Qual deveria ser a prioridade fundamental para o EB?
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Qual deveria ser a prioridade fundamental para o EB?
Na sua opinião, qual deveria ser a prioridade no atual momento para o EB?
Abraços
Abraços
Editado pela última vez por Slip Junior em Sex Jul 02, 2004 2:06 pm, em um total de 1 vez.
- Lauro Melo
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Exército
Justificando, Aquisição de sistemas de artilharia de médio/longo alcance
F-111 Abatido
ZSU-23-4 "Shilka
Conhecido ZSU-23-4 "Shilka", foi o veículo antiaéreo de maior sucesso de todos os tempos da guerra do Vietnã à guerra do Golfo Persíco, passando pelas guerras Árabes Israelenses ele sempre conseguiu aumentar seu número de aeronaves abatidas ou danificadas, até mesmo no bombardeio americano na Líbia em 1986 a única aeronave atingida pelos Líbios foi um F-111 por um Zsu-23-4.
F-15 Abatido
Ele ( ZSU-23-4 "Shilka" ), se tornou o mais mortal dos sistemas de canhões anti-aéreos da guerra fria, os canhões possuem uma cadência máxima de mil tiros por minuto por cano, prática de 200 tiros por cano que são refrigerados a àgua e podem girar rapidamente 360° e elevar de -4° à +85°. Na guerra de 1973 no Oriente Médio ele foi um dos sistemas mais eficientes, mais recentemente na chamada guerra do golfo de 1991 ele conseguiu derrubar mais aeronaves que os sistemas de mísseis e danificando outras.
Mirage 2000 ABATIDO
Igla
O sistema de mísseis antiaéreos portáteis Igla entrou em serviço em 1985, como o substituto do mais difundido míssel da categoria no mundo, o famoso Strela-2/3(na OTAN Sa-7"Grail"/Sa-14"Gremlim"), desenvolvido pelo Kolomna Machenery Design Bureau, o Igla é um míssel muito mais capaz que seus antecessores, com desempenho de 25% a 50% superior, É muito provável que o Igla tenha sido o responsável pela derrubada de um Mirage-2000 francês na Iuguslávia em 1995.
F- 117 ABATIDO
SA-10 GRUMBLE S-300PMU
Mas essa "impunidade" não iria durar muito tempo. Quem assistiu as cenas da "perdida" defesa anti-aérea iraquiana tentando acertar os F-117, sem sucesso, se espantou ao ver as imagens nas televisões e jornais de um F-117 abatido, provavelmente, pela anti-aérea sérvia no recente conflito em Kosovo.
Abraços,
F-111 Abatido
ZSU-23-4 "Shilka
Conhecido ZSU-23-4 "Shilka", foi o veículo antiaéreo de maior sucesso de todos os tempos da guerra do Vietnã à guerra do Golfo Persíco, passando pelas guerras Árabes Israelenses ele sempre conseguiu aumentar seu número de aeronaves abatidas ou danificadas, até mesmo no bombardeio americano na Líbia em 1986 a única aeronave atingida pelos Líbios foi um F-111 por um Zsu-23-4.
F-15 Abatido
Ele ( ZSU-23-4 "Shilka" ), se tornou o mais mortal dos sistemas de canhões anti-aéreos da guerra fria, os canhões possuem uma cadência máxima de mil tiros por minuto por cano, prática de 200 tiros por cano que são refrigerados a àgua e podem girar rapidamente 360° e elevar de -4° à +85°. Na guerra de 1973 no Oriente Médio ele foi um dos sistemas mais eficientes, mais recentemente na chamada guerra do golfo de 1991 ele conseguiu derrubar mais aeronaves que os sistemas de mísseis e danificando outras.
Mirage 2000 ABATIDO
Igla
O sistema de mísseis antiaéreos portáteis Igla entrou em serviço em 1985, como o substituto do mais difundido míssel da categoria no mundo, o famoso Strela-2/3(na OTAN Sa-7"Grail"/Sa-14"Gremlim"), desenvolvido pelo Kolomna Machenery Design Bureau, o Igla é um míssel muito mais capaz que seus antecessores, com desempenho de 25% a 50% superior, É muito provável que o Igla tenha sido o responsável pela derrubada de um Mirage-2000 francês na Iuguslávia em 1995.
F- 117 ABATIDO
SA-10 GRUMBLE S-300PMU
Mas essa "impunidade" não iria durar muito tempo. Quem assistiu as cenas da "perdida" defesa anti-aérea iraquiana tentando acertar os F-117, sem sucesso, se espantou ao ver as imagens nas televisões e jornais de um F-117 abatido, provavelmente, pela anti-aérea sérvia no recente conflito em Kosovo.
Abraços,
Eu votei em outra e vou apresentar minhas justificativas:
Acredito que o Exército Brasileiro para se projetar como uma força de elevada capacidade operacional a altura de um país continental como o Brasil deve investir nas armas que considero as mais "caras" de qualquer exército:
- Na arma de Mallet (a Artilharia)
- Na arma de Osório (a Cavalaria)
Sendo que a capacidade de C2 da força deverá acompanhar de perto a evolução tecnológica da mesma sendo que, para tal, a Arma de Comunicações ("A Arma do Comando") é algo que considero fundamental.
Existe aspectos de logistica que envolvem a Engenharia, a Intendência, Mat Bel e outros que, por sua vez, podem ser improvisados em caso de necessidade aproveitando-se da estrutura já existente na nossa sociedade civil (meios de transporte, hospitais, oficinas, indústrias, etc.). Não é o ideal, mas é algo possível e viável.
Num segundo momento a Arma de Infantaria (a principal Arma do EB) deverá ser Mecanizada para poder ser empregada mais adequadamente de acordo com a doutrina atual de guerra de movimento.
A Artilharia Brasileira precisaria priorizar alguns aspectos:
1) Sistema ASTROS
2) EDT FILA e estudos para a aquisição de um sistema SAM
3) Sistema Gênesis (Projeto)
4) Aquisição de mais Morteiros 120 mm, o que considero barato e viável pois aumentará considerávelmente o poder de destruição da força
Já a cavalaria precisa priorizar alguns aspectos que também são onerosos:
1) Estudar a aquisição de novos CC
2) Decidir o que fazer com a atual frota de blindados sobre rodas
3) Aumentar a capacidade da chamada "Cavalaria Aérea" (Brigada Aeromóvel) em vista da necessidade desta operar desdobrada na área do CMA
Tem mais algumas coisas, mas acredito que devo estar certo em alguns pontos. O que vejo atualmente é o governo federal equipar o EB com armamentos leves pra que o mesmo enfrente o narcotráfico, rebaixando a Força Terrestre à condição de Guarda Nacional. O Exército tem que ser forte pra estabelecer a guerra regular convencional de destruição do inimigo e, se necessário for, destruir narcotraficantes na garantia dos direitos constitucionais da população brasileira.
Brasil Acima de Tudo!!!
Acredito que o Exército Brasileiro para se projetar como uma força de elevada capacidade operacional a altura de um país continental como o Brasil deve investir nas armas que considero as mais "caras" de qualquer exército:
- Na arma de Mallet (a Artilharia)
- Na arma de Osório (a Cavalaria)
Sendo que a capacidade de C2 da força deverá acompanhar de perto a evolução tecnológica da mesma sendo que, para tal, a Arma de Comunicações ("A Arma do Comando") é algo que considero fundamental.
Existe aspectos de logistica que envolvem a Engenharia, a Intendência, Mat Bel e outros que, por sua vez, podem ser improvisados em caso de necessidade aproveitando-se da estrutura já existente na nossa sociedade civil (meios de transporte, hospitais, oficinas, indústrias, etc.). Não é o ideal, mas é algo possível e viável.
Num segundo momento a Arma de Infantaria (a principal Arma do EB) deverá ser Mecanizada para poder ser empregada mais adequadamente de acordo com a doutrina atual de guerra de movimento.
A Artilharia Brasileira precisaria priorizar alguns aspectos:
1) Sistema ASTROS
2) EDT FILA e estudos para a aquisição de um sistema SAM
3) Sistema Gênesis (Projeto)
4) Aquisição de mais Morteiros 120 mm, o que considero barato e viável pois aumentará considerávelmente o poder de destruição da força
Já a cavalaria precisa priorizar alguns aspectos que também são onerosos:
1) Estudar a aquisição de novos CC
2) Decidir o que fazer com a atual frota de blindados sobre rodas
3) Aumentar a capacidade da chamada "Cavalaria Aérea" (Brigada Aeromóvel) em vista da necessidade desta operar desdobrada na área do CMA
Tem mais algumas coisas, mas acredito que devo estar certo em alguns pontos. O que vejo atualmente é o governo federal equipar o EB com armamentos leves pra que o mesmo enfrente o narcotráfico, rebaixando a Força Terrestre à condição de Guarda Nacional. O Exército tem que ser forte pra estabelecer a guerra regular convencional de destruição do inimigo e, se necessário for, destruir narcotraficantes na garantia dos direitos constitucionais da população brasileira.
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- Lauro Melo
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EB
Balena escreveu:Eu votei em outra e vou apresentar minhas justificativas:
Num segundo momento a Arma de Infantaria (a principal Arma do EB) deverá ser Mecanizada para poder ser empregada mais adequadamente de acordo com a doutrina atual de guerra de movimento.
A Artilharia Brasileira precisaria priorizar alguns aspectos:
1) Sistema ASTROS
2) EDT FILA e estudos para a aquisição de um sistema SAM
3) Sistema Gênesis (Projeto)
4) Aquisição de mais Morteiros 120 mm, o que considero barato e viável pois aumentará considerávelmente o poder de destruição da força
Já a cavalaria precisa priorizar alguns aspectos que também são onerosos:
1) Estudar a aquisição de novos CC
2) Decidir o que fazer com a atual frota de blindados sobre rodas
3) Aumentar a capacidade da chamada "Cavalaria Aérea" (Brigada Aeromóvel) em vista da necessidade desta operar desdobrada na área do CMA
Ótima explicação, Muito boa mesmo.
Entretanto a pergunta é muito clara :
Qual deveria ser a prioridade fundamental para o EB ?
a prioridade e não as prioridades,
E devido a ja conhecida pouca verba orçamentária de nossas Fas, acho que deveríamos primeiro atender a que mais são estratégicas.
Abraços,
Vejo o Exército como um organismo, ou seja, uma força que deve estar apta a se lançar na guerra de forma harmoniosa com movimentos sincronizados. Sinceramente não me agradaria ver modernos CC brasileiros avançando no campo de batalha sem a devida proteção anti-aérea.
Editado pela última vez por Balena em Seg Mar 27, 2006 10:27 am, em um total de 1 vez.
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Lauro Melo escreveu:F- 117 ABATIDO
SA-10 GRUMBLE S-300PMU
Mas essa "impunidade" não iria durar muito tempo. Quem assistiu as cenas da "perdida" defesa anti-aérea iraquiana tentando acertar os F-117, sem sucesso, se espantou ao ver as imagens nas televisões e jornais de um F-117 abatido, provavelmente, pela anti-aérea sérvia no recente conflito em Kosovo.
Mas o F-117 da antiga Iuguslávia não foi abatido por uma salva de SA-3?(ou seria SA-6....).
Abraços
César
"- Tú julgarás a ti mesmo- respondeu-lhe o rei - É o mais difícil. É bem mais difícil julgar a si mesmo que julgar os outros. Se consegues fazer um bom julgamento de ti, és um verdadeiro sábio."
Antoine de Saint-Exupéry
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- Lauro Melo
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F- 117 - Abatido
César,
Vc tem toda razão, eu não sei o site pois copio as informações e coloco no word e vou guardando no micro, mas ai vai parte do texto :
O primeiro vôo do F-117 foi em 18 de julho de 1981 no secreto campo de Groom Dry Lake. O 4.450° Tactical Group foi o primeiro esquadrão declarado operacional em outubro de 1983. Em dezembro de 1989 ocorre o batismo de fogo do F-117 durante a invasão do Panamá, mas foi na Guerra do Golfo que o F-117 realmente mostrou todas suas virtudes, sendo o único avião da coligação aliada a ter permissão de atacar a fortemente defendida capital do Iraque Bagdá. Às 2:35 da madrugada de 17 de janeiro de 1991 (hora local), o prédio de comunicações da AT & T foi atingido por uma bomba guiada a laser de 2.000 libras (907 kg), iniciando o início das operações do F-117. Com 42 aviões, 1.299 surtidas e sua incrível precisão (e impunidade) sobre os céus de Bagdá, acabou tornando-se a vedete da Guerra do Golfo. Mas essa "impunidade" não iria durar muito tempo. Quem assistiu as cenas da "perdida" defesa anti-aérea iraquiana tentando acertar os F-117, sem sucesso, se espantou ao ver as imagens nas televisões e jornais de um F-117 abatido, provavelmente, pela anti-aérea sérvia no recente conflito em Kosovo. Pertecente ao 49th Operations Group, sediado na base aérea italiana de Aviano e realizando missões exclusivamente noturnos, como já havia acontecido no Golfo, contra alvos sérvios próximos a Belgrado. Em 21 de março de 1999, quarta noite de ataques, já na perna de regresso e após ter lançado uma bomba GBU-24/B Paveway III a laser, um F-117 foi abatido porvavelmente por vários mísseis terra-ar SA-3 ou SA-6A, seu piloto ejetando e resgatado mais tarde numa operação C-SAR (Combate-SAR).
