Uma das opiniões mais coerentes que eu ja vi sobre o oriente medio é deste jornalista, mesmo o assunto não estando completamente dentro do objetivo do topico postarei aqui mesmo:
Robert Fisk, o homem que ousou perguntar “por quê?”
Em entrevista exclusiva à História Viva, o correspondente do jornal inglês The Independent no Oriente Médio explica as raízes históricas da resistência islâmica que vê em Osama bin Laden uma inspiração contra o domínio das potências ocidentais
por Bruno Fiuza e Maíra Kubík Mano
Poucos ocidentais conhecem melhor o Oriente Médio do que o jornalista inglês Robert Fisk. Como correspondente internacional na região, entrevistou Osama bin Laden por três vezes e praticamente acompanhou o processo de formação da Al-Qaeda. Ao longo dos últimos 28 anos, o repórter foi testemunha ocular do processo histórico que levou a resistência dos povos árabes contra o domínio ocidental na região a transitar do nacionalismo dos anos 60 para o islamismo militante da década de 80. E ele até mesmo data esta virada: Fisk estava nas praias de Khalde, no Líbano, quando o Hezbollah realizou sua primeira ação armada contra tropas israelenses, em junho de 1982. Nesta entrevista, concedida à História Viva durante sua passagem pela Festa Literária Internacional de Parati, Fisk questiona o uso que os governos e a imprensa ocidental fazem da palavra “terrorismo” e explica as raízes históricas da emergência dos grupos armados islâmicos, que na sua opinião são uma resposta à incapacidade dos governos ocidentais de dialogar “com os verdadeiros representantes do povo daquela parte do mundo”.
Em primeiro lugar, como podemos definir terrorismo hoje?
“Terrorismo” hoje é uma palavra usada para eliminar toda a discussão a respeito dos motivos que levam os indivíduos a uma ação armada. Isso acontece, por exemplo, quando se analisa a questão do Oriente Médio sem discutir o papel dos Estados Unidos na região. É por isso que depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 publiquei um artigo no qual afirmava que “a única pergunta que não podemos fazer é ‘por quê?’”, pois fazer essa pergunta quer dizer que talvez haja um motivo que tenha levado à realização do atentado. O discurso oficial afirma que é “porque eles são maus, odeiam a democracia, etc.”, mas 19 assassinos eram árabes. Logo, deve haver uma relação entre o que acontece no Ocidente e a nossa política para o Oriente Médio, certo? A palavra “terrorismo” serve hoje para excluir qualquer explicação racional ou contextualização histórica dos fatos. Seu uso se tornou uma espécie de droga, e tem dois objetivos: o primeiro é eliminar toda a discussão sobre um assunto, e o segundo é assustar pessoas comuns. Assustadas, essas pessoas passam então a aceitar que seu governo adote medidas que, em essência, não são nem de direita, mas sim, de certa maneira, ditatoriais, e certamente contra os direitos humanos. Com isso, os governos podem fazer o que quiserem: eliminar a Convenção de Genebra, rasgar as garantias do Conselho de Segurança da ONU, permitir tortura, prisões subterrâneas, assassinato de prisioneiros, Guantanamo, etc.
Do modo como você coloca, o terror é um assunto de Estado, então?
Eu não uso a palavra “terrorismo” nos meus artigos ou nos meus livros, a não ser entre aspas. Eu não a uso porque é uma palavra totalmente desacreditada, ela já não tem mais nenhum significado. É um dispositivo utilizado para assustar as pessoas, para fazer com que elas acreditem que o Islã é nosso inimigo ou para impor novas leis que permitem prender uma pessoa por 90 dias sem direito a advogado. Esta é a primeira vez que uma guerra foi declarada a um substantivo abstrato – a “Guerra contra o Terror”. O que é o “terror”? Pode ser qualquer coisa. Essa idéia toda de “terror”, do meu ponto de vista, é uma armadilha. Usar a palavra em um contexto sério é uma armadilha. Se eu vejo uma revista ou um jornal com a palavra “terror” na capa simplesmente não compro, é lixo.
