse a plano secundário ou mesmo desaparecesse”.
A seguir, Gibson implementou duas Diretrizes de Ação Tática. A
primeira consistiu em um “aviso à Chancelaria paraguaia do
comparecimento do Emb. Gibson, com todos os membros da Embaixada
(inclusive os Adidos Militares) à festa da Virgem de Caacopê,
importantíssima no Paraguai, a que o Presidente da República comparece
e ajuda a carregar o andor com a imagem”. Isso criaria uma situação
protocolar delicada, pois Gibson ainda não havia entregado suas Cartas
Credenciais. Por isso, o Presidente Stroessner, contrariando sua
prática de impor longa espera aos novos Embaixadores, mandou que se
apressasse a data da cerimônia para tal fim, que se realizou quatro
dias depois. Além disso, na festa em Caacopê, em certo momento
Stroessner saiu de sua mesa e sentou-se ao lado do Embaixador,
agradecendo sua presença. Dessa maneira, Gibson logo de início
demonstrara claramente a Stroessner sua competência profissional e a
firmeza de sua conduta pessoal.
A segunda diretriz tática era o estabelecimento de diálogo franco com
o Ministro das Relações Exteriores, Raúl Sapena Pastor. A conversa,
reproduzida no seu livro, revela como Gibson explicitou com energia
sua postura de base, temperando-a com uma proposta construtiva e
plausível:
“(...) não vim ao Paraguai para discutir fronteira, nem com o Senhor
nem com qualquer membro do seu governo.
“(...) o Paraguai não tem razão alguma. Não tem razão histórica, não
tem razão diplomática, não tem razão jurídica, não tem razão
geológica.
“(...) Por que não unimos nossas forças, em vez de levarmos adiante
uma disputa tão estéril, e fazemos um grande empreendimento conjunto
no rio Paraná, com enorme benefício para os dois países e que nos vai
unir para sempre? ”
O resultado não tardou. “No dia seguinte, às seis da manhã, o telefone
da mesa-de-cabeceira me acorda. Era o chefe de protocolo do Presidente
Stroessner: ‘O Presidente recebe o senhor hoje às seis e trinta.’ Eu
não pedira audiência. Saí como pude, correndo, para estar lá na hora
marcada.”
Stroessner: “O senhor disse umas coisas, ontem, ao meu Chanceler. Quer
repeti-las? É sobre o aproveitamento do rio.”
(Síntese da resposta de Gibson):
- O Brasil nada quer tirar do Paraguai, mas não pode conceder-lhe um
pedaço de seu território, por menor que seja.
- Será a maior hidrelétrica já construída no mundo.
- Diante do porte dessa hidrelétrica, o problema do pequeno
território em disputa passa a ser secundário e ninguém mais falará no
assunto.
- Esse pequeno território em litígio ficaria submerso.
Stroessner: “Está interessando. Olhe, vou falar com meu Chanceler, que
está à sua espera.”
Nesse momento, Gibson pôde concluir confiante que “Nascia Itaipu !”
Estabelecido assim o começo das negociações, que prosseguiriam em
âmbitos técnicos e diplomáticos dos dois países, o Embaixador Gibson
foi transferido em 1967 para o Rio de Janeiro, onde desempenharia
sucessivamente as funções de Subsecretário-Geral e de Secretário-Geral
das Relações Exteriores. Em 1968, foi nomeado Embaixador em
Washington, onde estava quando o recém-empossado Presidente Médici o
convidou para o cargo de Ministro das Relações Exteriores, que
ocuparia até o final desse governo (31/OUT/69 a 15/MAR/74). Sua gestão
foi profícua em numerosas e importantíssimas iniciativas e
realizações, justificando plenamente a avaliação de que “foi, sem
sombra de dúvida, a figura mais importante na política externa do
período” (A Diplomacia do Interesse Nacional / A política externa do
Governo Médici, de Cíntia Vieira Souto (2003 / Editora da UFRGS).
