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Mensagem
por Marino » Seg Dez 10, 2007 6:51 pm
Alocução comemorativa na Sessão Solene do Bicentenário de nascimento do Almirante Tamandaré, proferida pelo Vice-Almirante
Fernando Manoel Fontes Diegues, no Clube Naval, em 9 de agosto
de 2007.
Quero, antes de mais nada, agradecer ao Exmo. Sr. Almirante-de-Esquadra José Júlio Pedrosa, Presidente do Clube Naval, o honroso convite, que com muito gosto aceitei,para proferir a alocução comemorativa dos duzentos anos de nascimento do Patrono da Marinha, Almirante Joaquim Marques Lisboa, Marquês de Tamandaré.
O evento dá ensejo a relembrar-se a vida desse grande marinheiro, um dos cidadãos mais ilustres de seu tempo e da própria história do Brasil. É bem verdade que, para nós, Tamandaré não é um personagem estranho. Desde cedo nos acostumamos a contemplar sua imagem estampada nos livros escolares, em uniforme de gala, o peito coberto de condecorações. Mais tarde, ao ingressar na Marinha, nos familiarizamos com passagens da carreira, com seu perfil de chefe consciente e desprendido. Hoje, o bicentenário de seu nascimento nos proporciona a oportunidade de explorar mais uma vez, contando, agora, com a maturidade e a experiência trazidas pelo tempo, o patrimônio moral e profissional que ele nos deixou.
Tamandaré nasceu na então Vila do Rio Grande, em 13 de dezembro de 1807, e faleceu no Rio de Janeiro, aos oitenta e nove anos de idade, em 20 de março de 1897. Viveu, servindo ao país na Marinha,
um longo período de nossa história. Quase todo o século XIX. Um período que viu o nascimento do Estado brasileiro e o despertar do Brasil como nação; sacudido por movimentos políticos internos que ameaçaram a unidade nacional; agitado por conflitos externos que levaram nossas forças navais às águas do rio da Prata; marcado, enfim, por circunstâncias e acontecimentos que, de uma forma ou de outra, influenciaram, ou mesmo transformaram, a vida do país.
Não creio que se possa examiná-lo satisfatoriamente sem lembrar a ação de Tamandaré; ou falar de Tamandaré sem ter como pano de fundo alguns dos episódios mais relevantes desse período.
A começar pela Independência. A separação de Portugal dava ao Brasil a condição de construir livremente o seu futuro. Uma das medidas necessárias à sua consolidação seria a criação de uma Marinha à altura – como dizia José Bonifácio – da “dignidade e grandeza deste Império”. Ela foi sendo organizada. Entre as providências tomadas
para guarnecer seus navios foi promulgado um decreto em que D. Pedro apelava para o voluntariado.
O apelo retiniu no espírito brioso do jovem Joaquim Marques Lisboa. Após convencer o pai, que pretendia encaminhá-lo à vida comercial, a requerer seu ingresso na Marinha, foi nomeado, em 4 de março de 1823, com apenas quinze anos de idade, “para embarcar” – como rezava o documento de sua nomeação – “na qualidade de Voluntário da Armada, recebendo somente a ração, a bordo da Fragata Niterói”. A carreira do futuro Patrono da Marinha começava no mesmo tempo em que se iniciava a trajetória do Brasil como um país independente.
Dois meses depois, Marques Lisboa teria seu batismo de fogo em águas da província da Bahia, no combate naval de 4 de Maio.
Mais tarde, com a retirada das tropas portuguesas, participa, a bordo da Niterói, da perseguição e apresamento de navios inimigos até a embocadura do Tejo, no decorrer de cinco meses de cruzeiro.
Terminada a guerra, Marques Lisboa foi matriculado na Academia Imperial da Marinha. Nela permaneceu, no entanto, por apenas cerca de cinco meses. Atendendo a um pedido do Almirante Cochrane, o imperador designou-o para servir na nau Pedro I.
A nau suspenderia para o Recife integrando uma divisão com a missão de bloquear o porto da cidade, onde fora proclamada a Confederação do Equador. A campanha se estendeu às províncias do Ceará, Maranhão e Grão-Pará. A Pedro I retornou à Corte após um ano e quatro meses de comissão.
É muito razoável imaginar que essas campanhas – a da Independência e a da Confederação do Equador – tenham sido para o Voluntário Marques Lisboa um verdadeiro ritual de iniciação, a confirmação definitiva de uma inabalável vocação para a vida do mar.