******************************************
Sobre o SA-6A : Que é um projeto antigo, tem estas informações :
Abraços,
Vc tem toda razão, eu não sei o site pois copio as informações e coloco no word e vou guardando no micro, mas ai vai parte do texto :
O primeiro vôo do F-117 foi em 18 de julho de 1981 no secreto campo de Groom Dry Lake. O 4.450° Tactical Group foi o primeiro esquadrão declarado operacional em outubro de 1983. Em dezembro de 1989 ocorre o batismo de fogo do F-117 durante a invasão do Panamá, mas foi na Guerra do Golfo que o F-117 realmente mostrou todas suas virtudes, sendo o único avião da coligação aliada a ter permissão de atacar a fortemente defendida capital do Iraque Bagdá. Às 2:35 da madrugada de 17 de janeiro de 1991 (hora local), o prédio de comunicações da AT & T foi atingido por uma bomba guiada a laser de 2.000 libras (907 kg), iniciando o início das operações do F-117. Com 42 aviões, 1.299 surtidas e sua incrível precisão (e impunidade) sobre os céus de Bagdá, acabou tornando-se a vedete da Guerra do Golfo. Mas essa "impunidade" não iria durar muito tempo. Quem assistiu as cenas da "perdida" defesa anti-aérea iraquiana tentando acertar os F-117, sem sucesso, se espantou ao ver as imagens nas televisões e jornais de um F-117 abatido, provavelmente, pela anti-aérea sérvia no recente conflito em Kosovo. Pertecente ao 49th Operations Group, sediado na base aérea italiana de Aviano e realizando missões exclusivamente noturnos, como já havia acontecido no Golfo, contra alvos sérvios próximos a Belgrado. Em 21 de março de 1999, quarta noite de ataques, já na perna de regresso e após ter lançado uma bomba GBU-24/B Paveway III a laser, um F-117 foi abatido porvavelmente por vários mísseis terra-ar SA-3 ou SA-6A, seu piloto ejetando e resgatado mais tarde numa operação C-SAR (Combate-SAR).
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Sobre o SA-6A : Que é um projeto antigo, tem estas informações :
O radar de controle de fogo Straight Flush do SA-6A tinha alcance de 75km e controlava até três mísseis simultaneamente contra um único alvo; possuía um sistema IFF.
O SA-6B tinha no lugar do Straight Flush, um sistema EO com alcance de 30km que operava o projétil 9M9-1, variante guiada por sistema EO, e dava capacidade de investir sem radares funcionais ou em ambientes de elevado ECM.
O SA-6 foi utilizado por 25 países. O sistema tinha a designação militar na Rússia de S-250, o codinome KUB dava-se ao veículo de transporte.
A doutrina soviética aparentemente acreditava que três SAMs perseguindo uma única aeronave reduziam suas chances a zero
Abraços,
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Marquei "outras". E especifico, numa só palavra:
Profissionalismo. Em todos os escalões. Do último soldado esclarecedor até o último general-de-exército. E passando pela espinha dorsal de qualquer exército: o corpo de graduados.
E com tudo o que isso implica: reordenamento de unidades; extinção de outras. Transferência das unidades restantes para pontos perigosos do território. Centralização de unidades de choque, aptas a serem deslocadas para qualquer ponto, por uma reforçada Força de Transporte da FAB.
E muito treinamento. Até que os canos dos fuzis (sejam lá quais forem os modelos) fiquem brilhando no escuro pelo calor. Já li (acho que foi aqui mesmo) que um soldado de infantaria brasileiro dá, em média, uns 150 tiros de fuzil no seu ano de treinamento (se tiver dito besteira, pau no Clermont, não tenham pena). Comparem isso, com outra coisa que eu li, dizendo que os mestres-de-armas da Marinha americana (equivalente ao nosso Serviço de Polícia de Marinheiros) estão gastando mil tiros de M-16 nos estandes, só para dar proteção aos navios ancorados.
Sabem qual é o ditado que é a marca de um exército verdadeiramente profissional? É um antigo dito romano:
"A diferença entre uma legião no campo de batalha, e uma legião no campo de adestramento, é apenas a quantidade de sangue derramada."
E, para isso, a devida recompensa para os duros e implacáveis soldados e graduados profissionais: a possibilidade de carreiras, longas e muito bem remuneradas.
Só algumas idéias de um diletante no ramo...
Profissionalismo. Em todos os escalões. Do último soldado esclarecedor até o último general-de-exército. E passando pela espinha dorsal de qualquer exército: o corpo de graduados.
E com tudo o que isso implica: reordenamento de unidades; extinção de outras. Transferência das unidades restantes para pontos perigosos do território. Centralização de unidades de choque, aptas a serem deslocadas para qualquer ponto, por uma reforçada Força de Transporte da FAB.
E muito treinamento. Até que os canos dos fuzis (sejam lá quais forem os modelos) fiquem brilhando no escuro pelo calor. Já li (acho que foi aqui mesmo) que um soldado de infantaria brasileiro dá, em média, uns 150 tiros de fuzil no seu ano de treinamento (se tiver dito besteira, pau no Clermont, não tenham pena). Comparem isso, com outra coisa que eu li, dizendo que os mestres-de-armas da Marinha americana (equivalente ao nosso Serviço de Polícia de Marinheiros) estão gastando mil tiros de M-16 nos estandes, só para dar proteção aos navios ancorados.
Sabem qual é o ditado que é a marca de um exército verdadeiramente profissional? É um antigo dito romano:
"A diferença entre uma legião no campo de batalha, e uma legião no campo de adestramento, é apenas a quantidade de sangue derramada."
E, para isso, a devida recompensa para os duros e implacáveis soldados e graduados profissionais: a possibilidade de carreiras, longas e muito bem remuneradas.
Só algumas idéias de um diletante no ramo...
- Slip Junior
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ESPÍRITO DA FEB E ESPÍRITO "DO CAXIAS".
José X. Góis de Andrade, 1o Tenente da Reserva, Infantaria. Pernambuco, 1916. CPOR do Rio de Janeiro, 1944. Voluntário da FEB, embarcou com o escalão do Recompletamento de Pessoal, indo para o Depósito do Pessoal, e daí, transferido para o 6o RI, 7a Cia, durante o combate de Montese, assumindo, posteriormente, o comando do 3o Pelotão. Medalhas de Campanha e de Guerra. Advogado na vida civil.
1a Parte
DUAS MENTALIDADES.
Quando cheguei à Itália, senti logo que os soldados dividiam em dois o Exército Nacional: referiam-se à FEB como a um “novo Exército”, bem diferente daquele outro Exército que ficara no Brasil e que eles sempre ouviram chamar “Exército de Caxias”.
Esta divisão era mencionada, toda vez que os expedicionários estabeleciam comparação entre os métodos, costumes e princípios adotados no Brasil e os vigentes nos campos de batalha na Frente italiana..
Pretendemos analisar esta distinção, feita, aliás, em tom pouco lisonjeiro para o “Exército de Caxias”, buscando, ao mesmo tempo, uma explicação sincera e imparcial.
Adiantaremos que o Duque de Caxias – Patrono do Exército – não era bem interpretado e compreendido pelo soldado. Por quê? – Uma exaltação sem método psicológico fê-lo um símbolo inatingível. Os símbolos, embora alçados às alturas da glória, não devem perder a natureza humana que se identifica com aqueles a quem servem de paradigma. Do contrário, deixa de ser um símbolo pelo inatingível de suas qualidades, pela impossibilidade material de ser imitado.
Em todos os quartéis brasileiros, Caxias foi apresentado com um exagero tal que o homem comum não pode compreender. Para o soldado simples, cheio de fraquezas e falibilidades humanas, os traços da vida realmente predestinada do Duque de Caxias, aquela perfectibilidade realçada numa exaltação quase mística, tornou-se inimitável, inalcançável como símbolo. Surgiu o oposto do que se desejava obter: - Caxias era uma coisa impossível... Qual foi, então, o resultado? Todos nós o sabemos: para o soldado, “Caxias” é o oficial, o sargento, o praça exagerado, rigoroso em demasia. É o militar que vive com o dedo nos artigos do Regulamento, sem a tolerância da equidade. É o soldado “puxa-saco”, quando devia ser o contrário. Assim muitos dizem:
“Aquele tenente é um sujeito tesa” (isto é, rigoroso)
“Ah! Aquilo é um Caxias!”
Porém, não estará aí, a diferença notada e proclamada pelos pracinhas.
Procuremos, pois, a origem desta diferenciação que se fazia, entre FEB e o Exército Nacional, denominados o “Exército da FEB” e o “Exército de Caxias”.
a) patriarcalismo no exército.
O soldado brasileiro fôra sempre tratado com ares patriarcais. Velho hábito que vem dos primeiros tempos da nossa formação colonial, da escravidão.
Quem já morou no interior brasileiro ou nele nasceu, sabe que o “senhor de engenho”, o fazendeiro, o dono da terra, enfim, é uma espécie de comandante. Sua pose é militar. Sua palavra é um comando. O apelido de “capitão”, “major” e “coronel” substituía e substitui, ainda hoje, com menos freqüência, o nome próprio do senhor da terra. O de coronel, é presentemente, bem comum.
Além de serem esses títulos um substituinte do “doutor”, de tão grata importância – vício do bacharelismo – emprestam ao dono da terra uma ascendência hierárquica, uma posição militarizante. (Esta ocorrência não depende, somente, da antiga Guarda Nacional.)
Recordo-me das histórias que meu pai contava dos “capitães de mato” dos fins do Império, perseguindo os negros fugidos das senzalas. Ainda hoje, no Nordeste pronuncia-se com naturalidade um título militar mais modesto: - “cabo do eito” atribuído a um homem de confiança, que fiscaliza e comanda certo número de trabalhadores que de enxada em punho, avança pelo roçado a dentro, limpando a terra e abrindo as covas do canavial.
A nossa formação, desde a divisão das capitanias hereditárias, a forma de trabalho nos diferentes ciclos econômicos; a imensidão territorial desabitada; o vício escravocrata; as invasões vindas do mar; as penetrações pelas selvas virgens e povoadas de bugres e feras transformaram-nos em um povo de comandantes e comandados em que o cidadão é uma figura inexpressiva, e a liberdade menos um direito do que a tolerância do poder estatal. A nossa “revolução francesa” vem em golfadas de uma “tuberculose” que nem mata nem desaparece...
Cessada a escravidão, o trabalhador abandonado ao seu destino permaneceu tão rude, tão ignorante como o escravo. Manteve-se aquele aspecto militarizante de verdadeiros “Comandos Econômicos” cujo quartel era a “Casa Grande” e o alojamento, a “Senzala”. O dono da terra, comandante, protetor, autoridade e lei. Conservou-se, destarte, a herança do poder que esses senhores adquiriram (principalmente no Nordeste) desde o tempo das invasões e ataques de corsários, quando eles eram os chefes, os comandantes naturais dos habitantes. (Vidal de Negreiros, o lendário comandante da resistência à invasão holandesa no Nordeste, era um “Senhor de Engenho”). Dessas reminiscências ainda existem vestígios capazes de atravessar um século, no avanço da colonização futura dos sertões e florestas brasileiros.
Víamos, portanto, nos quartéis, o encontro dos mesmos elementos humanos de que constituíamos: o filho do “coronel” e os filhos dos trabalhadores, foreiros, agregados, respectivamente como comandante e comandados.