Logo que assumiu o cargo de Chanceler, Gibson traçou as linhas de ação
para a conclusão das negociações sobre Itaipu, que iniciara como
Embaixador em Assunção. Essa etapa não seria fácil, pelos muitos
óbices a superar. Havia problemas decorrentes de idiossincrasias
paraguaias, cujo governo persistia em manter aberta a “questão
fronteiriça”. Dentro do Brasil continuavam a se manifestar opiniões
contrárias ao projeto, em geral preferindo que a barragem fosse
erguida no trecho do rio Paraná a montante da fronteira com o
Paraguai.
Por outro lado, o governo argentino vinha desenvolvendo ferrenha
oposição ao projeto brasileiro-paraguaio, com alegações infundadas de
que Itaipu causaria “prejuízos sensíveis” àquele país, tentando impor
a “invenção jurídica” de um suposto “efeito suspensivo” a que ficaria
subordinada a mecânica da consulta prévia (por nós aceita desde muitos
anos, seguindo a consagrada “Prática de Jupiá”). Pela pretensão
argentina, nada poderia ser feito até que Buenos Aires nos desse uma
resposta favorável. Essa manobra, de resto, confirmava a verdadeira
meta argentina, que consistia em impedir a construção da usina a fim
de sustar o desenvolvimento econômico do Brasil !
A campanha difamatória contra o Brasil no exterior, que vinha sendo
conduzida por brasileiros contrários ao regime, era utilizada pela
Argentina para acusar o governo brasileiro de ser um desrespeitador
contumaz do Direito Internacional. Dessa maneira vinham sendo criados
fortes empecilhos para obtenção dos créditos e financiamentos
indispensáveis para a gigantesca obra.
A essa altura, a chamada “Crise das 200 milhas”, desencadeada pela
vigorosa oposição dos Estados Unidos à decretação do limite de 200
milhas náuticas para o mar territorial brasileiro, foi resolvida
graças à atuação do Chanceler Gibson, que possibilitou ao governo
brasileiro “dar a volta por cima”. Não cabe aqui descrever esse
episódio, bastando sublinhar que a firmeza e habilidade do Chanceler
conseguiram inverter de modo positivo o relacionamento bilateral com
Washington (MAR/1971), pondo fim à postura crítica norte-americana até
então mantida para com o governo brasileiro. Graças a essa inflexão,
desapareceram as barreiras para a obtenção do financiamento
internacional para Itaipu.
Mesmo assim, intensificou-se a campanha argentina contra o projeto
brasileiro-paraguaio. O então presidente argentino, General Alejandro
Lanusse, num exemplo dos efeitos nocivos da chamada “Diplomacia
Presidencial” (tão em voga atualmente), empenhou-se numa conduta de
provocação e enfrentamento, que culminou numa desastrosa visita
(forçada) a Brasília. Na ONU, a delegação argentina conseguiu fazer
aprovar, em duas Assembléias-Gerais sucessivas, resolução endossando o
“princípio da consulta prévia com efeito suspensivo”. Paralelamente, a
Argentina procurava impor sua tese no âmbito do Tratado da Bacia do
Prata (assinado em 1969), com o que inviabilizava a implementação de
vários projetos de integração sub-regional.
O governo brasileiro, sempre em coordenação com Assunção, manteve-se
firme na defesa da legitimidade do projeto de Itaipu, inclusive com a
celebração, entre os Chanceleres Gibson e McLoughlin, do denominado
“Acordo de Nova York” (SET/1972), que marcou a retomada do diálogo com
a Argentina. Infelizmente, esse esforço de entendimento seria
abandonado por Buenos Aires, que retomou ações ostensivamente
inamistosas, as quais chegaram até a alimentar sérios rumores de um
eventual ataque armado argentino.
Apesar de todas essas graves dificuldades, foi concluída a negociação
com o Paraguai e, em 26 de abril de 1973, em Brasília, procedeu-se à
assinatura solene do Tratado de Itaipu pelos Chanceleres Gibson e
Sapena Pastor, na presença dos respectivos Presidentes.