Uma vocação dirigida – não creio que se possa ter muita dúvida sobre isso – para o modelo de oficial de Marinha que ele podia contemplar todos os dias no tombadilho de seu navio, a nau Pedro I, representado pela figura legendária de Cochrane. O ainda adolescente não poderia deixar de encantar-se, de render-se à influência do prestígio e do renome de alguém com a história de lutas e serviços, embalada em uma aura de mito, do primeiro Almirante do Brasil.
Mas, também, por outro lado, a impressão deixada por Marques Lisboa em seus chefes não seria irrelevante ou superficial. Muito ao contrário, eles reconheceriam naquele voluntário da Armada as aptidões e o talento dos grandes marinheiros. Taylor, seu comandante na Fragata Niterói, diria, em despacho ao ministro da Marinha,
que Marques Lisboa prometia “para o futuro fazer honra à Marinha deste Império”. Cochrane, com larga experiência de vida e das lides navais, poderia garantir ao imperador que esse “quase menino é uma
das mais promissoras esperanças da Marinha Brasileira”.
O então Tenente Marques Lisboa não ficaria muito tempo no Rio de Janeiro após a campanha contra a Confederação do Equador.
Um novo conflito se delineava no sul do continente. Em outubro de 1825, o Congresso das Províncias Unidas do Rio da Prata – como se chamava, na época, a Argentina – decretava a incorporação da Cisplatina, que na ocasião fazia parte do Brasil. O ato equivalia a uma declaração de guerra, e o governo imperial responderia a essa provocação ordenando o bloqueio do porto de Buenos Aires. Um mês depois do regresso à Corte, Marques Lisboa se apresentava em Montevidéu para servir na Barca-canhoneira Leal Paulistana.
Os combates e peripécias da Guerra da Cisplatina foram para o jovem tenente experiências que lhe permitiram pôr à prova o espírito de iniciativa e a determinação próprios de seu caráter; lições resultantes do enfrentamento de imprevistos e perigos que concorreram para aprimorar sua formação, para a consolidação de um perfil de marinheiro e combatente, que não deixou de cultivar pelo resto da vida.
Ele participa, na Leal Paulistana, da batalha naval de Corales; e, mais tarde, como oficial da Niterói, da batalha naval de Lara-Quilmes. Por suas qualidades de inteligência, bravura e sangue frio, conforme então destacadas por seu comandante, o Capitãode-Fragata James Norton, foi-lhe entregue, ainda com dezoito anos de idade, no dia seguinte ao da vitória de Lara-Quilmes, o comando do Brigue-escuna Constança.
Participa das duas expedições à Patagônia contra as bases dos corsários que saqueavam o litoral e navios brasileiros. Na primeira expedição, graças a uma arriscada manobra com o Constança, recolhe a grande maioria dos tripulantes da Corveta Duquesa de Goiás, encalhada e começando a soçobrar. Prisioneiro com outros brasileiros em um brigue inimigo, liberta-os num golpe de audácia, e assume o controle do navio. Na segunda expedição, passa pela experiência da perda do navio em que servia, a Corveta Maceió, levada, pela traição do prático contratado em Montevidéu, a chocar-se com um banco de areia. Anima e orienta os tripulantes da corveta. Salva-se nadando com outros marinheiros para o Brigue Caboclo.
Em Montevidéu, novos desafios o aguardavam. É nomeado comandante da Escuna Bela Maria. Enfrenta o Brigue Ocho de Febrero, comandado pelo célebre Tomás Espora. O combate termina com a captura do Ocho de Febrero. Na Escuna Rio da Prata, que passara a comandar após a Bela Maria ser recolhida para reparos, persegue e aprisiona a galera armada em guerra Gobernador Dorrego, que tentava romper o bloqueio.
Ainda permaneceria, após a assinatura da Convenção Preliminar de Paz entre o Brasil e as Províncias Unidas, por cerca de dois anos em serviço no Prata. Seriam ao todo cinco anos de lutas e privações, durante os quais desenvolveu o discernimento, o equilíbrio e a confiança peculiares aos grandes chefes navais.
Regressa ao Rio de Janeiro em maio de 1831, ao iniciar-se, com a abdicação de D. Pedro I em favor de seu filho, uma fase de turbulências, de levantes e insurreições, que punham em xeque a unidade política e territorial do país. A natureza das lutas em que agora se envolveria já não era a mesma das guerras da Independência ou da Cisplatina. Já não teriam como alvo um inimigo externo, mas a pacificação e a recondução das províncias rebeldes à comunidade política nacional.
Ainda no comando da Escuna Rio da Prata, Marques Lisboa participa das forças que sufocam as revoltas no Recife, em setembro de 1831 – a Setembrizada – e em abril do ano seguinte – a Abrilada.