O que de fato é a Al-Qaeda? Quais são suas raízes históricas?
Para entender a Al-Qaeda é preciso ler história. Um dos problemas é que nem os governos e nem os jornalistas escutam o que Osama bin Laden e a Al-Qaeda dizem nas gravações que divulgam. Bin Laden fala da Declaração de Balfour (um documento secreto do governo britânico de 1917 que definia o plano de divisão dos territórios do Império Otomano ao final da Primeira Guerra Mundial); do Acordo Sykes-Picot de 1916, no qual França e Inglaterra dividiram o Oriente Médio; e fala em especial do Tratado de Sèvres, que acabaria com o Império Otomano, o último califado islâmico, em 1922. Ele sempre se refere aos fundamentos históricos do colapso do islamismo árabe, da perda do último califado e das conseqüências da Primeira Guerra Mundial. O que Bin Laden fez, originalmente, foi expor todas estas humilhações históricas. Muitos dos envolvidos com a Al-Qaeda são pessoas com um alto grau de instrução acadêmica, que entendem de história árabe. Acrescente a isso a obsessão pessoal de Bin Laden com a chegada das tropas americanas ao golfo Pérsico em 1990, quando o rei Fahd preferiu a ajuda dos americanos, e não dos mujahedins que lutaram no Afeganistão, para enfrentar Saddam Hussein. Para Bin Laden, a chegada dos americanos às duas cidades sagradas do mundo árabe – Meca e Medina – e a crescente presença das forças ocidentais é uma repetição de 1099 (ano da chegada dos cavaleiros da Primeira Cruzada a Jerusalém).
Como a Al-Qaeda funciona? Como foi o processo que levou à sua formação?
A Al-Qaeda, é um fenômeno único. Não há registro de filiação, não existe uma associação constituída, não há um financiamento regular. No começo, Bin Laden surgiu como uma inspiração. Os líderes árabes não diziam aquilo que o povo pensava. Quem fazia isso era Saddam, e é por isso que as pessoas gostavam dele. De repente aparece Bin Laden, um árabe falando de uma caverna, como o profeta Muhammad, expressando o que as pessoas pensavam. Inicialmente, a estrutura que ele criou funcionava como uma espécie de ONG: da mesma forma que uma organização quando quer construir uma rede de saneamento em uma vila remota na África se dirige a um governo para pedir recursos, alguns homens procuravam Bin Laden e associados pedindo, por exemplo, 6 mil dólares e dois especialistas em explosivos para atacar um navio no porto de Aden. Bin Laden dizia sim ou não. É como uma espécie de ONG, mas você não vai a um “quartel-general da Al-Qaeda”, como o Washington Post e a Fox News sugeriam. Mas o ponto é que hoje Bin Laden é totalmente irrelevante. Não importa o que ele diz. Ele pode morrer amanhã, tanto faz. O único meio de desativar a Al-Qaeda é tentar levar justiça para o Oriente Médio, mas nós não queremos isso. Queremos impor nossa posição na região. Para isso teremos que continuar lutando contra a Al-Qaeda, e alguns de nossos líderes vêem essa perspectiva com bons olhos!
Qual a diferença entre a Al-Qaeda e os outros grupos armados que atuam no Líbano, na Síria e na Palestina?
A guerra no Líbano é uma guerra entre os Estados Unidos e o Irã. O representante dos EUA é Israel e os representantes do Irã são a Síria e o Hezbollah. Em todo o Oriente Médio você tem vários grupos que acreditam que todas as tentativas de libertação da região e reconstrução do mundo islâmico falharam. O nacionalismo falhou. Todos estes grupos podem atuar com a ajuda dos serviços secretos sírios, com dinheiro do Irã ou dinheiro de quem quer que seja. Agora nós temos esta estranha “instituição" chamada Al-Qaeda, que é uma organização difusa.