Do Império para cá, a liberdade fez progressos. O padrão de vida das populações em geral melhorou. Os direitos dos homens, mesmo em golfadas, vão se acentuando. Ninguém pode comparar a situação do lavrador e do operário de hoje com a de meio século. E isto não decorre do governo de “A” nem da bondade de “B”. É o fruto das necessidades humanas e o resultado de análises e divulgações de estudiosos. O Chefe do Governo em geral quando decreta estes direitos é quando toma conhecimento deles... É que a humanidade caminha para a frente.
No quartel, ontem como hoje, defronta-se a Nação, tal qual ela é, com os seus vícios, suas virtudes, sua pobreza e seus costumes. E como um reflexo da vida civil, a disciplina nas casernas trazia a marca da disciplina coletiva. O poder do superior hierárquico, semelhante ao poder do senhor de terras. O elemento disciplinador dominante era o medo, o receio do castigo, o estabelecimento, enfim, de um modus vivendi desigual para uns e para outros; e condição de “senhor” e de subordinado com as suas regalias com as suas regalias e desvantagens.
Desta forma expulsamos invasores, construímos um império, mantivemos a unidade nacional, defendemos nossas fronteiras e erguemos cidades imponentes junto ao mar. Essa foi a realização do passado. O presente não conseguiu, ainda, chegar a uma definição. Não logrou a libertação do homem da gleba, nem consolidou as liberdades dos cidadãos na formação de um poderoso Estado Democrático. (E o homem abandona a terra e caminha para o mar num movimento de retorno e se transforma em um problema citadino de desequilíbrio urbano e político.)
Esse patriarcalismo nacional é causa e ao mesmo tempo efeito de uma pobreza. Ocioso seria trazer números e dados (nem o tempo me permite) que comprovassem a miséria coletiva dos nossos patrícios. A maior parte desconhece os elementos mais primários da vida civilizada, como o dentifrício, a escova de dentes, o papel higiênico, a água corrente, instalações verdadeiramente sanitárias. Já se disse que no Brasil nem os ricos sabem comer. A subnutrição e como resultado, as doenças (poder-se-ia dizer também: - e os remédios) oferecem esse quadro de um povo sem compleição física, aéreo, que vive de esperanças. (A esperança no jogo do bicho e na loteria, pode ser um índice de grande insatisfação popular. Da mesma forma a procura do êxito fácil, dos negócios rápidos, efêmeros e rendosos como uma loteria...)
O que poderia ser, então, o Exército Nacional? O Exército brasileiro? Um reflexo de seu povo, sem mais nem menos.
Foi, precisamente, ao vivê-lo e, depois, ao ingressar na Força Expedicionária Brasileira, que o pracinha sentiu as mudanças de ambiente, costumes, princípios e métodos. Mediu-os, comparou-os. E numa síntese, separou de um lado o seu conhecido “Exército de Caxias” e do outro uma fração desse mesmo Exército, que era a FEB, diferenciando-se daquele, como a sua escolhida, a sua preferida, a eleita
Ao tentar uma explicação deste fato, procurei expor as razões desta diferenciação, dentro dos seguintes títulos:
I. Diferenciação técnica.
II. Diferenciação geográfica.
III. Diferenciação disciplinar.
IV. Conclusões.
DIFERENCIAÇÃO TÉCNICA.
a) Padrão brasileiro.
Qualquer exército reflete a vida de uma nação. O Exército Nacional é um centro de atividade, trabalhos, de luta de sofrimentos e decepções.
O homem ao chegar ao quartel é selecionado fisicamente. Mas, em geral, é um cidadão de um povo por se fazer e organizar. Os selecionados fisicamente, em larga percentagem, são analfabetos ou semi-analfabetos. A grande parte vai tomar contato com uma máquina, seu funcionamento, conservação e limpeza, ao empunhar um fuzil ou metralhadora. Vivemos nesta Era Atômica a Era da Enxada, do querosene, dos utensílios de barro (fogão, panelas, etc.). O padrão de vida é baixo. O índice de disciplina social, da educação, é aquém do médio. Não formamos , ainda, mesmo entre as camadas dirigentes, uma compenetrada consciência da Legalidade, isto é, do respeito verdadeiro à lei e seus ditames. O problema legal e moral surge a cada passo nas violências de autoridades na intervenção armada contra Governo legalmente constituído, no “sabe com quem está falando?”, na irresponsabilidade, na linguagem obscena, etc. É mal generalizado. Vivemos de aparências e nos irritamos se o estrangeiro ou um dos nossos comenta ou pretende terminar este sonho vicioso. Enganamos a nós mesmos, porque o estrangeiro sabe o que somos e o povo, ao contar a sua vida, a sua luta, o seu trabalho, em toda parte, reúne um repositório pessimista e deprimente.
Assim, o Exército ao receber o conscrito, tem que moldar antes um cidadão. Isto é um mal para aquele e para este. Para aquele, porque o militar faz do “paisano” uma idéia pouco lisonjeira. Para este, porque o cidadão de nível médio ou superior, ressente-se do Exército, do seu ambiente, da sua capacidade.
A convocação obrigatória, há de melhorar o nível humano do Exército. Entretanto, só o tempo poderá dizer do resultado final. Pois para cada jovem bem educado ou educado no seio da família, existem vários ao léu do seu destino, na promiscuidade das favelas, dos mocambos, das casas de cômodo e dos campos. Este fato já é por si um problema para a nossa educação e um impulso para a indisciplina social dos grandes centros urbanos do país. Demais, o cinema ao apresentar o outro lado da vida norte-americana, o rádio, e certa imprensa, sensacionalizam o crime, a brutalidade os maus princípios divulgando uma ficção de folhetim mórbido, entre um povo que ainda está por se educar.
De qualquer forma, a nação brasileira vai se encontrar nos quartéis mais democraticamente. Embora as Forças Armadas recebam pelos seus ministérios as maiores dotações orçamentárias do Brasil, elas vivem e trabalham num regime de carência e pobreza técnicas e materiais.
A instrução é mais empírica. Lembro-me de que para se tocar numa bússola era uma dificuldade. Para um tiro de morteiro, poucos eram os privilegiados. E assim por diante. Inútil será dizer que só se aprende uma arte ou ciência pela prática. E será preciso sabê-la, dominá-la completamente, de forma a ser exercida com eficiência, mesmo em situações difíceis.
A higiene, a alimentação e a instrução prática, são, por assim dizer, o “calcanhar de Aquiles” do Exército. Nos quartéis, contam-se anedotas que ainda recordo, refletindo estes ângulos. Às vezes são adaptações de outras talvez já publicadas, mas não resisto ao desejo de reproduzi-las:
“O recruta está de sentinela, com o espírito fervendo de instruções regulamentares, quando sente uma estranha coceira. Leva a mão à altura do peito e recolhe o “insubmisso” na ponta do dedo e depois de o examinar, tira o casquete e sentencia militarmente, conduzindo o “insubmisso” outra vez à cabeça:
- Vorta pra teu quarté, desertor!...”
Às vezes, é o praça velha a personagem do anedotário.
“Naquele dia, em que se comemorava uma data nacional, um bom coronel entrou, de surpresa, num rancho de praças e passou a observar a comida. De repente, um soldado, lá no canto, começou a dizer:
- Vixe! Tô cego! Não tô vendo nada!...
- Todos se voltaram para o praça e o coronel, seguido do oficial do rancho, dirigiu-se para ele.
- Que é que tens, soldado?
- Tô cego, meu coroné!
- Você está cego?!
- Eu acho que tô. Porque eu sei que este pão tá mantegoso. Mas eu não vejo, meu coroné! Só posso tá cego!...
Na anedota, o coronel compreendeu a piada e disse para o oficial:
- É preciso aumentar a manteiga no pão!
Com o advento de nova festividade, passados meses, o excelente coronel voltou a visitar o rancho dos praças. E ao chegar ali, dirigindo-se ao oficial perguntou-lhe:
- Onde está aquele soldado gaiato, que disse que estava cego?
O oficial que não se esquecera mais do “praça velho” mencionou logo o seu número, que o coronel “cantou”. Do lado de lá, o “praça velho” respondeu logo:
- Pronto, meu coroné!
- Você ainda está cego, soldado? Perguntou-lhe o coronel com um ar de riso.
- Não senhor, meu coroné. Eu agora, tô inté vendo demais.
E colocando defronte dos olhos a sua fina fatia de queijo, acrescentou:
- Eu tô inté vendo o meu coroné, daqui!?
Nos alojamentos, o parasita é um inimigo intermitente, porém, o que se pode esperar de homens que vêm das favelas, dos mocambos, das casas de cômodos? Quem não sentiu, não uma, porém muitas picadas de pulgas nos cinemas – não digo do Interior – mas da Capital Federal? Por ventura as moscas não aparecem nos melhores restaurantes? Se assim é, por sua vez, o soldado não sente grande escrúpulos em se atirar de borzeguins sobre os cobertores, em momentos oportunos, e até com estes lustrar aqueles.
Que mal há em jogar as pontas do cigarro no pátio do quartel, na privada ou no chão? A prova é que as encontramos nos corredores das repartições públicas e nas áreas e terraços dos edifícios de apartamentos.
O cigarro não é nada. Pior é o escarro...!
O soldado tem justo receio da tampa da privada. Senta-se? Não. Pisa sobre ela. Aliás, contaram-me que na antiga Escola de Guerra (na atual não sei) chama-se a isso, “ação de aeroplano”. Mas o leitor não conhece as privadas da maior parte dos nossos restaurantes? Das nossas repartições? Nunca escutou dizer que há quem se utilize das toalhinhas higiênicas dos lavatórios para brunir os sapatos?
Nos quartéis, os objetos de uso individual devem ser guardados em armários, trancados a chave. O furto é freqüente. Não se deve “dar sopa”, quer dizer, deixar as coisas à vista. O ato de furtar tem no quartel um nome mais tolerável, que é “desapertar”.
Mas eu conheço várias pessoas que se consideram de alta classe e que ostentam em suas casas, a título de curiosidade, coleções de objetos por elas furtados de hotéis, navios, restaurantes, etc...
Em Pernambuco, uma firma de renome nacional organizou uma festa em suas propriedades e convidou centenas de pessoas entre a nata social do país. Aos convivas apresentou o que de mais fino possuía.
Os prejuízos foram vultosos devido aos furtos de objetos domésticos de grande valor.
Se fossemos até à cozinha, em alguns quartéis, não haveríamos de gostar. Carne exposta... moscas... panos sujos... detritos... o diabo!... Também, eu não entro no interior de uma cozinha da maior parte dos restaurantes da cidade. É melhor não ver. Demais, de onde vêm os cozinheiros? A maior parte dos cozinheiros não acredita nem tem tempo para pensar em micróbios. Sujo é aquilo que aparece preto, manchado, escuro. Ora, se o micróbio nem se vê?... Que mal faz? Depois, a comida é feita em grande escala e não há aparelhagem modernas para lavar e esterilizar pratos, etc. E se houvesse, quantos meses funcionariam elas? Para um exemplo, bastam as portas dos elevadores: fecham automaticamente e por isso não devem ser forçadas. Poucos resistem à tentação de não deixá-las vir calmamente. Puxam-nas. E quando elas se relaxam e não fecham o jeito é esperar porque o elevador está parado. Mas ninguém imagina que isto é conseqüência da pressa em favor da qual se violentou a máquina. Pelo contrário, vingam-se do porteiro ou do elevador... É a ignorância que gera a indiferença e o desrespeito na utilização mecânica.
Voltando à higiene para termos uma idéia bem simples, basta lembrar que as marmitas dos soldados (e dos próprios cadetes) em manobra, eram “limpas”, esfregando-se nelas farinha ou areia... Este costume, visto com naturalidade pelos comandantes e médicos, era, com certeza, a causa dos constantes desarranjos intestinais nos acampamentos.
Certa vez, ouvi de um capitão que os desencontros e retardos ocorrentes nas manobras, eram testes para os oficiais e soldados. O bom capitão encontrou uma desculpa singular. Penso, todavia, que a origem era outra. O hábito, a repetição de um ato é que estabelece a prática. Nós somos empíricos, por deficiência técnica. É precisamente por isto que a improvisação nos domina. Cada cabeça, cada sentença; da disciplina social mecânica é que resulta o progresso, o movimento harmonioso, a dinâmica dentro de tal equilíbrio, em que cada um age como uma peça de máquina, sem excessos que superem a sua resistência, sem atritos que o desgastem, sem inércia que prejudique o movimento coletivo.