Três anos depois, com a irrupção da Cabanagem no Pará, participa, com o Brigue Cacique, do bloqueio do porto de Belém. No entanto, enfraquecido pelas febres do beribéri contraído na região, é obrigado a deixar o comando do navio e a seguir para o Rio de Janeiro no Palhabote Brasília.
O destino lhe reservava novas surpresas. Ao fazer escala na Bahia, o Brasília é retido pelo movimento que eclodira em Salvador proclamando a independência da província. Mesmo doente, Marques Lisboa se apodera de uma canhoneira sob o controle dos revoltosos, reintegrando-a às forças legalistas. Com o agravamento da doença, parte para o Rio de Janeiro, regressando dois meses depois, já curado, a tempo de tomar parte na luta final que leva à rendição dos chefes da Sabinada.
Em fins de 1838, uma nova revolta, a Balaiada, eclode no Maranhão. Designado comandante da força naval em operações contra os balaios, o Capitão-Tenente Marques Lisboa segue para a província, onde organiza a defesa de São Luís, atua com seus navios no bloqueio dos portos e estuários, na vigilância da baía de São Marcos, no apoio às operações em terra. Afirma-se como o braço direito político e militar do Coronel Luís Alves de Lima e Silva, futuro Duque de Caxias, nomeado presidente e comandante-geral das forças legalistas na província.
Já Capitão-de-Mar-e-Guerra graduado, deparar-se-ia com mais uma revolta, a Praieira, ao chegar no porto do Recife comandando a Fragata D. Afonso. Assume, como mais antigo presente, o comando da força naval ali estacionada. Nos últimos dias do conflito, quando os praieiros derrotados abandonavam a cidade, dá provas de senso de justiça e humanidade. Impede, pondo em risco a própria vida, que adversários locais dos praieiros, tomados por sentimentos de vingança, executassem sumariamente seus prisioneiros. Na opinião de um historiador, foi mais um “belo ato que praticou em tão cruenta e triste jornada de nossas contendas civis”.
O longo período de nossa história vivido por Tamandaré não foi, contudo, apenas de guerras e insurreições. Foi também de grandes mudanças na economia do país. O fim do ciclo de lutas internas coincide com o início de uma fase em que a economia brasileira passa por importantes transformações. São dessa época, dos anos 1850, as primeiras estradas de ferro, a instalação de telégrafos, a criação de uma linha de barcos a vapor, a formação de novas empresas comerciais e industriais, o impulso dado à construção naval com os estaleiros da Ponta da Areia.
A Marinha não ficaria à margem dessas transformações. Nessa época, ela deixa definitivamente a navegação a vela, atravessa uma etapa intermediária, ou mista, a vela e a vapor, e entra na era do pleno vapor. O Capitão-de-Mar-e-Guerra Marques Lisboa teria um papel a desempenhar nesse processo. Nomeado, em 1847, para o comando da Fragata D. Afonso, seria o primeiro oficial a comandar o primeiro navio de grande porte a vapor da esquadra brasileira.
Inaugurava, assim, uma nova etapa da evolução da Marinha, a dos vapores armados em guerra.
No comando da D. Afonso, Marques Lisboa contribuiu para a superação das restrições que muitos faziam a esses navios. Ao demonstrar suas qualidades manobreiras no salvamento de passageiros e tripulantes da galera americana Ocean Monarch, que se incendiava ao largo de Liverpool, e da nau portuguesa Vasco da Gama, prestes a naufragar sob violenta tempestade nas proximidades da baía de Guanabara – salvamentos que, na ocasião, tiveram repercussão internacional – dava argumentos convincentes ao governo imperial para a construção de novos vapores.
No final da década de 1850, daria mais uma contribuição à atualização dos meios flutuantes da Marinha. Já promovido a vice-almirante, selecionou os estaleiros, assinou os contratos e fiscalizou a construção de dez canhoneiras a vapor na Europa, que mais tarde seriam empregadas na Campanha do Uruguai e na Guerra do Paraguai.
Por essa época, já era tempo de que os serviços por ele até então prestados ao Brasil fossem devidamente reconhecidos. Assim, em março de 1860, foi agraciado com o título de Barão de Tamandaré, nome de um pequeno porto no litoral pernambucano, na defesa do qual morrera um de seus irmãos, Manuel Marques Lisboa, combatendo pela Confederação do Equador. O título foi escolhido pelo próprio imperador D. Pedro II, que, num gesto magnânimo, desejando dessa forma demonstrar sua estima pelo homenageado, desprezou o fato de que esse irmão, a quem Tamandaré devotava grande afeição, fora inimigo ferrenho da monarquia.