O fato de a Al-Qaeda ser uma organização que não se identifica com um país específico representa uma mudança em relação aos outros grupos armados da região? De uma perspectiva histórica, qual foi o ponto de virada a partir do qual a luta baseada no nacionalismo árabe passou a ser baseada no islamismo?
Foi no dia 6 de junho de 1982, durante a invasão de Beirute pelas tropas israelenses, porque ali o nacionalismo árabe falhou, e o Hezbollah nasceu. Eu vi o primeiro ataque do Hezbollah nas praias de Khalde em 1982 contra um tanque israelense. Estava na praia e vi um grupo de milicianos com bandanas na cabeça. Pensei comigo mesmo: “Quem são estas pessoas? Não são palestinos”. Este foi o início do Hezbollah. Posteriormente eles mesmos disseram: “Esta foi a fundação, você tem o crédito, você estava lá, viu”... e muitos deles não viram! O Hezbollah tem a sua própria história e me citam: “Robert Fisk estava na praia de Khalde, ele viu o primeiro ataque”. E vi mesmo, vi os israelenses fugindo.
Então foi este o ponto de virada?
Para mim foi quando Arafat disse “que venham os israelenses”. Os israelenses vieram, ele não estava preparado para enfrentá-los e no final teve de fugir. Por fim, aquela Beirute símbolo do nacionalismo árabe foi ocupada pelos israelenses. O líder da Jihad Islâmica em Beirute, então, declarou: “Resistência!”, e foi assim que a resistência islâmica começou, tornando-se uma inspiração também para os palestinos. O ano de 1982 foi decisivo. Foi a primeira vez que os árabes deixaram de ter medo. Com todos aqueles aviões bombardeando Beirute ocidental e a população sendo aconselhada a deixar a cidade, me lembro do dia em que o proprietário do imóvel onde eu morava chegou da praia com uma sacola cheia de peixes e disse: “Temos como viver, não precisamos sair da cidade, temos peixes!”. Aquele foi o começo. A partir daquele momento a resistência passou a ser islâmica. Há 30 anos todos os inimigos do Ocidente no Oriente Médio – OLP, FDLP, FPLP – eram movimentos de esquerda, pró-URSS. Hoje, todos eles – Talebãs, mujahedins, Hamas, Hezbollah, Jihad Islâmica – são islâmicos. Não há mais nacionalismo.
Foi uma transformação ideológica?
Sim, foi uma transformação ideológica, porque continuamos pressionando cada vez mais. Esmagamos o nacionalismo e, de repente... Oh! Surge um novo monstro, muito maior, mais terrível, chamado “Islã”, ou “terrorismo islâmico”, ou qualquer que seja o nome. Se em algum ponto nós tivéssemos ponderado “ok, temos de lidar com estas pessoas” talvez pudéssemos falar de justiça. Não de democracia, mas de justiça. Eles adoram democracia, querem alguns pacotes de direitos humanos comuns nas prateleiras de nossos supermercados ocidentais, mas a democracia que eles querem é de outro tipo. Querem se ver livres de nós, mas essa liberdade nós não vamos dar ao Oriente Médio. Por que estamos no Iraque? Por causa do petróleo. Se o produto nacional do Iraque fosse aspargo ou batata os exércitos dos Estados Unidos e da Inglaterra não estariam lá.
Essa mudança teve alguma relação com a queda da União Soviética?
Claro que sim, mas ela teria ocorrido de qualquer forma. Os laços dos grupos árabes com a União Soviética eram fortes mas apenas no plano político. Quando Arafat estava cercado, em Beirute, pediu a Brezhnev que aviões russos fizessem uma entrega de armas na cidade. Não recebeu uma arma sequer. Portanto, não era tão bom assim ser amigo da União Soviética. Em última instância não foi isso que levou à transformação da resistência, foi o fato de que nós mantivemos a pressão e não negociamos com os verdadeiros representantes do povo daquela parte do mundo, e agora temos representantes ainda menos desejáveis. O que virá em seguida?
Fonte:
Historia Viva