Lula reaparelha Forças Armadas de olho na transferência de tecnologia
Por causa da Venezuela, Aeronáutica inicia o processo com a compra de 36 caças, no valor total de US$ 2,2 bi
Tânia Monteiro
O comandante da Aeronáutica, brigadeiro Juniti Saito, foi autorizado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva a tirar da gaveta em janeiro, finalmente, o projeto FX-2 e comprar 36 caças para a Força Aérea Brasileira (FAB), ao custo de US$ 2,2 bilhões - o projeto original, o FX-1, planejado no governo Fernando Henrique Cardoso, previa uma compra mais modesta, de US$ 700 milhões. Dois fatores, conjugados, contribuíram para a decisão política do Planalto: a precariedade a que chegou a FAB, com 37% da frota de 719 aviões sem condições de voar, e o presidente da vizinha Venezuela, Hugo Chávez, que, nas palavras dos militares, está se “armando até os dentes”.
Os planos de reaparelhamento das Forças Armadas são extensivos à Marinha e ao Exército, mas com uma orientação inédita: o governo abandonou a idéia de fazer uma licitação nos moldes tradicionais, como se a compra de um caça supersônico fosse um material de consumo comum, uma compra do melhor produto pelo menor preço no supermercado da tecnologia disponível mundo afora. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, consolidou entre os militares e no Planalto o conceito de que as “compras iniciais” devem ser feitas de quem oferecer o melhor pacote de transferência de tecnologia. O objetivo é transformar essas “compras iniciais” em embrião de uma política industrial para o setor.
“Queremos um plano estratégico de defesa nacional que precisa estar vinculado ao desenvolvimento nacional, ligando a questão a toda a política industrial e à criação de um parque industrial de defesa”, disse Jobim, em audiência pública na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara, na quarta-feira. Não se trata mais, segundo ele, de uma “necessidade só das tropas”. E explicou: “É necessário ter uma perspectiva de criação de tecnologia nacional independente.”
QUINTA GERAÇÃO
No caso da Força Aérea, como o processo de avaliação tecnológica e decisão de compra é sempre e naturalmente muito demorado, a idéia é adquirir caças de quinta geração. Entre as novas opções postas sobre a mesa dos oficiais da Aeronáutica estão o Eurofighter Thypon (consórcio Grã-Bretanha, Alemanha, Itália e Espanha), o anglo-sueco Gripen, o russo Sukhoi 35 e o francês Rafale. Mesmo sem ter recebido oferta, até o F-35 da Lockheed, o supercaça da nova geração das Forças Armadas dos Estados Unidos, está no menu da FAB.
Embora muitos oficiais brasileiros não escondam uma preferência pelo Sukhoi 35, a lógica aponta que os franceses da Dassault, fabricantes dos antigos Mirage e dos modernos Rafale, também estão na disputa. Eles têm tradição na política de transferência de tecnologia.
No caso dos russos, que venderam 24 caças Sukhoi 30 à Venezuela de Chávez, uma geração anterior à pleiteada pelo Brasil, há dúvidas sobre a garantia de assegurar as peças de reposição para as aeronaves.
“A França sempre foi a melhor parceira. Sobre a Rússia, a gente sabe das dificuldades e não sabe o que vai acontecer em dez anos para podermos garantir nossas peças de reposição. Os EUA, tradicionalmente, não transferem tecnologia”, analisou o deputado José Genoino (PT-SP), um interlocutor para assuntos de defesa no Congresso. Ele considera da maior importância o País construir um parque industrial de defesa. “Devemos buscar o menor preço com maior transferência de tecnologia”, opinou.
A meta do governo é sustentar a política industrial de defesa com duas alavancas: por meio de compras governamentais e com vendas aos países latino-americanos. As compras governamentais passam pela garantia da execução do plano de reaparelhamento das Forças Armadas, que Jobim voltou a defender na Câmara, na quarta.