Os últimos anos de Tamandaré nos conveses dos navios da Marinha teriam novamente como cenário a região do rio da Prata, palco, desde o período colonial, de disputas e controvérsias, reavivadas, em anos mais recentes, pelo próprio processo de formação dos Estados da região, há pouco tempo independentes, politicamente instáveis, irrequietos, quase sempre envolvidos em litígios com seus vizinhos. Era esse o caso do Uruguai, mergulhado nas lutas entre o partido blanco, apoiado pelo Paraguai, e o partido colorado, simpático ao Brasil e à Argentina.
Em abril de 1864, estando o partido blanco no poder, as freqüentes incursões no Rio Grande do Sul, os roubos de gado e ataques às propriedades de brasileiros estabelecidos no Uruguai levaram o governo imperial a enviar a Montevidéu o conselheiro José Antonio Saraiva, com a missão de exigir a punição dos responsáveis e a indenização
dos prejuízos causados aos brasileiros. De acordo com as instruções recebidas por Saraiva, seriam exercidas represálias caso essas exigências não fossem satisfeitas. O governo imperial nomeia, ao mesmo tempo, o Vice-Almirante Joaquim Marques Lisboa comandante-em-chefe das forças navais brasileiras no rio da Prata.
As negociações entre o diplomata brasileiro e as autoridades uruguaias não chegam a um desfecho positivo. Fracassam inteiramente.
Saraiva se retira para Buenos Aires, deixando o Vice-Almirante responsável pelos interesses brasileiros no país. A ocorrência de novos atos de violência protagonizados por elementos do partido blanco levam Tamandaré a declarar os portos de Salto e Paissandu sob bloqueio.
Sitiada por terra pelas tropas uruguaias do chefe do partido colorado, general Venâncio Flores, e por um grupo de desembarque das canhoneiras, Salto capitula. O assédio das forças navais, das tropas do general Mena Barreto e da brigada uruguaia de Venâncio Flores termina com a rendição e a ocupação de Paissandu.
Na seqüência dos acontecimentos, Tamandaré declara o porto de Montevidéu sob bloqueio, enquanto as forças dos generais Mena Barreto e Venâncio Flores avançam por terra sobre a cidade. O Convênio de Paz de 20 de fevereiro resulta na ocupação de Montevidéu. O general Venâncio Flores assume o governo provisório do Uruguai.
Tamandaré, contudo, desaprova os termos do convênio assinado, do lado brasileiro, pelo conselheiro José Maria da Silva Paranhos, substituto de Saraiva. Ao expor em ofício ao ministro da Marinha seu desagrado, mostra a decisão e a firmeza – poder-se-ia dizer, a intransigência – com que defende não qualquer tipo de interesse material, mas a própria imagem de respeitabilidade do Brasil.
Em sua opinião, o convênio não atendia às condições que o Brasil se achava no direito de exigir. Diz, no ofício ao ministro da Marinha, que a paz deveria assentar-se principalmente na reparação “do último insulto feito à nossa bandeira”, arrastada e enxovalhada, em 9 de fevereiro, pelas ruas de Montevidéu – ou seja, continua – “na prisão e punição das pessoas que compunham o governo e de outras altamente colocadas, que planejaram e puseram em execução essa infâmia”.
Inconformado, solicita ao ministro que apresente ao imperador o pedido de sua exoneração. E acrescenta: “se, para obter esta exoneração, for necessário demitir-me do posto honroso e de tudo quanto tenho adquirido em minha longa vida militar, não duvido fazer este sacrifício, contanto que salve a dignidade de meu país e a minha própria”.
Apesar das críticas à ação de Tamandaré encaminhadas por Paranhos ao governo imperial, o conselheiro é dispensado da missão que lhe fora confiada no rio da Prata menos de um mês depois da assinatura do convênio. O Vice-Almirante é confirmado no cargo de comandante-em-chefe das Forças Brasileiras – forças que viriam a tomar parte, agora, em uma longa e cruenta campanha contra o ditador do Paraguai.
De fato, um novo conflito se armava no panorama turbulento da bacia platina. O presidente Solano López proibira a navegação dos navios de bandeira brasileira nas águas fluviais do Paraguai. Mandara aprisionar o navio mercante brasileiro Marquês de Olinda. Em dezembro de 1864, declara guerra ao Brasil e, poucos dias depois, desencadeia o ataque ao forte da Nova Coimbra, no sul mato-grossense.
A invasão da província argentina de Corrientes por Solano López leva à assinatura do Tratado da Tríplice Aliança pelo Brasil, Argentina e Uruguai. Escrupuloso na defesa dos direitos e da soberania do Brasil, Tamandaré também não veria com bons olhos esse tratado.