As deficiências do Exército são os reflexos das deficiências de toda a Nação. A falta de água, de transporte, de provimentos etc., em tempo e horas certas, não pode servir de teste, senão em determinados momentos já estabelecidos como experimento de iniciativa ou resistência física dos comandantes e dos comandados. Entretanto, ante as nossas deficiências naturais, estes testes precisam ser comedidos, porque eles virão por si mesmos na hora H... Se em simples treinamentos as coisas não andam e não chegam, no combate não andarão nem chegarão, porque o combate é por si mesmo a desordem, o imprevisto, a dificuldade. A resistência do homem tem limites, que ultrapassados resultarão em desgastes e no aniquilamento. Poupá-la, economizá-la, esperando sempre um momento posterior em que ela será exigida no máximo. Por isso é que o regulamento chega até às minúcias, do cuidado das meias limpas, das unhas aparadas, do repouso nas marchas, etc.
Lembram-me, agora, aquela noite de frio em uma acampamento na Colina da Torre (frio que em comparação com o da Itália era um grande calor...). Já era tarde e o soldado tentava, inutilmente, conciliar o sono. Não tinha manta para se cobrir. Mesmo naquela casas, entre paredes, ele se queixava:
- Não posso dormir desse jeito! Isto é um horror. Nem uma manta me deram!?
Do outro quarto, uma voz entrou em conversa com o soldado:
- Tá sem manta? Tome uma.
- E você tem?
- Tenho duas. Tome uma.
O praça foi apanhar o cobertor no quarto vizinho e mal-humorado disse:
- Eu logo vi! Uns com tanto e outros sem nada! Esta é boa!
E ficou cinzento, ao acender a luz, quando deu com a cara do Comandante...
b) Padrão americano.
Um dia veio a guerra e nós tivemos que atravessar o Atlântico para lutar pela primeira vez na Europa.
Começamos a aprender, às carreiras, princípios e regulamentos do Exército norte-americano dentro de cujos quadros íamos lutar. Chegou aquele momento em que, já orientados pelo sistema americano, e com uma interrogação nos sentidos, embarcamos em perfeita ordem, em um grande transporte de tropas.
Depois de alguns dias, em alto mar, o pracinha caiu em si. Sentiu no transporte americano, uma profunda diferença. Eles foram encarregados dos trabalhos das cafetarias, desempenhando-se daquele serviço, como se fossem velhos conhecedores do assunto. Tudo saia a tempo e a hora. Tudo limpo e perfeito.
Os alimentos que subiam por elevador do compartimento de baixo, eram completados, divididos e servidos a milhares de homens em levas sucessivas. Aquela “cafetaria” para não fugir à estandardização americana, era um “rancho” naval mais completo, porém, nos moldes do barracão de rancho dos acampamentos, descritos mais adianta: cafetaria e balcão de um lado e do outro as mesas-bancos desmontáveis. Em vez de pratos ou marmitas de campanha, dos soldados, estes recebiam uma bandeja onde estavam moldados recalques destinados aos diferentes alimentos e sobremesa. Essas bandejas eram guardadas de forma que a última ficava rente ao balcão, enquanto as outras – permaneciam abaixo no embutido. Uma mola as impelia para cima, porém qualquer que fosse o seu número, somente a última afloraria à superfície metálica do balcão. Com os recalques, a bandeja valia por vários pratos, com a vantagem de ser um prato único facilmente adaptável como uma peça, à máquina que iria lavar e esterilizar simultaneamente com fortes jatos de água fervente. Estas coisas mencionadas por acaso ao correr do teclado e muitas outras que omitiremos, eram objeto da curiosa observação do nosso pracinha que via em tudo novidades: - ordem, asseio, rapidez, eficiência. Nem lhe faltava a água gelada, em bebedouros, as privadas limpas, o banho, as notícias pelo alto falante, música e cinema.
Viram, dali, surgirem os mingaus, os pudins, os sorvetes, o presunto, ovos, leite evaporado, com vitamina “C”, café... E deviam comer tudo, porque, com exceção dos que trabalhavam, eles só tinham duas refeições. E comiam mesmo, embora de manhã. Um ou outro estranhava aquelas entradas, logo cedo, principalmente o carioca, pois este está acostumado exclusivamente a média (café e pão). Um destes disse:
- Logo de manhã, “seu” tenente? E eu lá sou sabiá pra comer pirão de manhã?
Daí por diante, o pracinha ia ter grandes surpresas. Não só a neve, as terras estranhas, o inimigo e a guerra com as suas asperezas. Não lhe faltaria, porém, o conforto material, que a técnica prodigiosa dos americanos lhe haveria de proporcionar.
Uma das maiores preocupações do Exército americano, refletindo o poderio econômico de seus naturais, era precisamente o cidadão de quem ele recebia não só o corpo e o espírito, mas, os meios, através dos impostos. O estado, como um mal necessário que os cidadãos admitem e sustentam, tributa-lhes, à guisa de compensação, o máximo respeito e devotamento. Ouvi na Itália, que o lema dos americanos era este:
“Um homem só se consegue em vinte anos. Uma máquina em vinte minutos. Estraguem-se as máquinas, poupem-se os homens.”
Assim, tudo o que possa fazer a benefício de seu conforto, o Exército americano idealiza e, principalmente, executa com perfeição. Nem os seus cidadãos, vindos de um padrão de vida superior, admitiam o contrário. Naquele Exército, estavam todos. Generais e altas patentes perderam seus filhos em combate, muitos deles voluntários.
Poderíamos dizer, que esse lema dos norte-americanos sobre os homens e as máquinas, seria, ainda, uma face do seu utilitarismo. Melhor, porém, que admitamos terem eles, mesmo se apoiando no utilitarismo, chegado até o homem, para o proteger, instruir, elevar, respeitar. E esta crença na personalidade do homem e na sua liberdade, fundamentos da sua Constituição, espiritualiza-os. E talvez sejam eles mais espiritualistas do que os que vivem a exaltar o espírito do homem e menoscabar-lhes o corpo e as mesinhas.
Continuemos, entretanto, a penetrar esse mundo de surpresas, nesta parte denominada diferenciação técnica, entre o “Exército de Caxias” e a FEB.
Vejamos, por exemplo, um acampamento americano:
Seria um lugar comum dizer que o trabalho e organização americanos são padronizados. Tudo tem um sentido lógico. Se não existem limpeza e conforto sem água, ela deve aparecer nem que seja transportada em caminhões, o que só ocorria por amor das conveniências da guerra. Eles souberam imitar para melhor os recipientes de couro usados pelos árabes, fabricando-os de lona e armados como uma barraca. (O sertanejo nordestino usava, ou usa também, pequeno recipiente de couro chamado “surrão”.)
Um acampamento americano é um aldeamento que poderia servir de exemplo para nós em matéria de penetração colonizadora. Consideremo-lo uma continuidade de companhias até à unidade: batalhão ou regimento. Os barracões das companhias estão alinhados de acordo com a área digamos, em linha reta. Por trás desse alinhamento, passa uma estrada interna de serviço. Para além, nos fundos desse alinhamento, máquinas trabalharam o terreno, aplainando-o e enchendo de pedras britadas. É o local de reunião de viaturas. Tomemos uma dessas companhias, a começar pelo seu barracão na linha da estrada interna, de trás do acampamento: - este barracão pré-fabricado, tem forma retangular sob o piso de cimento. Tem a armação de madeira. As paredes são de papelão alcatroado e adaptado a uma tela grossa. A cobertura tem duas águas e bem no centro se eleva um chalé com respiradouro telado. As portas são de madeira ou simples armação coberta e possuem molas que as mantêm constantemente fechadas. As trancas são de madeira, em forma de ferrolho. Nas paredes, a quase dois metros de altura, aberturas retangulares e em sentido longitudinal substituem as janelas; são fechadas com tela fina, o que permite a circulação do ar, entrada de luz exterior e proteção contra insetos. O acampamento é iluminado a luz elétrica gerada por um motor a gasolina.
Podemos dividir, internamente, o barracão em duas partes: a primeira, de dois terços ou mais da área, ocupada por mesas-bancos – é o rancho. (Em outras horas é, também, local de trabalho dos oficiais e sargentos da companhia). Na outra parte que se separa da primeira por uma grade-balcão, está cozinha com três fogões a gasolina. A cozinha é servida por uma grande pia com água corrente. (Vi soldados americanos fabricando, no próprio local, uma dessas pias: - elas vem cortadas em uma folha única, porque como simples folhas de metal podem ser facilmente transportadas. No momento em que se quer transformá-las em uma pia, dobram-se as suas extremidades, como se estivesse fazendo uma simples caixinha de papel. As junturas são soldadas a oxigênio. E eis a pia feita...) Na parte extrema da cozinha, comunicando-se com esta por uma porta com fechadura, está a despensa com as suas prateleiras para as provisões.
Na parte externa do barracão, na altura da cozinha, existe um piso cimentado em aclive, com uma bica, onde são lavadas as panelas-gavetas dos fogões e utensílios culinários. Ali mesmo, subterraneamente, está a fossa de gordura, onde se depositam os pequenos detritos arrastados pela lavagem na pia ou no piso em aclive, o que evita o entupimento das manilhas que escoam as águas servidas. Mais adiante, localiza-se a fossa de detritos, destinadas a recolher os restos de comida e as latas de conservas vazias, as quais eram previamente amassadas em um cepo.
Defronte desse barracão da companhia alinham-se, em duas fileiras, as grandes barracas de lona. Estas duas linhas de barracas formam, assim, uma rua central e perpendicular ao barracão, onde os soldados entram em forma para qualquer fim.
Na hora do rancho, por exemplo, toda a companhia, formada na rua central, dirige-se para o barracão, cada praça com a sua marmita e a caneca para o refresco. À proporção que vai entrando, o soldado recebe, no balcão da cozinha, a sua bóia e se dirige para as mesas-bancos. Terminada a refeição, cada um vai lavar a sua marmita. Dirige-se, primeiro, para um tonel ou fossa de detritos onde joga os restos dos alimentos. (Este tonel é logo recolhido.) Dali, o soldado entra outra vez em fila ante os três caldeirões de água fervente, onde concluirá a limpeza das marmitas. O primeiro caldeirão contém uma solução de água e sabão; o segundo, água clorada e o terceiro, água pura. As duas conchas da marmita e os talheres, presos pelos seus orifícios ao cabo-haste de uma das conchas, são mergulhados no primeiro caldeirão e esfregados com uma brocha ou bastão que tem panos presos na extremidade. (Esta brocha ou bastão não é anti-higiênica, porque deve estar sempre submersa na água fervente e não como nós já fazíamos: deixando-a de fora.) Depois de mergulhadas no segundo e terceiro caldeirões, as marmitas saem completamente limpas. Os talheres são colocados dentro das conchas que são fechadas por justaposição. A água dos caldeirões é aquecida por fogareiros a gasolina ou gás contido em tubos. (Jamais víramos tanta gasolina. Os nossos jeeps e caminhões encostavam nos postos americanos e o encarregado logo os enchia. Com ela funcionavam fogões, fogareiros, aquecedores d’água, motores para vários misteres. Quando eu fiquei, praticamente, com a responsabilidade do acampamento, em Francolise, onde estivera o 6o RI, com o Contingente “B”, recolhi, espalhados pelas barracas, e entregue ao capitão que nos veio comandar, para mais de cem camburões de gasolina. Aquela essência de cor avermelhada era como que o sangue de todos os movimentos.)
Esta prática de cada companhia cuidar do rancho, da cozinha e das provisões necessárias à mesma, tem na paz e principalmente na guerra, uma grande importância na alimentação dos soldados. São várias companhias a fiscalizarem o fornecimento. A comida, por ser em menor quantidade, sai melhor. E por fim, o comandante do batalhão pode aferir o grau de capacidade e qualidade dos alimentos, experimentando-os em dias alternados, o que resultará uma concorrência entre as companhias em favor do soldado.
Injustificável era e é a existência de duas alimentações diferentes – uma para os oficiais e outra para os soldados. Se o oficial não come a bóia do praça, como aferir-lhe o gosto e prestabilidade? A alimentação deve ser a mesmíssima.
O soldado brasileiro foi encontrar a novidade da alimentação comum a oficiais e praças, na FEB, ou melhor, com os americanos do norte.