De acordo com Jobim, para 2008 os militares já poderão contar com um investimento inicial em reequipamento da ordem de R$ 1,8 bilhão em seus orçamentos. Ele disse que esse valor pode ser acrescido de mais R$ 1 bilhão, fruto de crédito suplementar. O ministro disse que vai percorrer indústrias do setor em São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul, por três dias. Informou ainda que o presidente Lula quer que ele inicie, em fevereiro, uma viagem por todos os países da América do Sul para trabalhar uma política de defesa regional.
VALORES E “RETÓRICA”
Pelos planos em reestudo nas três Forças, o reaparelhamento pode ter investimentos de R$ 15,71 bilhões. Seriam R$ 3,61 bilhões para a Marinha, em 10 anos - R$ 1 bilhão só para o programa nuclear, montante a ratear ao longo dos próximos 8 anos. Outros R$ 6,7 bilhões para o Exército, em até 14 anos, e mais R$ 5,4 bilhões para a Aeronáutica, em um período um pouco menor, de 6 anos, por causa do grau de demanda tecnológica da Força e da exigência imposta pelo sucateamento atual.
Os estudos que o ministro da Defesa citou na comissão da Câmara foram bem mais modestos (R$ 3,4 bilhões), porque ele se referiu apenas ao período do segundo mandato do presidente Lula, que termina em 2010. Jobim lembrou que o orçamento das Forças Armadas para o ano que vem já cresceu 50%, passando de R$ 6 bilhões (investimento e custeio) para R$ 9 bilhões. Haverá ainda uma suplementação de R$ 1 bilhão.
Jobim reivindica mudanças na Lei de Licitações
O ministro da Defesa, Nelson Jobim, iniciou uma cruzada entre os parlamentares em favor de mudanças legais na forma de fazer licitações para as compras das Forças Armadas. “Se queremos desenvolver uma indústria de defesa no Brasil, temos de ter uma política de compras públicas e, para isso, precisamos mudar a Lei de Licitações”, disse na quarta-feira, em audiência na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara.
“Do contrário, quando quisermos comprar uma coisa, seremos obrigados a importar o material, muitas vezes por causa do preço, ao invés de comprar da indústria brasileira”, argumentou. “É conveniente ao Brasil pagar menos por um instrumento de defesa importado ou é melhor para o Brasil pagar mais e ter um instrumento de defesa fabricado no País? Esta é a questão política a ser definida.”
Na audiência, ele defendeu a modernização dos equipamentos militares, dizendo que é uma necessidade nacional e é preciso vontade política para implementá-la. O ministro pediu diretamente aos deputados que mudem a Lei de Licitações (8.666/93). “Isso tem de ser uma decisão política que passa pelos senhores.”
Jobim lembrou que este ano já foram feitas algumas alterações no texto básico da lei. Mas considerou que o formato atual “ainda é limitador”. O ministro disse aos deputados que eles precisam discutir “a conveniência de importar helicópteros da Rússia ou construir helicópteros no Brasil , desenvolvendo empresas que já temos.”
Na semana passada, Jobim recebeu em seu gabinete o ex-governador do Acre Jorge Viana (PT), acompanhado de representantes da Helibrás. Eles apresentaram propostas de expansão dos investimentos, para aumentar e melhorar a produção de helicópteros no País.
Investimento teria de dobrar, diz Exército
País gasta US$ 680 mi com Forças Armadas, mas ideal seria US$ 2 bi
Na semana passada, na mesma audiência da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional em que depôs o ministro Nelson Jobim (Defesa), o comandante do Exército, general Enzo Martins Peri, apresentou dados comparando os gastos das Forças Armadas brasileiras e os dos países vizinhos, proporcionalmente ao Produto Interno Bruto (PIB) de cada um. Peri evitou focar a Venezuela como líder de uma corrida às armas, mas o gráfico exibido aos deputados era auto-explicativo.