Ele concedia ao presidente Mitre, da Argentina, o comando supremo das forças aliadas. Deixava o Brasil – dono de um volume de recursos muito maior, e o único dos três países a possuir uma esquadra capaz de enfrentar a do agressor – em situação de dependência e, de certa forma, subalterna.
Graças à sua intervenção, a esquadra brasileira foi excluída dessa subordinação; mas as discordâncias entre os generais brasileiros e o presidente Mitre viriam, mais tarde, a justificar seu descontentamento. Como aconteceu no sítio de Uruguaiana.
Nessa ocasião, o Vice-Almirante e o general futuro Conde de Porto Alegre resistem – e nessa resistência são bem-sucedidos – à entrega do comando de nossas forças, dentro do território brasileiro, a alguém que, embora fosse amigo, tinha a seu cargo os interesses de outro país. Como diria Tamandaré em ofício ao ministro da Guerra: “Seria um absurdo, uma indignidade monstruosa, sujeitarmos nossas forças de uma maneira tão completa a um general estrangeiro, que não pode nem deve dispor do sangue brasileiro e de nossos recursos a seu arbítrio”.
Os fatos relativos à ação das forças navais sob o comando de Tamandaré são bem conhecidos de todos nós. Ele concebe o plano de campanha. Declara o bloqueio dos portos inimigos. Após a vitória em Riachuelo, concentra-se no apoio à esquadra desgastada pela batalha.
Insiste com o governo imperial na necessidade de contar com navios encouraçados – que, aos poucos, vão sendo incorporados à esquadra – para enfrentar as poderosas fortalezas às margens do rio Paraguai.
Em Uruguaiana, dá-se a rendição dos paraguaios e a retomada da cidade, que os chefes aliados queriam bombardear, sendo, no entanto, frustrados em seu intento pela oposição de Tamandaré e Porto Alegre,
desejosos de evitar uma maior perda de vidas, de restringir os danos morais e materiais sofridos pela população civil da cidade.
Uma vez libertada Uruguaiana, Tamandaré segue com a esquadra para a confluência dos rios Paraná e Paraguai, área escolhida para a penetração em território paraguaio. O bombardeio naval do forte de Itapiru e das trincheiras inimigas em Passo da Pátria, seguido do desembarque das tropas do general Osório dão início à invasão.
Poucos meses depois, os navios da esquadra sobem o rio Paraguai e atacam o forte de Curuzu. O exército de Porto Alegre desembarca e, após renhidos combates, apodera-se do forte.
O próximo passo em direção a Assunção seria a tomada de Curupaiti. Os navios bombardeiam as trincheiras paraguaias, mas o forte responde com intenso poder de fogo, atingindo os navios brasileiros. O Vice-Almirante vai de navio em navio, em frágil embarcação miúda, em plena zona de fogo, incentivar e orientar seus comandantes. No entanto, diante da resistência do forte e das baixas nas fileiras aliadas, o presidente argentino, no comando das forças terrestres, ordena a suspensão do ataque a Curupaiti.
Curupaiti representou para Tamandaré o término de sua atuação, por dois anos e quatro meses, à frente de nossas forças navais nas campanhas do Uruguai e Paraguai. Debilitado pelo esforço exigido pela guerra, doente, descontente com a conduta de Mitre, já escrevera ao ministro da Marinha, antes mesmo do ataque a Curupaiti, solicitando licença para ir ao Rio de Janeiro tratar da própria saúde.
Algum tempo depois, a licença é concedida. Em dezembro de 1866 , passa o comando ao futuro Visconde de Inhaúma. Chega ao Rio de Janeiro em fevereiro do ano seguinte. Toma conhecimento,
então, de que fora promovido a Almirante.
O futuro Marquês – ele seria elevado a esse grau nobiliárquico em maio de 1888 – já não viria a exercer cargos efetivos na Marinha.
Não deixaria, porém, de acompanhar, mesmo de longe, a Guerra do Paraguai, em cuja fase inicial tivera um papel proeminente; e de interessar-se pelas coisas da Marinha, de cujos membros tornara-se alvo de verdadeira veneração. Foi nomeado ajudante de campo do imperador e, mais tarde, ministro do Supremo Tribunal Militar de Justiça, atual Superior Tribunal Militar, onde serviu por longos anos, sendo exonerado do cargo após insistentes pedidos formulados ao ministro da Marinha, em 1891, aos 83 anos de idade.
Já afastado do serviço ativo e de funções na vida pública, também não se mostraria indiferente a acontecimentos que, nos últimos anos de sua vida, mudavam a face política e social do Brasil. Não se absteria de aprová-los ou condená-los. A presença deles em seu espírito se refletiria, por exemplo, nas instruções que, sentindo com certeza aproximar-se o fim de seus dias, redigiu para o seu sepultamento.