As privadas do acampamento são construídas com o mesmo material dos barracões. As portas, como as destes, conservam-se fechadas por molas de aço. Possuem, também, janelas teladas e arejam e clareiam o seu interior. A privada, propriamente, é um grande e simples caixão com três ou seis lugares e respectivas tampas. O caixão é bem assentado sobre uma profunda fossa. Com o fim de evitar que se molhe o caixão, existe uma calha de papelão alcatroado, junto à parede, que se comunica com a fossa e que serve de mictório. As tábuas são lavadas com água, sabão e esfregadas com escovas que lá se encontram. Diariamente, um pó desodorante é posto na fossa e nas calhas, retirando-lhes todo o mau cheiro. (Este desodorante estava presente, mesmo nos avanços da tropa.) O papel higiênico, em quantidade, era o da melhor espécie, superior ao que se usa comumente no Brasil.
No acampamento há, também, banheiros com água fria e quente para todos. Os chuveiros abrem-se no puxar de uma corrente, de forma que, ao ensaboar-se, o soldado é obrigado a soltar a corrente, o que resulta no fechamento automático da torneira, economizando-se, destarte, a água. O aquecimento é feito por um aquecedor a gasolina, regulável à vontade, enquanto um pequeno motor, posto a funcionar no momento, pressiona a água.
Estes banheiros eram feitos com o mesmo material dos barracões. Seu piso é, também, cimentado, existindo, outrossim, um grande estrado de madeira, bancos laterais, cabides para roupa.
Nos acampamentos não há água estagnada, nem papéis, nem ponta de cigarros. Esta deve ser rompida pelo fumante, que sopra o fumo, e o pequeno papel é transformado entre os dedos numa bolinha tão insignificante que não chega para sujar os pátios.
Nas zonas suspeitas de malária, os soldados recebem mosquiteiros, um líquido para o rosto e mãos, líquido que repele os mosquitos, além de pílulas de atabrina, que deve ser tomada diariamente. Tubos de gás com DDT são encontrados no rancho, nas privadas, nos banheiros e nas barracas. (Cada um desses tubos, dos pequenos, era vendido aqui no Brasil, logo após a guerra, a Cr$ 100,00). Além dessas preocupações há placas avisando: DANGER – MALARIA (Perigo – Malária). Nas caixas de fósforos, no envoltório de certos conteúdos das rações de combate, havia instruções sobre o mosquito como transmissor da malária e os cuidados que devem ser tomados, principalmente ao amanhecer e ao entardecer.
Entretanto, sobre malária, tenho a seguinte recordação: - quando o 6o RI, deixou o acampamento de Francolise como a primeira tropa que regressava ao Brasil, eu fiquei, praticamente, como comandante do Contingente “B” ali deixado à última hora. (Nesta ocasião eu tive a minha maior experiência de comandar e disciplinar uma tropa heterogênea e mal satisfeita, com a responsabilidade de todo um acampamento de regimento cheio de material e invadido pelos italianos, cabendo-me protegê-lo, limpá-lo, sob o maior calor que já senti em minha vida). Verifiquei que ao partir o regimento, os mosquiteiros haviam sido recolhidos e a tropa estava sem proteção contra os mosquitos. Foi uma luta para conseguí-los. Fui eu mesmo buscá-los na intendência e os trouxe sob a minha responsabilidade pessoal, distribuindo-os. Antes de partir, recolhi-os e os devolvi.
Como surgissem mosquitos e houvesse um menor italiano doente de malária num raio de trezentos metros de onde estávamos, tomei as providências que me cabiam, comunicando o fato ao QG. Um dia, apareceu um médico no seu jeep, tomou apontamentos e examinou o menor. Ou porque os italianos pedissem para não levar o menor ou porque não houvesse um lugar para onde levá-lo, após tomar as anotações, o médico retirou-se e o doente lá permaneceu até que nós embarcamos.
No acampamento, existe, ainda, além de serviço telefônico, alto-falantes que transmitem toques de corneta já gravados em discos, noticiários, ou se for oportuno, músicas.
A quantidade e variedade do material são extraordinárias. Duvido que exista no Brasil casa de gêneros alimentícios e outros artigos, que os possua em variedade e qualidade como os provimentos do Exército americano. Principalmente a qualidade causou-me admiração. Tantos os fornecedores do Exército como os responsáveis pela aquisição, são dignos de elogios. Sim, porque provisões de toda a espécie para quase doze milhões de combatentes norte-americanos e outros milhões d aliados, não são nenhum brinquedo.
Tudo era do melhor. E não havia distinção entre oficiais e soldados. Diariamente recebiam estes, um maço de cigarros americanos dos mais finos, “chiclets” , chocolate e fósforos.
Quando nós e nossos pracinhas começamos a receber blusões, field-jacquets, ceroulas compridas de lã, meias, luvas de lã ou couro, etc., deixamos de lado as peças correspondentes que leváramos do Brasil. Que acabamento! Nós havíamos recebido uma espécie de sobretudo de lã, pesadões à chuva e ao frio. Se chovia, encharcavam-se, tornavam-se pesados como chumbo. As conhecidas “japonas”. O field-jacquet, era um blusão bem apertado à cintura, revestido de lã por dentro e impermeável por fora; com um fecho eclair e além deste, botões; as mangas podiam ser abotoadas no pulso tornando-se bem apertadas; a gola protegia bem o pescoço. Eram amplos e leves. Com os pulsos, a cintura e o pescoço bem ajustado. Impermeáveis, prendiam o calor do corpo, aquecendo. Quem teria dúvida em encostar a “japona” para um lado? As costuras das nossas roupas eram fracas. Quem pregou os botões de nossas fardas, há de ter pensado que o infante, ao chegar na Itália, transformar-se-ia numa matrona respeitável em viagem de descanso. E que, ao sentar-se sob os pinheirais, à falta de lã para o tricô, gostaria de pregar botões... Realmente, vi um dia com justificado mal-estar, caírem de uma vez, quatro botões de braguilha. É verdade que nós levamos um estojo de costura com tesoura, agulhas, botões e linha. Mas convenhamos que o infante tem muita coisa com que preocupar-se, para toda a hora viver pregando botões ou costurando os fundos da calça. A intendência deveria examinar as costuras e os botões das peças americanas, bem como a qualidade dos fechos-eclair das malas de lona. Ou os brasileiros são feitos para se abrirem por si mesmos? Assim já é ser muito aperfeiçoado... Nem oito nem oitenta...
Voltemos ao acampamento. A cozinha era bem aparelhada. Desde os utensílios dos mais variados, como facões, facas, machadinhas, abridores de lata, etc., até as mais diversas farinhas, óleos, gorduras, carnes de vários tipos, ovos em pó ou frescos, café, açúcar, feijões (havia uma conserva de feijão e carne enlatados, meat and beans, com que os nossos cozinheiros preparavam uma sopa a que os soldados, aportuguesando o nome chamavam de “mitibina”), presunto, queijo, manteiga, geléias, compotas de pêra e pêssego das mais deliciosas que já experimentei, salada de frutas enlatadas, avelãs, castanhas, nozes, tâmaras, laranjas (até bananas de Tenerife), balas e caramelos, chocolates, amendoim confeitado ou torrado, manteiga de amendoim, leite evaporado com vitamina “C” que era um creme delicioso, farinha de aveias, ou de cereais, sucos de tomate ou de vegetais, refrescos em pó, café enlatado vindo dos Estados Unidos, cervejas em lata, etc. Uma vez ou outra aparecia galinha ao molho pardo, congelada, excelente pitéu. Pelo Natal houve peru. Parecia um desperdício.
Naturalmente, houve oportunidade para os que apreciam esses momentos de fartura. Mesmo que não tivesse chegado para nós tudo que o soldado americano gozava – e muita coisa não tivemos – o soldado brasileiro, acostumado a uma vida de carência e apertos, nem deu pela falta.
Uma senhora brasileira, que estivera nos Estados Unidos durante a guerra, contou-me que tivera a impressão de que os soldados americanos eram umas criancinhas, filhinhos de papai... Isto porque em toda parte era só em que se falava: - caramelos para os soldados, distrações para os soldados, isto para os soldados, aquilo para os soldados.
Ela nem sabe com que conforto eles lutaram e como souberam lutar. Os sacos de dormir, as peles para o frio, os fields-jacquets, os blusões, os calçados, as galochas de neve, os campos de descanso, os teatros e cinemas, estes exibindo em primeira mão, filmes novíssimos; o alicate de unha, os fogareiros de campanha, os aquecedores, sabonetes, pentes, lâminas de barbear, cremes... As cantinas de retaguarda, vendendo tudo pelo preço de custo. Os hotéis com flores e música. Os campos de descanso onde o soldado entregava as suas vestes sujas e recebia outras limpas. E isto, indistintamente para oficiais e soldados, pretos, brancos e amarelos. Era sempre o mesmo lema:
- Estraguem-se as máquinas, poupem-se os homens!
Mas o povo e Governo americanos estavam certos. Aquele, pagou duros impostos, trabalhou dobrado, sofreu de verdade o racionamento, mas sabia que os filhos e filhas espalhados pelas cinco partes do mundo, eram bem tratados. Naqueles suprimentos, naqueles caramelos, naquelas tâmaras e doces, no peru do Natal, estavam o afeto materno da Nação ansiosa pela sorte do sangue do seu sangue. E por melhor que seja, a guerra é sempre a guerra. Não há conforto que possa suprir a perspectiva da morte a cada passo.
Não falo da guerra, da luta, dos avanços e dos abrigos dentro da neve, do frio cortante entrevando os membros (muitos perderam as pernas congeladas, nos chamados “ pés de trincheira”), das rajadas das metralhadoras, do tossir trágico dos morteiros, das arrancadas montanha acima sob o espoucar das granadas, da mina invisível e traiçoeira, pronta a explodir no apanhar de uma arma inimiga, no abrir de uma porta, no simples caminhar!...
Pode ser dito que tudo isto é um simples dever do cidadão. Direi, porém, que há ocasiões em que o dever é tão difícil de ser cumprido, tão doloroso e cruel, que não poderemos deixar de ver com respeito aqueles que o cumpriram. Aqueles que deixaram as suas cidades, os seus negócios, e interesses, a sua família e as comodidades da civilização, o que só podemos apreciar, realmente, quando bem longe delas.
Depois, não há dever mais terrível do que enfrentar a morte! Não se trata, porém, da morte certa, determinada, rápida, com despedidas e últimas vontades de quem praticou um crime, ou de quem, sem forças, sem saúde, não tem outro remédio. Refiro-me aos que, cheios de vigor, em geral escolhidos dentre os melhores e mais saudáveis, os mais fortes e cheios de vida – vão enfrentar a morte sem hora marcada, durante horas, dias, meses, que são eternidades!
Razão teve o povo dos Estados Unidos. Corretamente agiu o seu Governo. As altas patentes do Exército cumpriram à risca a vontade ambos. Sim porque é de admirar que em tão descomunais fornecimentos de provisões e materiais, tivesse havido tamanha honestidade na fiscalização e as indústrias fornecessem precisamente o melhor, o mais perfeito de suas produções.
O povo dos Estados Unidos esteva à altura do valor dos seus filhos. Vale a pena lutar por quem é capaz de compreender o preço de tamanho sacrifício.
É preciso que se diga, que todos esses alimentos eram exclusivamente americanos. Seria desnecessário dizê-lo. Entretanto, é bom esclarecer este ponto, porque a grande falta de tudo existente no Brasil durante a guerra, era justificada muitas vezes com a FEB...
Para se dizer a verdade, dos próprios presentes que famílias e organizações de senhoras patrióticas nos enviavam poucos chegavam ao seu destino. O cigarro brasileiro eu o vi no fim de tudo, após o desaparecimento inexplicável dos cigarros americanos. Mas a tropa recusou os nossos cigarros e tempos depois, tornaram a aparecer os de fabricação americana. (Quando isto ocorreu, surgiram boatos de quadros italianos eram comprados com cigarros... Um maço de cigarro americano era vendido à população por quatrocentas liras.)
c) Contato com o Hospital americano.
Esse cuidado do americano com o homem eu fui encontrar em outro setor: - o Hospital. Fui para um isolamento onde encontrei perto de cem soldados brasileiros. O comandante americano mandou e num instante foi improvisado dentro da própria sala um compartimento que passou a ser um quarto meu e de outro oficial. Diariamente colocava-se ali um rádio para nós e que só era retirado à noite. Pude apreciar a ordem, a limpeza e principalmente o trabalho metódico, sem exibições, sóbrio e disciplinado das enfermeiras americanas (duas tenentes), dois ou três sargentos comandados por elas e o capitão que fazia as visitas médicas todo dia. Diariamente às mesmas horas, os mesmos serviços eram feitos com exatidão. Desde a limpeza da sala, o forrar das camas, a observação dos doentes, até à alimentação. Reunidos ali estávamos pretos e brancos. Entretanto, apesar da separação racial do Exército americano, aquelas enfermeiras tratavam os nossos soldados de cor com uma dedicação de irmã de caridade. E quando um soldado daqueles deixava de alimentar-se, por fastio absoluto, elas já tinham anotado e, no dia seguinte, ele tomaria soro na veia. Fiquei, certa vez, a contemplar uma delas aplicando massagem em um nosso soldado preto e considerei como elas levavam a sério a sua missão desinteressada e extraordinária de enfermeira.