O general mostrou que o Chile tem aplicado US$ 2,7 bilhões por ano em suas Forças Armadas, a Venezuela, US$ 6 bilhões por ano, a Colômbia, US$ 3,7 bilhões nos últimos quatro anos, além dos US$ 3,9 bilhões que os Estados Unidos repassarão ao país nos próximos sete anos. Já o Brasil, em 2007, vai gastar em torno de US$ 680 milhões. O mínimo desejado, disse, seria investir US$ 2 bilhões por ano.
O general disse que as Forças Armadas estão “aquém” das necessidades de defesa e é preciso investir para a “própria casa”. “A nossa prioridade é a Amazônia, contra quem quer que seja.” A palavra-chave, afirmou, é “dissuasão”.
Segundo ele, o Exército tem 70% dos blindados Leopardo indisponíveis, assim como 55% dos blindados M113B, 45% dos blindados Urutus, 43% dos blindados M60, 42% dos blindados Cascavel, 42 % das viaturas de até 1,5 tonelada e 35% das viaturas de 2,5 a 5 toneladas. No caso dos blindados, 78% dos 1.437 que o Exército possui têm mais de 34 anos; 58% das viaturas têm mais de 20 anos e a maior parte do material de artilharia de campanha é originária da Segunda Guerra Mundial.
“Nestas comparações”, justificou o comandante do Exército, “perdemos para todos os nossos principais vizinhos e a responsabilidade territorial do Brasil é equivalente à de todos os outros países sul-americanos juntos.” O armamento individual usado pelos soldados, o FAL (Fuzil Automático Leve) já tem 42 anos de uso. E o Exército “enfrenta séria restrição de munição, o que compromete o adestramento da tropa”, afirmou.
O Exército tem hoje cerca de 900 quartéis, apenas 71 deles nas fronteiras. Na opinião do general, não adianta aumentar o número de quartéis na fronteira porque, “antes, é preciso dar condições de operacionalidade aos já existentes”. Ele quer R$ 6,708 bilhões para investir nos próximos oito anos. “Há que se pensar em um aporte regular de recursos extra-orçamentários para investimento em material de emprego militar porque o Brasil precisa recompor o equilíbrio da balança dissuasória regional”, disse.
Planejamento militar de Chávez é de longo prazo
Além dos armamentos já comprados, expectativa é de garantir aviões, submarinos, navios e radares até 2010
O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, mantém um bem estruturado plano de modernização das Forças Armadas, projeto de longo prazo que ultrapassa as compras já formalizadas de 24 caças Sukhoi (Su-30), 53 helicópteros, 5 mil rifles de precisão Dragunov, um número não revelado de baterias antiaéreas do míssil Tor-M1 e 100 mil fuzis Kalashnikov, russos.
Até 2010, ele quer ter garantido, ao menos sob contrato, o fornecimento de outros 120 aviões de combate, 15 submarinos lançadores de mísseis, 138 navios, 25 radares tridimensionais e fábricas inteiras para produção de sistemas de defesa. Se possível, quer ainda alguma capacidade nuclear. É para gerar energia elétrica, garantiu Chávez numa apresentação em Moscou, há quatro meses.
Há dois prováveis parceiros bem cotados para essa empreitada - a Rússia, que responde pela maioria das encomendas dos novos equipamentos de defesa da Venezuela, e o Irã, de Mahmud Ahmadinejad, que ofereceu o serviço.
Em junho, depois de assinar acordos com o presidente Vladimir Putin nas áreas de petróleo, energia, alimentos, petroquímica, transporte ferroviário, pesca e construção pesada, Chávez, como é de seu costume, foi às compras: fechou negócio com cinco submarinos diesel-elétricos classe Kilo 636, de 4 mil toneladas de deslocamento e alcance na faixa de 14 mil quilômetros. O Kilo leva 18 torpedos de 533 milímetros, 24 minas e 8 mísseis táticos ou antiaéreos.
A operação foi mantida em sigilo até a semana passada, quando foi revelada por Sergei Landiguin, diretor da agência russa Rosoboronexport. Em uma outra fase, seria incorporada uma frota de seis novos modelos Amur, de 1,6 mil toneladas e dotados de tecnologia furtiva.