Um desses acontecimentos foi a Abolição da Escravatura. Sua visão do fato é transparente nas instruções. Assim, ele exigia que seus restos mortais fossem conduzidos para a sepultura “por meus irmãos em Cristo que hajam obtido o foro de cidadãos pela Lei de 13 de Maio”. Isso prescrevia como “prova de consideração a essa classe de cidadãos em reparação à falta de atenção que com eles se teve, pelo que sofreram durante o estado de escravidão”, e como “reverente homenagem à Grande Isabel Redentora, benemérita da Pátria e da Humanidade, que se imortalizou libertando-os”.
Outro acontecimento referido nas instruções foi a morte de D. Pedro II no exílio, dois anos depois da Proclamação da República.
Ao senso de justiça e solidariedade humana, que o levava a aplaudir a Abolição, alia sentimentos de respeito e amizade pelo imperador deposto. Por isso, não desejava que em sua morte fossem-lhe prestadas honras militares. Ora – argumentava –, se a nação não havia “prestado honras fúnebres de espécie alguma por ocasião do falecimento do imperador (...) a nenhum homem de seu tempo se poderá prestar honras de tal natureza sem que se repute ser isso um sarcasmo cuspido sobre os restos mortais de tal indivíduo”. O estilo direto e franco, sem rodeios, modula o protesto que a lealdade ao soberano e o apreço pelo amigo não lhe permitiam esquecer ou omitir.
E vai mais longe na expressão de seus sentimentos, ao proibir a deposição de flores, coroas ou enfeites sobre o caixão. Seu patriotismo admitia, no entanto, uma exceção: “só a Comenda do Cruzeiro que ornava o peito do Sr. D. Pedro II em Uruguaiana, quando compareceu, como primeiro dos Voluntários da Pátria, para libertar aquela possessão do jugo dos paraguaios”. Manifestam-se, nessa exceção, a alma do guerreiro, o brio e a altivez que tantas vezes demonstrara em vida.
A simplicidade e o pouco caso por honrarias se confirmam no último item das instruções: “Como homenagem à Marinha, minha dileta carreira, em que tive a fortuna de servir à minha Pátria e prestar alguns serviços à Humanidade, peço que sobre a pedra que cobrir minha sepultura se escreva: Aqui Jaz o Velho Marinheiro”.
Desse documento, escrito do próprio punho, projetam-se alguns traços do caráter e da visão do Almirante sobre o Brasil de sua época.
Ele reflete pontos do pensamento de um cidadão que viveu de perto a história do país. Participou de quase todas as lutas da época,internas e externas. Esteve presente nos momentos mais cruciais do primeiro século da existência do Brasil independente. Alguém que, por seus atributos pessoais, foi capaz de conquistar, ainda em vida, de uma forma que poucos brasileiros conquistaram, o respeito e a admiração de seus contemporâneos. Os jornais do dia seguinte ao de sua morte não deixariam de expressar tais sentimentos.
Tamandaré foi um “exemplo vivo do mais acrisolado amor da Pátria e a prova mais evidente do que podem o brio e a bravura” – dizia a Gazeta de Notícias.
A Notícia afirmava: “O nome deste velho servidor da nossa Pátria constitui um patrimônio dos mais honrosos para ela e um padrão de glória para a nossa Marinha Nacional”.
O Jornal do Brasil comentava: Tamandaré “foi um daqueles que tiveram a justa satisfação de se verem consagrados nas bênçãos da Pátria e que se sentem imortais em vida”.
Diz Gustavo Barroso que o povo “de todos os matizes, posições e idades (...) em profundo e comovido silêncio (...) olhos pregados no chão”, encheu as ruas por onde passou o cortejo fúnebre do Velho Marinheiro rumo ao cemitério do Caju.
Os elogios publicados nos jornais não eram gratuitos, nem uma simples formalidade.
Justificavam-se pelos serviços que Tamandaré prestou ao Brasil. É bem verdade que ele não foi o vencedor de uma grande batalha decisiva. Não foi o criador de uma concepção estratégica naval singular ou inovadora. Não se imortalizou por uma façanha única e grandiosa, que mudasse as tendências mais profundas da história. Mas destacou-se, foi capaz de conquistar as “bênçãos da Pátria”, pela força de seu caráter, pela coerência e a firmeza de atitudes, que, sobrepostas às qualidades de notável marinheiro e chefe competente, pontilharam e fizeram de sua vida um contínuo harmonioso de atos de nobreza e destemor.
