Ele me pareceu "meio mudado".
Assessor de Lula vê "afinidade subjetiva" do Brasil com Cuba
CLAUDIO DANTAS SEQUEIRA
da Folha de S.Paulo
Investimentos, ajuda humanitária e apoio diplomático compõem o atual momento das relações entre Brasil e Cuba. O país, que ensaia abertura cautelosa após 50 anos de comunismo, é privilegiado pela política externa brasileira. Nas palavras do assessor para Assuntos Internacionais da Presidência, Marco Aurélio Garcia, há uma "afinidade subjetiva" entre Lula e os irmãos Fidel e Raúl Castro. "Mas não é uma relação ideológica", diz Garcia, evitando classificar o regime cubano.
"Temos um sistema político e valores diferentes." Em entrevista à Folha, o assessor diz que a crise financeira vai adiar iniciativas como a reforma da ONU, mas está otimista com a integração da região. "A crise com o Equador está superada."
Folha - Na reunião de Salvador, há uma semana, surgiu a idéia da união latino-americana. Já temos o Mercosul e a Unasul. Não é cedo para uma iniciativa do tipo?
Marco Aurélio Garcia - Nosso esforço inicial de integração foi sul-americano. A idéia era a aproximação em blocos. Mas houve um efeito positivo sobre a América Central e do Caribe. Temos problemáticas econômicas, étnicas e políticas semelhantes. Estamos buscando uma identidade regional. México e Cuba mudaram a percepção sobre as questões que estão em jogo na política externa, e agora apostam na América Latina. Havíamos convidado Cuba para o Grupo do Rio há três anos, mas não houve interesse.
Folha - Por que a mudança?
Garcia - O Sul está se fazendo respeitar, com a melhoria da situação econômica, o avanço democrático. Isso exerce uma certa influência. Estamos descobrindo nossa importância, temos um grande potencial energético, mineral, uma biodiversidade extraordinária, uma das maiores reservas agrícolas do mundo e um imenso mercado consumidor. Mas não queremos substituir os Estados Unidos, nem no conteúdo e muito menos na forma. Chegamos ao fim do apogeu das idéias neo-conservadoras e do unilateralismo. Isso se traduz em orientações de integração. Nos interessa a Argentina forte industrialmente, que a Bolívia se torne estável e a Venezuela não produza só petróleo, mas diversifique a produção. Cada país tem uma leitura particular. O [Hugo] Chávez vê isso de uma ótica bolivariana, o Evo [Morales] vê isso do ponto de vista de uma certa refundação com os povos originários. Nós temos outro tipo de visão e o Chile tem outra. Mas conseguimos estabelecer um terreno comum.
Folha - E os conflitos com o Equador e o Paraguai?
Garcia - Com o Equador, a moratória seria uma catástrofe para o futuro dos investimentos lá. É um episódio ruim, por isso reagimos. Mas na minha opinião, a crise foi superada e o embaixador pode voltar. Outras empresas já estão querendo substituir a Odebrecht. Com o Paraguai houve um avanço de método para elevar o diálogo, que às vezes fica contaminado. Temos que ter sensibilidade sobre a questão de Itaipu. Não vamos perdoar a dívida, mas não queremos um Paraguai pobre. Ninguém perde por ser generoso, mas aqui no Brasil isso é entendido como fraqueza. Mas os que criticam praticaram subserviência.
Folha - Qual impacto terá a crise financeira?
Garcia - Não sabemos ainda, mas vamos sofrer mais se estivermos isolados. Temos que evitar o protecionismo, aumentar a confiança e evitar conflitos desnecessários. E essas reuniões, que muitos criticam, são fundamentais para a confiança. Se fôssemos arrogantes com o Evo [Morales] em 2006, a coisa tinha piorado. Hoje a produção de gás cresce e nossa relação é muito boa. As pessoas podem não gostar do Evo, criticar o Lula por respeitar o [Alvaro] Uribe, que admira o Fidel. A política é complexa.
Folha - A relação com Cuba é ideológica?
Garcia - Não é ideológica. Não compartilhamos uma série de valores dos cubanos. Nosso sistema político e eleitoral é diferente. Mas não é esse o problema. Queremos ajudar Cuba, como a Jamaica. Com a particularidade de que, com Cuba, há um elemento de afinidade subjetiva. Várias gerações entraram na política tendo o modelo cubano como referência, a forma como defenderam a soberania e as mudanças sociais implementadas. Gostemos ou não, quando fizerem um inventário dos grandes personagens do século 20, Fidel Castro vai estar nele.
