Valor Econômico A guerra-fria sul-americana Luiz Antonio Ugeda Sanches
Em um período de nacionalismos bolivarianos, eleições municipais brasileiras e preocupação global com o mercado de capitais, não necessariamente nessa ordem de importância, o governo regulamentou a Lei nº 11.631, de 27 de dezembro de 2007, que dispõe sobre a Mobilização Nacional e cria o Sistema Nacional de Mobilização (Sinamob).
O decreto nº 6.592, de 02 de outubro deste ano, fixou o que será considerado agressão estrangeira ao Brasil e aos brasileiros, ou aos interesses do país. Tal norma, que se explica por si só, certamente pode ser considerada a coroação do principal ato geopolítico realizado pelo Brasil no século XXI. No parágrafo 1º do artigo 2º, as agressões externas passam a ser compreendidas, "dentre outras, ameaças ou atos lesivos à soberania nacional, à integridade territorial, ao povo brasileiro ou às instituições nacionais, ainda que não signifiquem invasão ao território nacional".
Na esfera jurídica, ainda há muito que discutir. Afinal, pode o Brasil invadir determinado país para defender o povo brasileiro ou as instituições nacionais? No plano político, o ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, já argumentou que o Brasil precisa reequipar as Forças Armadas para ter a capacidade de dizer "não" ao mundo. Por um lado, há quem alegue que o decreto conflitaria com o princípio constitucional, pétreo, da não intervenção externa. Por outro, há o argumento de que um dos relatores da atual Constituição, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, atual ministro da Defesa e signatário do referido decreto, Nelson Jobim, tenha credenciais suficientes para ter evitado a assinatura da norma caso a compreendesse inconstitucional.
Nessa era da civilização humana, que teima em manter a cultura geopolítica da conquista, da subjugação de um Estado por outro, ao invés de aprimorar a estrutura geojurídica, normativa, da conservação e do planejamento, por meio de tratados, o grande paradigma do capitalismo atual é como suprir um planeta com mais de seis bilhões de habitantes, com consumo per capita crescente, de energia e alimentos, com os mesmos padrões alcançados até então.
Vivemos em uma era de expansão dos Estados nacionais, de uma corrida territorial marítima. Com base na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), aliado ao aquecimento global, a Rússia fincou sua bandeira no fundo do pólo norte, em degelo. O Brasil pretende aumentar seu território em torno de 50%, com o conceito de "Amazônia Azul", ou seja, obter o prolongamento de seu território em até 350 milhas marítimas por toda a costa.
Em recente entrevista a revista alemã Der Spiegel, o presidente Lula foi enfático ao afirmar que as guerras na América Latina são travadas apenas com palavras. A língua seria a arma latina mais poderosa. Mas o bolivarianismo também age. A Bolívia forçou a Petrobras a renegociar contratos, inclusive com o emprego das forças armadas. A mesma empresa foi obrigada a devolver um bloco petrolífero no Equador, após investir no país US$ 430 milhões desde 1997. Funcionários de Furnas, encarregados de fiscalização, ficaram retidos no Equador após a identificação de problemas na construção de uma hidrelétrica pela Odebrecht. A Venezuela recebe com honras de Estado a Rússia para exercício aeronaval conjunto, em pleno mar caribenho. E o Paraguai deseja rever o Tratado de Itaipu, concomitante a ameaças de movimentos populares guaranis de invadir a hidrelétrica binacional em protesto contra o montante repassado pelo Brasil pela aquisição de energia elétrica da usina.
Nesse contexto de escassez de recursos naturais, o continente gelado ganha papel estratégico no século XXI, fato que acarretará uma inevitável revisão do Tratado da Antártida, de 1959. O derretimento rápido das calotas polares pode facilitar a exploração dos recursos naturais. Mas nem sempre o pólo sul foi tratado com tanta cobiça.
Muito antes de cunharem a expressão BRIC, Henry Kissinger, um dos diplomatas mais influentes do século passado, afirmou que os grandes países emergentes seriam a China, a Índia e a Rússia, que teriam condições de aliar grande consumo com baixo custo de produção. Para a América do Sul, com ácida ironia, mencionava que o mapa da região parece um punhal que ruma para a Antártida, fadado a irrelevância. Em 2002, o então secretário de Comércio, Robert Zoellick, em momento de impasse nas negociações, disse que o Brasil precisava escolher entre a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) e a Antártica, ou seja, aderir ao projeto americano ou negociar vantagens econômicas com o vazio.
Mas passou a ser muito interessante rumar ao Atlântico Sul. Em um momento histórico em que foi reativada a Quarta Frota, divisão da Marinha americana destinada a monitorar tal região, há pelo menos sete pontos de atenção no subcontinente sul-americano. O primeiro é a já secular questão sobre a manutenção da soberania e a gestão sustentável da Amazônia. Em segundo lugar, há mais de 30 bilhões de barris de petróleo e gás natural a trezentos quilômetros, mar adentro, do maior eixo urbano da América Latina. Por sua vez, o Aqüífero Guarani, a maior reserva conhecida de água potável do mundo, jaz abaixo de uma região que vai do interior de São Paulo até Assunção e Buenos Aires. A defesa do etanol da cana-de-açúcar enquanto combustível, a corrida armamentista bolivariana e a defesa do quinhão sul-americano no continente antártico cerram a lista dos grandes desafios colocados a esta porção do globo.
O Brasil é o maior país latino do mundo, tem 47% do território e mais de 50% da população e da economia sul-americana. Se os latinos voltarão a ter um papel preponderante e efetivo no mundo, tal função passa primordialmente pelas terras tupiniquins. E o Brasil, como líder regional que pretende ser, poderá dizer não ao mundo a tempo?
Luiz Antonio Ugeda Sanches é advogado e geógrafo, diretor executivo do Instituto Geodireito.
las@geodireito.com.br