Poder-se-ia alegar, certamente com malícia ou segundas intenções, a exemplo de alguns dos desafetos que a inveja ou o despeito lhe destinaram na vida, que suas atitudes derivavam de impulsos do momento, alheios a princípios e critérios – como se a coragem pudesse confundir-se com a imprudência, ou o desprendimento com insensatez. Nada mais longe da verdade. Um rol de valores morais, dando lustre e consistência a uma visão do mundo, parece ter-lhe servido de guia e inspiração. A procedência dessa suspeita fica evidente quando nos debruçamos sobre os ensinamentos que transmitiu a um aspirante da Escola Naval, registrados nas anotações deixadas pelo historiador
Comandante Oliveira Bello. Vale a pena despender alguns minutos a relembrá-las, pois elas nos revelam as motivações mais profundas de seu comportamento, as bases de seu modo de pensar e interpretar a vida.
Dizem as anotações que, já idoso, em uma de suas costumeiras visitas à Escola Naval, um dos alunos lhe pediu que falasse sobre a sua concepção da honra. A explicação então formulada é muito simples e objetiva. Para Tamandaré, a honra é uma espécie de energia vital, peculiar a cada indivíduo. Como se lê, logo no início da fala: “é a força que nos impele a prestigiar nossa personalidade. É o sentimento avançado de nosso patrimônio moral, um misto de brio e de valor”.
Em seguida ele enuncia os dois requisitos que considera indispensáveis à sustentação desse “sentimento avançado”. O primeiro se refere ao entendimento e conseqüente adesão do indivíduo a certos valores morais. A honra, ensina Tamandaré, “exige a posse da perfeita compreensão do que é justo, nobre e respeitável, para elevação da nossa dignidade”. Para ele, portanto, a dignidade do indivíduo não se dissocia nem prescinde do comportamento pautado na observância desses valores; não pode estar desvinculada da opção por tudo aquilo que é “justo, nobre e respeitável”.
Já o foco do segundo requisito é a disposição ou atitude que se espera de quem cultiva a honra. Ela exige, diz Tamandaré, “a bravura para desafrontar perigos de toda ordem, na defesa da verdade, do direito e da justiça”. A honra, portanto, contempla objetivos – a verdade, o direito e a justiça – para a prevalência dos quais a bravura é imprescindível. Ela perde o seu valor, desvanece, não subsiste sem a bravura.
Ao expor ao aluno da Escola Naval sua visão da honra, Tamandaré nos revela o sentido que atribui à vida. Creio não estar exagerando, ao afirmar que nesse sentido da vida se encerra o fulcro da vontade e da animação de toda uma existência dedicada ao serviço do Brasil. E, se examinarmos com um pouco mais de atenção suas palavras, veremos que nele se articulam os elementos essenciais de um projeto de vida.
Objetivos do projeto: a verdade, o direito e a justiça. Meio para alcançar os objetivos: a honra, que, de certa maneira, se confunde com a dignidade do indivíduo. Natureza desse meio: uma força, um sentimento avançado. Requisitos para a sua operação: a perfeita compreensão dos valores que norteiam a sociedade – o que é justo, nobre e respeitável – e a bravura para enfrentar perigos no caminho dos objetivos.
Mas não termina aí a lição ministrada pelo Almirante ao aspirante. Ele ainda lhe diz alguma coisa sobre o grau de importância que deve ser conferido à honra. E, nesse ponto, o desapego a bens materiais e o sentido de missão que impregnaram sua vida aparecem em toda a plenitude. “Esse sentimento (a honra) – está acima da vida e de tudo quanto existe no mundo, porque a vida se acaba na sepultura, os bens são transitórios, enquanto que a honra a tudo sobrevive” – diz o Almirante.
Nada mais importante que a honra. Sem ela, ele se sentiria desarmado, desprovido da força, das reservas morais de que necessita para enfrentar os perigos no caminho da verdade, do direito e da justiça. E, se a expectativa de atingi-los se dissipa, tudo perde o seu valor. O caos se instala. Sem a honra, não pode atingir os fins, e sem atingir os fins
tem de reconhecer o fracasso da missão a que se propôs na vida.
As palavras de Tamandaré nos levam a uma breve reflexão. Afinal de contas, nelas não se combinam os traços mais salientes do perfil do herói? O herói não se distingue dos homens comuns por um esforço corajoso e altruísta de superação de tudo aquilo que é falso, opressivo, injusto? Não simboliza a capacidade latente em todo ser humano de orientar o seu destino, mesmo que às custas, como no mito de Prometeu, do sacrifício da própria vida, na busca da sabedoria ou do poder para servir aos outros – ou ainda, como no caso do Almirante, da honra, para investir na construção de uma pátria que deseja alicerçada na verdade, no direito e na justiça?