Folha - Hugo Chávez quer se reeleger sucessivamente. Isso não fere a democracia?
Garcia - No Mercosul temos a cláusula democrática. Achamos que a integração reforça a democracia, mas não exportamos paradigmas. Se as eleições são livres, não há problema. Só espero que esse assunto não interfira na reunião do Lula com [o presidente francês, Nicolas] Sarkozy, já que a França é um país com eleição indefinida. Isso também não fazia parte da tradição francesa. O general DeGaulle foi quem introduziu. Tanto é que alguns caracterizaram a 5ª República como um golpe de Estado permanente.
Folha - Como responder às críticas sobre o fracasso de Doha, do G20 e da reforma do Conselho de Segurança da ONU?
Garcia - Doha não foi um fracasso do Brasil, foi um fracasso do mundo inteiro. Levamos uma tese para o G20. Muita gente diz que é só retórica, mas sem retórica as ações não se consubstanciam. O fato é que o Brasil se transformou em referência importante nos últimos anos. Em primeiro lugar, no plano econômico e social e no aprofundamento da democracia. Em segundo lugar, porque entrou em várias bolas divididas internacionais. Nós participamos ativamente das negociações comerciais. Alguém vai dizer, "fracassaram". Bom, claro. Não tem nenhum time de futebol que só contabilize vitórias. Estamos participando ativamente no reordenamento da arquitetura institucional internacional, seja na briga do Conselho de Segurança, ou na reforma da ONU em sentido mais amplo, seja na presença no G8 ampliado. Isso tudo exige trabalho, exige reflexão, iniciativas concretas, como aumentar o número de embaixadas e de embaixadores. A ampliação do Conselho de Segurança, naturalmente poderá ser retomada, mas estou cético. O contexto de crise não vai ajudar. Mas a reforma é um imperativo, pois temos enormes focos de tensão internacionais.
Folha - E quais são as ameaças de segurança na nossa região?
Garcia - Aqui na região temos ameaças potenciais. No Brasil, a Amazônia e o litoral, com sua riqueza energética. Por isso criamos o Conselho Sul-americano e Defesa. Vamos trocar informações, configurar um debate da segurança coletiva e reerguer a indústria de defesa, que vai prover as forças armadas da região. O Conselho tem uma estrutura light no momento atual. Não daria para funcionar se projetasse uma ambição desmesurada, que pudesse criar suspicácias ou resistências. Estávamos defasados. Grande parte das América do Sul nos últimos 40 anos viveu sob ditaduras militares, sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional. Isso caducou e não veio nada no lugar. Queria chamar a atenção para um problema fundamental que é o seguinte: projeto político de integração que não tem dimensão de defesa, vai ser tutelado por alguém. A Europa hoje, vive essa ambigüidade, da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), e não consegue construir um projeto. Os europeus vão dizer que não é bem assim, mas eu acho que é assim. A regionalização da indústria de defesa vai gerar emprego e conhecimento científico e tecnológico.
Folha - Como financiar? Não corremos o risco de repetir o modelo de outros países, fornecendo equipamentos para a guerra dos outros?
Garcia - A concepção de defesa que nós temos é dissuasiva. O último grande conflito que temos na região é interno na Colômbia, que está amainando e oxalá se resolva rapidamente pela via diplomática. Então temos uma concepção dissuasiva, grande parte dos conflitos podem ser resolvidos. Agora, temos ameaças potenciais. Ou você enfrenta ou não. Eu vou lhe dar um exemplo de que a roda está andando: os Super Tucanos. O Chile comprou, a Colômbia comprou, o Equador está comprando, a Bolívia quer comprar e a Venezuela queria comprar, mas foi impedida e acabou comprando de outro. Nós gostaríamos que esse avião fosse regional, não só no consumo, mas também na produção. Os chilenos estão produzindo algumas peças já de aviões da Embraer. Nós não estamos financiando a guerra. Estamos financiando justamente a paz, se nós tivermos a idéia de que os mísseis vendidos para o Paquistão são dissuasivos. Por outro lado, se não vendermos, alguém vende. Não podemos ter uma atitude cínica, de que não nos interessa vender armamento. Claro que nos interessa! Mas tampouco devemos ter um atitude romântica. Não é a construção de uma indústria de defesa da região que será um fator de instabilidade política. Temos que ter responsabilidade e fazer com que os meios diplomáticos se sobreponham aos meios militares.