Quando eu e o aspirante Hilto chegamos lá, esses soldados estavam entregues a si mesmos. Ninguém falava português. Se bem que houvesse enfermeiras brasileiras ali, naquele hospital, ninguém foi lá.
Eu próprio senti a diferença enorme. Passei nesse hospital uns seis dias, por ter contraído caxumba. Mas as enfermeiras americanas notaram logo que eu estava com uma forte bronquite, resultante de um banho que, de quente se tornara gelado, ainda em Nápoles. Muitos camaradas que não passaram por esta, contraíram pneumonia. Eu apanhei somente uma violenta gripe e fiquei penalizado dos outros. A filosofia chinesa, ensina todavia, que não sabemos quando um bem é um bem ou um mal um mal... Pois os que tiveram pneumonia, tratados a penicilina, restabeleceram-se imediatamente, sendo encaminhados à famosa estação de Monte Catine, e voltaram de lá gordos e com a pela luzidia. O fastio, a tosse e por vezes a febre me arrasavam...
Entretanto um médico brasileiro (deve ter sido uma dessas infelizes exceções), gordo e balofo era indiferente à minha tosse à minha febre. Dizia que não era nada e me dava umas pílulas de codeína... Se me tratava assim, como trataria os soldados? Jamais tive tamanha repugnância por um semelhante.
Quando senti a dor num lado do rosto e fui me queixar ao sargento enfermeiro de que a tosse estava me arrebentando um ouvido, o sargento disse logo: - É caxumba, tenente! Pensei que fosse o complemento da desgraça. Em cima de queda, coice! Mas foi a minha felicidade... Naquele dia, quando ia apresentar-me atrasado, por ter ido consultar o enfermeiro, o coronel estava medonho, pregando no momento, um sermão aos oficiais. Quando viu que chegava, parou e veio furioso. Eu seria o bode expiatório. Mas quando lhe comuniquei que estava com caxumba, ele recuou e disse: - Vá embora, por favor! Fique na barraca! Fique na barraca! Já havia mais de cem. Ele temia o contágio de todos. No dia seguinte eu estava no hospital... Ao notarem a minha tosse, as enfermeiras americanas tomaram conta de mim. Fui visitado e examinado cuidadosamente por um médico, também americano. Tomavam a minha temperatura três vezes por dia e em horas certas davam-me remédio. Aqueles seis dias entre os americanos foram a minha salvação. Que diferença!
Uma das enfermeiras fez questão de aprender várias frases portuguesas a fim de ser compreendida pelos nossos soldados: - Já arrumou sua cama? Está melhor? Etc. O “arrumou”, por mais que eu fizesse, era como se fosse escrito com um “r” só... E veio contar-me satisfeitíssima, que os soldados estavam entendendo o “seu” português...
De outra feita, ficamos malucos para saber o que elas queriam de nós. Andavam às voltas com um pracinha nosso. No meu pobríssimo inglês, compreendi que elas desejavam que ele fosse imediatamente a um lugar naquele mesmo momento. Elas não podiam sair dali. Entendi tudo, menos o lugar. Só depois vim a saber que era o Raio X, que em inglês dito invertido me parecia uma palavra estranha.
Todo o interesse que tomamos pelos nossos soldados, não passou despercebido ao Comando do Hospital. Nós cumpríramos, apenas, um dever não só como oficiais, mas como brasileiros. Conversando com eles, animando-os, contribuímos para a disciplina na hora dos exames médicos e no cumprimento do silêncio noturno. O comandante americano teve conhecimento desses fatos e quando íamos partir, veio pessoalmente despedir-se de nós e dizer que tinha apreciado muito a nossa colaboração. Confesso que fiquei satisfeito. Até aquele momento nos acostumáramos a ouvir somente arengas e recriminações. A começar do dia em que fui tirar a carteira de identidade para embarcar do Brasil. Desde que chegara ao quartel brasileiro, não tive mais tempo para nada: redigir telegramas, ofícios, receber tropas, fazer isto e apanhar o material na intendência, etc. Dormia no quartel. (Lembro-me que pulverizei o quarto, lençóis, colchões com tanto inseticida que tudo ficou branco! Quando eu me virava na cama, subia uma nuvem de pó!...) Os poucos momentos de folga, tão rápidos, mal davam para liquidar os meus negócios, em que estavam em jogo interesses alheios. Quando cheguei ao Quartel-General para apanhar a minha carteira de identidade e disse que tinha urgência, pois poderia embarcar a qualquer momento, o oficial superior, irritadíssimo, perguntou-me:
- Por que não veio antes?
Expliquei-lhe tudo.
- Negócios particulares, não é? Pois saiba: - a Pátria está acima de tudo! Primeiro a Pátria! E se remexeu nervoso na cadeira. Fiz um exame de consciência para saber se, abandonando as minhas comodidades, os meus interesses, para ir lutar no outro lado do mar, não estaria servindo à Pátria. Deus seja louvado! Se aquele oficial tivesse uma causa em minhas mãos, grande parte do seu patrimônio em jogo e eu saísse daqui sem entregá-la a outro advogado de confiança, sem explicar toda a marcha do feito e os estudos já concluídos, ele haveria de me chamar irresponsável. Mas, pimenta na boca dos outros é refresco...
Voltando, porém, ao hospital. Ao lá chegar, tinha levado na minha bolsa de lona (o “saco B”) o que havia de mais importante, com o justo receio de que me “desapertassem”. Na entrada, porém, os americanos tomaram tudo para guardar e desinfetar. Até a farda que levava tive que entregar. Fiquei só de pijamas. Recebi um robe de chambre, por sinal muito bom, escova de dentes, sabonetes, etc. Verifiquei, posteriormente, que o sistema era aquele. Achei graça em ver os nossos pracinhas e todos os doentes, metidos naquele “peça” com ares de grã-fino!...
E quando chegou o dia de deixar o hospital, pois não é que as minhas coisas estavam lá, todinhas!? Em compensação, quando terminou a guerra, o intendente me entregou o mesmo “saco B” e mais outro, abertos. Explicou-me que o “fecho eclair” não prestava e se abrira. O fato é que as melhores peças não estavam mais. Enfim, o saco estava muito apertado e por isso resolveram o problema desapertando-o...
d) A vida na linha de frente.
Antes de abandonarmos o hospital, o Capitão-Médico americano nos explicou que não deveríamos pegar em peso, nem subir ladeiras durante alguns dias, devido a certas conseqüências que a caxumba pode ocasionar no homem. Não sabia disto. Pois bem: mal chegamos de volta ao Depósito do Pessoal, de péssima lembrança, tivemos ordem de seguir para a frente. Nós não havíamos feito nem estágio para 2o Tenente nem curso de espécie alguma. Entretanto, no Depósito estavam perto de 200 oficiais. Eu desconhecia por completo o armamento americano, nem sabia desmontar as suas metralhadoras, pois estudáramos sempre a Hotchkiss (francesa) e a Madsen (dinamarquesa). Confesso que fiquei preocupado, não pela minha morte, mas pela vida dos que ia comandar e pelo êxito da missão que me fosse destinada. Eu sempre imaginei um oficial apto a fazer qualquer coisa melhor do que qualquer dos seus soldados. Assaltavam-me a dúvida. Enfraquecido como estava, seria capaz de impulsionar o meu pelotão na escalada de uma montanha acima? Nem um relógio eu possuía. O meu, na véspera do embarque, arrebentara-se no assalto da multidão num trem da Central. Na Itália, embora me dissessem que os americanos haviam fornecido relógios automáticos, não os encontrei. Ainda tentei comprar no comércio italiano, porém custava, um relógio qualquer, cerca de vinte mil liras, ou sejam quatro mil cruzeiros. Caro de mais para minhas posses, na ocasião.
Mas, outra surpresa me aguardava. O front é o front. Ali os homens tornam-me mais simples, mais objetivos, mais amigos, mais solidários. O “farol” está na retaguarda. Até nas roupas. O lugar do infante é na frente.
Por toda parte, o Exército americano era dinâmico e uniforme. Máquinas poderosas deslocavam massas de terra para aterro ou para consertos de estradas. Até locomotivas eles levaram. Caminhões e mais caminhões passavam pelas autovias. Enormes autos-reboques, transportando carros de combate e mais carros de combate. Pontes montáveis, gigantescas, atravessando os rios sobre barcos de borracha. Aviões roncando nos céus. Gasolina como água. Vi, certa vez, jogarem-se barris e barris de petróleo numa estrada carroçável, para baixar a poeira. Munição era de dar com o pé!
Fiquei a pensar em tudo isto, nas padarias e lavandarias de campanha, no conforto geral, na abundância, nos serviços de comunicações, desde o homem subindo como um gato em árvores, com garras nos calcanhares, até o fio se desenrolando pela margem da estrada, vindo de um caminhão em disparada; desde o rádio transmissor da unidade até o rádio de mão do tenente; nas fitas brancas espalhadas no chão balizando os locais minados e em muitas e muitas outras coisas... Em todo este progresso da técnica de uma nação, dos civis laboriosos, emprestado de uma hora para outra ao Exército, capacitando-o a desincumbir-se de sua missão.
Para o soldado brasileiro, aquilo era inédito. Tudo se alterava da noite para o dia. E obrigatoriamente, teriam de discutir e comentar a respeito do que estavam testemunhando. Adaptaram-se de tal sorte, que aquele ambiente parecia rotineiro. Mas às vezes faziam comparações. E como o Exército do Brasil era tão diferente daquele outro Exército ali na Itália, tornava-se necessário delimitar os dois, da mesma forma que se diz hoje – a I Grande Guerra e a II Grande Guerra. Assim, surgiram na vida do soldado, duas épocas distintas na sua vida militar. Eles só diziam: - “No Brasil...” quando desejavam falar de assuntos gerais, na vida de paisano. Desde que se tratasse de fatos, comparações etc, da sua vida militar, então, era preciso esclarecer de que exércitos e tratava. Sim porque o soldado chama comumente de exército, a todo o Exército Nacional, como o marinheiro diz: - a Marinha, etc...
Das comparações dos métodos e de tudo o que eles estavam presenciando, o resultado lógico era a superioridade do presente sobre o passado militar. Ora, não se podia colocar em termos de comparação um exército dotado de todo o progresso técnico de que é capaz a civilização atual, como é a americana, com outro de uma nação atrasada de quase um século. A comparação pecava por si mesma. Mas o pracinha não podia compreender isto. Ele era brasileiro e não americano; estava servindo no “Exército” brasileiro da Itália como servira no “Exército” brasileiro do Brasil. Este, ele ouvira chamar sempre do “O Exército de Caxias”, tão seu conhecido e tão diverso daquele outro, da FEB, que não era mais o mesmo e, o pracinha, ao contar as suas histórias e críticas da vida de quartel, precisava:
- Mas, então, no Exército de Caxias...
- Qual o quê! Com o Exército de Caxias, o tedesco comia a gente!...
O Exército de Caxias, para eles, passou a ser engraçado.
Mas a diferenciação real entre os dois “exércitos” estava na técnica. No poderio de duas nações diferentes. Uma adiantada e outra atrasada. A americana e a brasileira. Na primeira, o homem vale mais do que a máquina e o lema é: - Um homem se faz em vinte anos. Uma máquina em vinte minutos. Estraguem-se as máquinas, mas poupem-se os homens. Na segunda, a máquina vale mais do que o homem e o lema é: - Esta máquina custa os olhos da cara! Poupe-se a máquina! E o homem? Raios que o partam!
A DIFERENCIAÇÃO GEOGRÁFICA.
a) Os brasileiros descobrem a Itália.
A Itália influiu também, na crença do soldado que se julgava em outro exército diferente do que ficara no Brasil.
País milenar, podemos dizer que a Itália se constitui na maior parte de cidades entre campos cuidados, bosques e pomares.
O povo italiano sente de tal forma o peso da História, que me pareceu ver em cada italiano uma personagem de romance em pleno desempenho de seu papel. Afigurou-se-me este um traço divisório entre a cultura latina e a dos anglo-saxões. Estes, sonham menos, representam vivendo, os latinos, mais idealistas, vivem representando.