Os termos do Tratado consubstanciaram um exemplo incomum em todo o
Mundo de participação totalmente igualitária entre países com imensa
desigualdade de Poder Nacional! Tudo seria repartido rigorosamente em
50% para cada país, embora o Brasil tivesse tido de bancar sozinho
todo o financiamento da construção da usina. (Daí o esquema em vigor
de abatimento da dívida paraguaia, atualmente de US$ 19 bilhões,
utilizando-se parte do pagamento pelo Brasil com a compra do excedente
não-utilizado pelo Paraguai.)
Mais do que o começo daquela que seria “a usina da prosperidade
compartilhada”, o Tratado marcou o início de um projeto geopolítico de
imenso alcance. Itaipu iria dobrar a geração de energia, assegurando o
crescimento cumulativo do Poder Nacional do Brasil. Um efeito
colateral seria gerar uma disparidade inconteste do Poder Nacional
entre Brasil e Argentina, permitindo a esperança de que se
neutralizasse a histórica belicosidade portenha. Graças à usina, o
Paraguai teria condições de empreender um processo de acelerado
desenvolvimento econômico e social que poderia servir de “modelo” para
outros países com características semelhantes. Além disso, o Paraguai
passaria a ter uma posição negociadora muito melhor perante a
Argentina, sobretudo em relação ao projeto da usina hidrelétrica de
Yaciretá-Apipé, que se arrastava desde 1925.
A assinatura do Tratado de Itaipu foi uma demonstração tangível do
Substrato Moral da Nação brasileira, caracterizado nessa preferência
pela negociação diplomática para dirimir controvérsias internacionais.
Em outras palavras, confirmava-se o acerto da tradição do Itamaraty,
conformada pela obra magnífica dos diplomatas brasileiros desde
Alexandre de Gusmão no século XVIII, com o Tratado de Madri (1750),
passando pela atuação do Visconde do Rio Branco em 1870, para impedir
a desagregação territorial do Paraguai, e coroada com a obra grandiosa
do Barão do Rio Branco na fixação jurídica das nossas fronteiras.
A sucinta descrição feita aqui justifica plenamente a caracterização
do Embaixador Gibson como um autêntico paradigma de Diplomata. Sem
abrir mão dos legítimos interesses brasileiros, soube encontrar uma
solução pacífica que propiciou enormes benefícios ao Paraguai e evitou
um desenlace trágico que poderia ter levado à guerra entre os dois
países. Por tudo isso e pelos outros grandes feitos na sua trajetória
profissional, não hesito em afirmar que, na história diplomática do
Brasil, depois da figura ímpar do Barão do Rio Branco, o maior
Chanceler que o país teve até hoje foi o Embaixador Mario Gibson
Barboza !
Inspirado pela memória desse grande brasileiro e tendo em vista certos
episódios recentes da conduta do atual governo no Campo Externo, creio
necessário recordar alguns conceitos basilares da Diplomacia:
No relacionamento internacional, não há amigos nem inimigos; existem
apenas (e sempre) interesses conflituosos ou conciliáveis.
A capacidade de atuação de um Estado no Campo Externo é a resultante
do desempenho diplomático da Nação ao longo de sua história.
A Política Externa é, por definição, Política de Estado. Sua
formulação e implementação só devem ser confiadas aos quadros
diplomáticos profissionais (Carreira de Estado), preservados da
contaminação pelos interesses da política interna.
Política Externa é algo sério demais para se deixar nas mãos de
políticos e amadores.
Na Diplomacia, os fins jamais justificam os meios e só pelos meios
corretos poder-se-á atingir um fim satisfatório.
Em Política Externa, a generosidade só é autêntica quando atende aos
interesses de todas as Nações envolvidas. Em caso contrário, revela
incompetência e estimula novas exigências. As concessões feitas por
incompetência conduzem ao fracasso diplomático, que leva à trilha
nociva da “política por outros meios”.
Para terminar, convém assinalar que
A Nação que não cultua os grandes feitos dos seus próceres
está fadada a não conseguir emulá-los !
"A reconquista da soberania perdida não restabelece o status quo."
Barão do Rio Branco