Todos esses dados constam, também, de um documento encaminhado na manhã do dia 30 de outubro pela Nova Organização pela Democracia Liberal na Venezuela (NDLV) aos governos do Brasil, da Colômbia, da Argentina, da Guiana e dos Estados Unidos, à Organização dos Estados Americanos (OEA) e à Organização das Nações Unidas (ONU).
O grupo faz oposição ao presidente Hugo Chávez e é formado por empresários, políticos e profissionais liberais. A representação local da NDLV será aberta em São Paulo até janeiro.
BOM GASTADOR
Para um ex-governador de Estado da Venezuela, militante do NDLV, o grande pacote militar de Chávez vai custar, a longo prazo, cerca de US$ 60 bilhões - metade de toda a riqueza que o país produz em um ano. Todavia, acredita o político, pode ser que em 10 ou 12 anos tenha valido a pena para o presidente: se tudo der certo, ele será então o líder da mais poderosa potência militar da América do Sul.
Essa condição hoje é do complexo militar do Brasil. Um estudo da inteligência do Ministério da Defesa, a que Estado teve acesso, alerta para a necessidade de investimentos na revitalização das três Forças “para evitar a superação e a perda do poder dissuasivo”. O texto do ministério cita especificamente Venezuela e Chile.
Diz que os dois países sabem exatamente o tamanho dos recursos que terão a longo prazo, enquanto os comandos brasileiros “não têm segurança dos prováveis valores do orçamento para 2008”. O ministro da Defesa, Nelson Jobim, acha que a argumentação está superada. “Nosso orçamento foi praticamente duplicado para 2008 - pode chegar a R$ 10 bilhões na fase de execução”, afirma.
Chávez conta com a valorização do petróleo para financiar o programa. Quando começou a negociar a aquisição de novos equipamentos, o barril era cotado a US$ 40. Nos últimos dez dias passou dos US$ 93 e pode chegar a US$ 100. A Venezuela é o terceiro maior produtor entre integrantes da Opep. Coloca no mercado 2,4 milhões de barris/dia, faturando US$ 223 milhões a cada 24 horas.
'Venezuela é adversário em rota de colisão com o Brasil'
Salvador Raza: diretor-geral do CeTRIS e *Eliezer Rizzo Oliveira: pesquisador da Unicamp
Hugo Chávez é uma preocupação para o Brasil?
Raza - Sim, o Brasil deve ficar preocupado com Chávez. A Venezuela vem acumulando densidade estratégica suficiente para contestar interesses vitais brasileiros e sustentar sua posição no tempo, seja por meios políticos, seja por meios militares. A Venezuela é um adversário em rota de colisão com o Brasil. É uma rota tortuosa, com os vários desvios criados pela diplomacia, mas as conveniências implícitas nas políticas declaratórias não deixam dúvidas - existe uma disputa latente. A invasão da Guiana é uma possibilidade forte nesse quadro, sustentada pela mesma lógica oferecida para a invasão das Falklands/Malvinas - um fato consumado de efeito diversionário de problemas internos. Ao Brasil restariam duas decisões ruins: não fazer nada e perder prestígio ou interferir militarmente e fracassar, pela incapacidade de transportar e sustentar forças para ações substantivas.
Eliezer - Chávez é uma preocupação política e militar. É inaceitável sua interferência em movimentos sociais brasileiros. Aliás, Chávez não é só presidente da Venezuela, é também “el comandante” de um processo revolucionário sul-americano. É inadmissível o conformismo do governo Lula com as reeleições ilimitadas que agora constam da Constituição chavista. Um movimento de Chávez contra um vizinho não será surpresa. Um conflito com a Guiana, por conta da região contestada a oeste do Rio Essequibo, exigirá que o Brasil preserve a integridade do território e do espaço aéreo, proibindo e rechaçando o trânsito de tropas estrangeiras. No caso, deve ser considerado o fato de que a Guiana, na condição de ex-colônia britânica, receberá apoio da Inglaterra nas ações de defesa.
* Centro de Tecnologia, Relações Internacionais e Segurança