O italiano, como bom latino, é cioso desse desempenho. Não usa apenas a boca, mas os olhos, os braços, as mãos e até os ombros... Um dia, esperava minha vez de passar numa ponte de aço armada pelos norte-americanos sobre barcos de borracha, ligando as margens de um rio larguíssimo. Como só havia passagem para uma fila de veículos e o local era de difícil manobra, as duas extremidades da ponte estavam ligadas por telefone. Cada um dos guardas comandava o trânsito, informado ao outro a interrupção ou abertura do sinal, no seu lado. Quando cheguei, o telefone estava ocupado por um soldado americano. Tudo ia em perfeita ordem. Dizia duas ou três palavras terminada com o infalível “OK”, e os pesados veículos avançavam ou esperavam que avançassem os do lado oposto, sem a menor alteração. Não sei porque, foi o americano substituído por um italiano, o que deve ter acontecido, também, na outra margem. Começou o barulho: o homem discutia como se estivesse numa arenga política. O abraço direito livre cortava o ar. A mão espalmada fazia circunvoluções, enquanto o queixo comprimia a garganta, a cabeça não tinha para onde virar, os ombros se alteavam em movimentos imprevistos e dentro em pouco foi uma confusão dos diabos na ponte! ...
É, contudo, um grande povo, nascido para o trabalho, para a alegria, para a arte e para as belezas da vida. Em contato com ele, pisando terra estranha, vendo costumes diversos e ouvindo diversa língua, o soldado brasileiro viveu um mundo de histórias e de novidades. Não demorou muito e estava falando, ao seu modo, o italiano, depois de algumas confusões e equívocos provocados por uma ou outra palavra. E, como se fosse um curso prático e intensivo, começaram por onde deveriam começar:
- Buon giorno, Signorina! Como vade, bene?
- Bene, grazie e voi?
- Bene, grazie, dizia o brasileiro, ao que a italiana dava o ponto final, concluindo o dialogo:
- Prego, Signore!
Palavras como esta última eram uma graça! Ora, esta! “Prego”! O expedicionário não podia deixar de associá-la à idéia de martelo. E assim, depois do diálogo acima, quando a italiana terminava com aquele “prego”! muitos responderam: - Martelo! E a italiana, espantada, perguntava com uma entonação bem cantada feminina: - Che cosa?...
Era, destarte, um mundo diverso para a imaginação simples do pracinha. Um ambiente em que até a língua era outra. Ao dominá-la, sentiu-se tomado de um forte bom humor, como se houvesse galgado alguns degraus no caminho de sua personalidade.
Outro aspecto que não deixou de ter grande repercussão no “ego” do combatente, foi o das relações com o sexo oposto, em sentido amplo. No Brasil, a tolerância racial sofre uma forte limitação, quando o elemento de cor é do sexo masculino. Um branco não sente constrangimento em receber um homem de cor em sua casa, desde que seu colega, ou do mesmo nível social. Uma vez, porém, que desta amizade e consideração familiar surja a pretensão amorosa, já aquela acolhida se turva, quando não desaparece.
O desnível social é que acentua o nosso discreto, porém, existente preconceito, que diria não exclusivamente racial, porém, educacional. A prova é que, não somente em relação ao preto, mas, em relação a qualquer outro, mesmo branco, sem instrução ou sem categoria na ordem social, ele existe. Acontece que entre os desfavorecidos, a maior parte é de gente escura, abandonados ao seu destino, após a escravidão.
De qualquer forma jamais chegaríamos à separação racial e isto é um grande bem para nós. Penso que a maior parte dos brasileiros não tem ressentimento em manter relações de amizade com um preto, desde que ele seja uma pessoa educada, de bom comportamento. Dificilmente, porém, veríamos, por exemplo, à chegada de uma tropa numa cidade do interior, as moças da sociedade local irem para um baile dançar com eles. Poderiam festejar-lhes a chegada, atirar-lhes flores, oferecer-lhes doces e bebidas. Jamais entrariam em intimidadas. Soldado, seja branco ou não, era sinal de gente desfavorecida. Se se tratar, então da polícia, ainda pior. É que, no abolido sistema de sorteio militar, poucos eram os jovens educados que iam parar no Exército.
A separação de oficiais e praças no Brasil, não tem relação exclusiva com a disciplina natural de todas as organizações militares do mundo. Nos países atrasados, onde existem massas de analfabetos e gente sem instrução, a separação é acentuada, até mesmo em relação ao conforto.
Entre nós, o “homem do povo” distingue a moça de padrão econômico elevado ou de instrução, em geral pela cor branca ou mesmo morena que sabe vestir-se e fala corretamente o português. Em toda parte, há uma tendência de aproximação entre as pessoas do mesmo nível educacional.
Os expedicionários encontraram nas moças italianas esses atributos aparentes de jovens de sociedade: - brancas, porque não há italiana preta ou mulata; bem vestidas e por vezes elegantes, porque mesmo as provincianas, sabem vestir-se com propriedade e graça. Em falando elas o italiano, a “linguagem correta” perdeu o seu valor distintivo.
Qualquer que seja a razão da boa acolhida dos nossos soldados pelas italianas, seja em alguns casos o interesse, seja a verbosidade e a “bossa” do brasileiro, seja pela atração física, a verdade é que deve ter produzido uma grande influência no ânimo, um crédito na personalidade, aumentando o prestígio da farda da FEB, muito mais valorizada do que a do Exército no Brasil. Antes, eram as empregadas domésticas, acentuadamente mestiças ou gente simples, do comércio ou da indústria, que lhes caíam nos braços nos bailes públicos ou nas praças. Ali, bem ao contrário, eram as brancas legítimas, brancas falando melhor do que eles, que andavam de bicicleta como uma grã-fina brasileira (as lavadeiras iam apanhar as roupas dos soldados, em bicicletas), garotas que iam à ópera e cantavam com desembaraço belas canções napolitanas. Era chique... no Brasil, como soldados, jamais tiveram essas oportunidades.
Recordo-me, agora, de Gibi, aquele pretinho conversador e de sorriso de neve da 9a Cia e que contava as suas aventuras, com a sua namorada loura, a qual muitas vezes dissera entusiasmada:
- Ma che bello nero!
Dir-se-ia que na Itália não existem estas separações de classes. Não tanto, talvez, como no Brasil onde a cor e a instrução são dois obstáculos bem fortes. Mas existe. Demais a nobreza e os seus reflexos separam mais do que a simples situação econômica ou intelectual. Por diversas vezes, ouvi de moças do campo referências admiradas pelo fato de nós, oficiais, passarmos pelo mesmo destino do soldado, partilhando com eles os mesmos momentos, numa camaradagem que me encheu de júbilo e honrou o nosso Exército. É verdade que o contribuíram bastante o perigo comum da guerra e o exemplo norte-americano. Mas, nós somos povos de colonização, entre os quais, principalmente no campo, jamais faltou esta solidariedade nas horas amargas. Os homens, principalmente as crianças, sempre se misturaram. As mulheres, não.
Contaram-me, pois, aquelas camponesas, - que os oficiais italianos não eram como nós. Principalmente os de carreira e mais ainda, os que tinham aproximação nobiliárquica.
De minha parte, não creio num exército cujos oficiais não são capazes de partilhar irmãmente o destino da tropa. Se eles têm, realmente, ascendência de conhecimentos e de caráter, sejam quais forem as circunstâncias, serão sempre respeitados como superiores hierárquicos. Vi numa revista italiana, ao tempo da ocupação alemã, uma informação sobre os brasileiros. Não recordo o nome desta publicação. Sei que dizia à população, no intuito de causar pânico e horror pelos “brasiliani” que os nossos soldados eram pretos e maus, usavam brincos nas orelhas e furtavam mulheres e crianças. Mas esta propaganda foi contraproducente, porque influenciou a eles mesmos, alemães, além de os italianos terem verificado depois a improcedência, a mentira dessas fantasias.
Contou-me uma senhora, se não me engano, em Cruciale, que em sua casa estava um coronel alemão e mais outro oficial observando o desenrolar de um combate. Em certo momento, colocando o binóculo, de fisionomia alterada e pálida, disse o coronel alemão:
- Estão avançando! Aí vêm os “negros” brasileiros! E saiu apressadamente dali.
A chegada dos brasileiros, constituiria o maior desmentido à propaganda mentirosa, pois os expedicionários com aquele temperamento expansivo e amigo, chegavam puxando conversa, falando o italiano, oferecendo caramelos às crianças, cigarros aos homens, conquistando a todos e quebrando todas as reservas...
José X. Góis de Andrade, 1o Tenente da Reserva, Infantaria. Pernambuco, 1916. CPOR do Rio de Janeiro, 1944. Voluntário da FEB, embarcou com o escalão do Recompletamento de Pessoal, indo para o Depósito do Pessoal, e daí, transferido para o 6o RI, 7a Cia, durante o combate de Montese, assumindo, posteriormente, o comando do 3o Pelotão. Medalhas de Campanha e de Guerra. Advogado na vida civil.
1a Parte
DUAS MENTALIDADES.
Quando cheguei à Itália, senti logo que os soldados dividiam em dois o Exército Nacional: referiam-se à FEB como a um “novo Exército”, bem diferente daquele outro Exército que ficara no Brasil e que eles sempre ouviram chamar “Exército de Caxias”.
Esta divisão era mencionada, toda vez que os expedicionários estabeleciam comparação entre os métodos, costumes e princípios adotados no Brasil e os vigentes nos campos de batalha na Frente italiana..
Pretendemos analisar esta distinção, feita, aliás, em tom pouco lisonjeiro para o “Exército de Caxias”, buscando, ao mesmo tempo, uma explicação sincera e imparcial.
Adiantaremos que o Duque de Caxias – Patrono do Exército – não era bem interpretado e compreendido pelo soldado. Por quê? – Uma exaltação sem método psicológico fê-lo um símbolo inatingível. Os símbolos, embora alçados às alturas da glória, não devem perder a natureza humana que se identifica com aqueles a quem servem de paradigma. Do contrário, deixa de ser um símbolo pelo inatingível de suas qualidades, pela impossibilidade material de ser imitado.
Em todos os quartéis brasileiros, Caxias foi apresentado com um exagero tal que o homem comum não pode compreender. Para o soldado simples, cheio de fraquezas e falibilidades humanas, os traços da vida realmente predestinada do Duque de Caxias, aquela perfectibilidade realçada numa exaltação quase mística, tornou-se inimitável, inalcançável como símbolo. Surgiu o oposto do que se desejava obter: - Caxias era uma coisa impossível... Qual foi, então, o resultado? Todos nós o sabemos: para o soldado, “Caxias” é o oficial, o sargento, o praça exagerado, rigoroso em demasia. É o militar que vive com o dedo nos artigos do Regulamento, sem a tolerância da equidade. É o soldado “puxa-saco”, quando devia ser o contrário. Assim muitos dizem:
“Aquele tenente é um sujeito tesa” (isto é, rigoroso)
“Ah! Aquilo é um Caxias!”
Porém, não estará aí, a diferença notada e proclamada pelos pracinhas.
Procuremos, pois, a origem desta diferenciação que se fazia, entre FEB e o Exército Nacional, denominados o “Exército da FEB” e o “Exército de Caxias”.
a) patriarcalismo no exército.
O soldado brasileiro fôra sempre tratado com ares patriarcais. Velho hábito que vem dos primeiros tempos da nossa formação colonial, da escravidão.
Quem já morou no interior brasileiro ou nele nasceu, sabe que o “senhor de engenho”, o fazendeiro, o dono da terra, enfim, é uma espécie de comandante. Sua pose é militar. Sua palavra é um comando. O apelido de “capitão”, “major” e “coronel” substituía e substitui, ainda hoje, com menos freqüência, o nome próprio do senhor da terra. O de coronel, é presentemente, bem comum.
Além de serem esses títulos um substituinte do “doutor”, de tão grata importância – vício do bacharelismo – emprestam ao dono da terra uma ascendência hierárquica, uma posição militarizante. (Esta ocorrência não depende, somente, da antiga Guarda Nacional.)
Recordo-me das histórias que meu pai contava dos “capitães de mato” dos fins do Império, perseguindo os negros fugidos das senzalas. Ainda hoje, no Nordeste pronuncia-se com naturalidade um título militar mais modesto: - “cabo do eito” atribuído a um homem de confiança, que fiscaliza e comanda certo número de trabalhadores que de enxada em punho, avança pelo roçado a dentro, limpando a terra e abrindo as covas do canavial.