Não creio que se possa contestar o fato de que, em Tamandaré – não só por suas palavras, que poderiam não ser coerentes com a ação, mas, sobretudo, pelas atitudes que assumiu na vida – encarnam-
se alguns dos atributos mais dignificantes do herói. Alguém que não viveu apenas para si, mas empenhou-se em perseguir o bem de todos, apesar dos danos e incompreensões a que pudesse estar sujeito trilhando esse caminho.
E não é difícil concluir de sua vida que, para ele, o bem de todos tem como premissa a grandeza da nação. Não qualquer tipo de grandeza, artificiosa e vã, arrogante e impositiva, mas a que tem raízes na independência, na soberania, na unidade política e territorial do país, na conquista do respeito e da amizade das demais nações.
Dentro dessa moldura política, da qual afloram a consciência e o sentimento de nação, é que existiriam condições para o progresso e a felicidade do Brasil.
E é no serviço da Marinha, no qual se engaja de forma consciente e ao mesmo tempo apaixonada – fosse a bordo da Fragata Niterói, nas lutas internas ou nas guerras do Prata e da Tríplice Aliança – que encontra o campo propício para dedicar-se à promoção dessa grandeza.
Uma dedicação que, talvez, ninguém melhor do que o Almirante Jaceguai interpretaria, ao observar, em suas Reminiscências da Guerra do Paraguai, que a todos os predicados que elevavam Tamandaré “juntava-se o de ser feliz”. Uma felicidade – podemos com toda a certeza imaginar – nascida de uma vocação plenamente satisfeita, de
um caráter em perfeita sintonia com a vida na Marinha, por maiores que fossem – ou talvez até por isso mesmo – os contratempos e riscosque tivesse de enfrentar. No mar e na Marinha, ele estava de bem coma vida. E Jaceguai remata o retrato de seu antigo chefe frisando que o fato de “ser feliz” não seria predicado a desprezar-se “na escolha dos homens que devem dirigir empresas arriscadas”.
Poder-se-ia julgar, à primeira vista, que Tamandaré nada tenha a nos dizer sobre o tempo presente, sobre o tempo que vivemos.
Muito diferente do atual foi o período de nossa história que ele viveu.
Um período que assistiu à consolidação do Estado brasileiro e aos primeiros passos da formação da nacionalidade. Duzentos anos depois de seu nascimento, são outras as questões que nos afligem, as aspirações que acalentamos, o panorama político que baliza a presença do Brasil no cenário mundial.
Mas, na verdade, se ele tem alguma coisa a nos dizer, pouco importa o tempo que nos separa dos dias de sua vida. Tamandaré é parte da história, e ela não se reduz a uma simples narrativa, estéril e descomprometida, de fatos enterrados no passado, destinados a jamais se repetirem. A história é também uma explicação. Uma explicação da vida e dos atos humanos, das circunstâncias e motivos que os levam a consumar-se. Como, aliás, já observara um dos maiores historiadores do século XX, o francês Fernand Braudel: “O verdadeiro objetivo da história não é, talvez, o passado – esse meio – mas o conhecimento dos homens”.
Pois bem, se a história nos ajuda a entender os fundamentos e o sentido da conduta dos homens, podemos afirmar que o Velho Marinheiro tem muita coisa a nos dizer e a ensinar sobre o tempo presente. Um tempo de incertezas e apreensões, de acentuadas transformações na política e na economia, na cultura, no campo da tecnologia. Um tempo em que nos dispomos a construir, apesar dos desenganos e, até mesmo, do desalento que às vezes nos assalta, a nação livre, justa e solidária de que nos fala a Constituição.
Por isso mesmo, Tamandaré nos surge do passado como exemplo e fonte de inspiração. Um passado no qual nos deparamos com momentos de sua vida em que as atitudes sobranceiras e a altivez de seu caráter se destacam. Em outros, a coragem física e moral, a determinação e a força de vontade pontificam. Continuando a exploração, a generosidade, a consideração pelos mais fracos, a convicção com que defende princípios e valores, a confiança nos destinos do Brasil, ficam mais do que patentes.
Tamandaré nos legou um patrimônio moral de dignidade profissional, de virtudes militar e marinheira, de amor ao país em que nasceu. Um patrimônio acumulado no decorrer dos muitos episódios que marcaram, no século XIX, a presença da Marinha em nossa história. Um patrimônio que nos instiga a renovar e afirmar nossa fé no futuro do Brasil como nação. Uma nação não se constrói no vazio, não amadurece sem ter à vista os exemplos de nobreza e integridade dos grandes vultos de seu passado. Não seria, enfim, pela falta de heróis, como aquele cujo bicentenário de nascimento ora celebramos, que essa fé poderia extinguir-se.