A nossa formação, desde a divisão das capitanias hereditárias, a forma de trabalho nos diferentes ciclos econômicos; a imensidão territorial desabitada; o vício escravocrata; as invasões vindas do mar; as penetrações pelas selvas virgens e povoadas de bugres e feras transformaram-nos em um povo de comandantes e comandados em que o cidadão é uma figura inexpressiva, e a liberdade menos um direito do que a tolerância do poder estatal. A nossa “revolução francesa” vem em golfadas de uma “tuberculose” que nem mata nem desaparece...
Cessada a escravidão, o trabalhador abandonado ao seu destino permaneceu tão rude, tão ignorante como o escravo. Manteve-se aquele aspecto militarizante de verdadeiros “Comandos Econômicos” cujo quartel era a “Casa Grande” e o alojamento, a “Senzala”. O dono da terra, comandante, protetor, autoridade e lei. Conservou-se, destarte, a herança do poder que esses senhores adquiriram (principalmente no Nordeste) desde o tempo das invasões e ataques de corsários, quando eles eram os chefes, os comandantes naturais dos habitantes. (Vidal de Negreiros, o lendário comandante da resistência à invasão holandesa no Nordeste, era um “Senhor de Engenho”). Dessas reminiscências ainda existem vestígios capazes de atravessar um século, no avanço da colonização futura dos sertões e florestas brasileiros.
Víamos, portanto, nos quartéis, o encontro dos mesmos elementos humanos de que constituíamos: o filho do “coronel” e os filhos dos trabalhadores, foreiros, agregados, respectivamente como comandante e comandados.
Do Império para cá, a liberdade fez progressos. O padrão de vida das populações em geral melhorou. Os direitos dos homens, mesmo em golfadas, vão se acentuando. Ninguém pode comparar a situação do lavrador e do operário de hoje com a de meio século. E isto não decorre do governo de “A” nem da bondade de “B”. É o fruto das necessidades humanas e o resultado de análises e divulgações de estudiosos. O Chefe do Governo em geral quando decreta estes direitos é quando toma conhecimento deles... É que a humanidade caminha para a frente.
No quartel, ontem como hoje, defronta-se a Nação, tal qual ela é, com os seus vícios, suas virtudes, sua pobreza e seus costumes. E como um reflexo da vida civil, a disciplina nas casernas trazia a marca da disciplina coletiva. O poder do superior hierárquico, semelhante ao poder do senhor de terras. O elemento disciplinador dominante era o medo, o receio do castigo, o estabelecimento, enfim, de um modus vivendi desigual para uns e para outros; e condição de “senhor” e de subordinado com as suas regalias com as suas regalias e desvantagens.
Desta forma expulsamos invasores, construímos um império, mantivemos a unidade nacional, defendemos nossas fronteiras e erguemos cidades imponentes junto ao mar. Essa foi a realização do passado. O presente não conseguiu, ainda, chegar a uma definição. Não logrou a libertação do homem da gleba, nem consolidou as liberdades dos cidadãos na formação de um poderoso Estado Democrático. (E o homem abandona a terra e caminha para o mar num movimento de retorno e se transforma em um problema citadino de desequilíbrio urbano e político.)
Esse patriarcalismo nacional é causa e ao mesmo tempo efeito de uma pobreza. Ocioso seria trazer números e dados (nem o tempo me permite) que comprovassem a miséria coletiva dos nossos patrícios. A maior parte desconhece os elementos mais primários da vida civilizada, como o dentifrício, a escova de dentes, o papel higiênico, a água corrente, instalações verdadeiramente sanitárias. Já se disse que no Brasil nem os ricos sabem comer. A subnutrição e como resultado, as doenças (poder-se-ia dizer também: - e os remédios) oferecem esse quadro de um povo sem compleição física, aéreo, que vive de esperanças. (A esperança no jogo do bicho e na loteria, pode ser um índice de grande insatisfação popular. Da mesma forma a procura do êxito fácil, dos negócios rápidos, efêmeros e rendosos como uma loteria...)
O que poderia ser, então, o Exército Nacional? O Exército brasileiro? Um reflexo de seu povo, sem mais nem menos.
Foi, precisamente, ao vivê-lo e, depois, ao ingressar na Força Expedicionária Brasileira, que o pracinha sentiu as mudanças de ambiente, costumes, princípios e métodos. Mediu-os, comparou-os. E numa síntese, separou de um lado o seu conhecido “Exército de Caxias” e do outro uma fração desse mesmo Exército, que era a FEB, diferenciando-se daquele, como a sua escolhida, a sua preferida, a eleita
Ao tentar uma explicação deste fato, procurei expor as razões desta diferenciação, dentro dos seguintes títulos:
I. Diferenciação técnica.
II. Diferenciação geográfica.
III. Diferenciação disciplinar.
IV. Conclusões.
DIFERENCIAÇÃO TÉCNICA.
a) Padrão brasileiro.
Qualquer exército reflete a vida de uma nação. O Exército Nacional é um centro de atividade, trabalhos, de luta de sofrimentos e decepções.
O homem ao chegar ao quartel é selecionado fisicamente. Mas, em geral, é um cidadão de um povo por se fazer e organizar. Os selecionados fisicamente, em larga percentagem, são analfabetos ou semi-analfabetos. A grande parte vai tomar contato com uma máquina, seu funcionamento, conservação e limpeza, ao empunhar um fuzil ou metralhadora. Vivemos nesta Era Atômica a Era da Enxada, do querosene, dos utensílios de barro (fogão, panelas, etc.). O padrão de vida é baixo. O índice de disciplina social, da educação, é aquém do médio. Não formamos , ainda, mesmo entre as camadas dirigentes, uma compenetrada consciência da Legalidade, isto é, do respeito verdadeiro à lei e seus ditames. O problema legal e moral surge a cada passo nas violências de autoridades na intervenção armada contra Governo legalmente constituído, no “sabe com quem está falando?”, na irresponsabilidade, na linguagem obscena, etc. É mal generalizado. Vivemos de aparências e nos irritamos se o estrangeiro ou um dos nossos comenta ou pretende terminar este sonho vicioso. Enganamos a nós mesmos, porque o estrangeiro sabe o que somos e o povo, ao contar a sua vida, a sua luta, o seu trabalho, em toda parte, reúne um repositório pessimista e deprimente.
Assim, o Exército ao receber o conscrito, tem que moldar antes um cidadão. Isto é um mal para aquele e para este. Para aquele, porque o militar faz do “paisano” uma idéia pouco lisonjeira. Para este, porque o cidadão de nível médio ou superior, ressente-se do Exército, do seu ambiente, da sua capacidade.
A convocação obrigatória, há de melhorar o nível humano do Exército. Entretanto, só o tempo poderá dizer do resultado final. Pois para cada jovem bem educado ou educado no seio da família, existem vários ao léu do seu destino, na promiscuidade das favelas, dos mocambos, das casas de cômodo e dos campos. Este fato já é por si um problema para a nossa educação e um impulso para a indisciplina social dos grandes centros urbanos do país. Demais, o cinema ao apresentar o outro lado da vida norte-americana, o rádio, e certa imprensa, sensacionalizam o crime, a brutalidade os maus princípios divulgando uma ficção de folhetim mórbido, entre um povo que ainda está por se educar.
De qualquer forma, a nação brasileira vai se encontrar nos quartéis mais democraticamente. Embora as Forças Armadas recebam pelos seus ministérios as maiores dotações orçamentárias do Brasil, elas vivem e trabalham num regime de carência e pobreza técnicas e materiais.
A instrução é mais empírica. Lembro-me de que para se tocar numa bússola era uma dificuldade. Para um tiro de morteiro, poucos eram os privilegiados. E assim por diante. Inútil será dizer que só se aprende uma arte ou ciência pela prática. E será preciso sabê-la, dominá-la completamente, de forma a ser exercida com eficiência, mesmo em situações difíceis.
A higiene, a alimentação e a instrução prática, são, por assim dizer, o “calcanhar de Aquiles” do Exército. Nos quartéis, contam-se anedotas que ainda recordo, refletindo estes ângulos. Às vezes são adaptações de outras talvez já publicadas, mas não resisto ao desejo de reproduzi-las:
“O recruta está de sentinela, com o espírito fervendo de instruções regulamentares, quando sente uma estranha coceira. Leva a mão à altura do peito e recolhe o “insubmisso” na ponta do dedo e depois de o examinar, tira o casquete e sentencia militarmente, conduzindo o “insubmisso” outra vez à cabeça:
- Vorta pra teu quarté, desertor!...”
Às vezes, é o praça velha a personagem do anedotário.
“Naquele dia, em que se comemorava uma data nacional, um bom coronel entrou, de surpresa, num rancho de praças e passou a observar a comida. De repente, um soldado, lá no canto, começou a dizer:
- Vixe! Tô cego! Não tô vendo nada!...
- Todos se voltaram para o praça e o coronel, seguido do oficial do rancho, dirigiu-se para ele.
- Que é que tens, soldado?
- Tô cego, meu coroné!
- Você está cego?!
- Eu acho que tô. Porque eu sei que este pão tá mantegoso. Mas eu não vejo, meu coroné! Só posso tá cego!...
Na anedota, o coronel compreendeu a piada e disse para o oficial:
- É preciso aumentar a manteiga no pão!
Com o advento de nova festividade, passados meses, o excelente coronel voltou a visitar o rancho dos praças. E ao chegar ali, dirigindo-se ao oficial perguntou-lhe:
- Onde está aquele soldado gaiato, que disse que estava cego?
O oficial que não se esquecera mais do “praça velho” mencionou logo o seu número, que o coronel “cantou”. Do lado de lá, o “praça velho” respondeu logo:
- Pronto, meu coroné!
- Você ainda está cego, soldado? Perguntou-lhe o coronel com um ar de riso.
- Não senhor, meu coroné. Eu agora, tô inté vendo demais.
E colocando defronte dos olhos a sua fina fatia de queijo, acrescentou:
- Eu tô inté vendo o meu coroné, daqui!?
Nos alojamentos, o parasita é um inimigo intermitente, porém, o que se pode esperar de homens que vêm das favelas, dos mocambos, das casas de cômodos? Quem não sentiu, não uma, porém muitas picadas de pulgas nos cinemas – não digo do Interior – mas da Capital Federal? Por ventura as moscas não aparecem nos melhores restaurantes? Se assim é, por sua vez, o soldado não sente grande escrúpulos em se atirar de borzeguins sobre os cobertores, em momentos oportunos, e até com estes lustrar aqueles.
Que mal há em jogar as pontas do cigarro no pátio do quartel, na privada ou no chão? A prova é que as encontramos nos corredores das repartições públicas e nas áreas e terraços dos edifícios de apartamentos.
O cigarro não é nada. Pior é o escarro...!
O soldado tem justo receio da tampa da privada. Senta-se? Não. Pisa sobre ela. Aliás, contaram-me que na antiga Escola de Guerra (na atual não sei) chama-se a isso, “ação de aeroplano”. Mas o leitor não conhece as privadas da maior parte dos nossos restaurantes? Das nossas repartições? Nunca escutou dizer que há quem se utilize das toalhinhas higiênicas dos lavatórios para brunir os sapatos?
Nos quartéis, os objetos de uso individual devem ser guardados em armários, trancados a chave. O furto é freqüente. Não se deve “dar sopa”, quer dizer, deixar as coisas à vista. O ato de furtar tem no quartel um nome mais tolerável, que é “desapertar”.
Mas eu conheço várias pessoas que se consideram de alta classe e que ostentam em suas casas, a título de curiosidade, coleções de objetos por elas furtados de hotéis, navios, restaurantes, etc...
Em Pernambuco, uma firma de renome nacional organizou uma festa em suas propriedades e convidou centenas de pessoas entre a nata social do país. Aos convivas apresentou o que de mais fino possuía.
Os prejuízos foram vultosos devido aos furtos de objetos domésticos de grande valor.
Se fossemos até à cozinha, em alguns quartéis, não haveríamos de gostar. Carne exposta... moscas... panos sujos... detritos... o diabo!... Também, eu não entro no interior de uma cozinha da maior parte dos restaurantes da cidade. É melhor não ver. Demais, de onde vêm os cozinheiros? A maior parte dos cozinheiros não acredita nem tem tempo para pensar em micróbios. Sujo é aquilo que aparece preto, manchado, escuro. Ora, se o micróbio nem se vê?... Que mal faz? Depois, a comida é feita em grande escala e não há aparelhagem modernas para lavar e esterilizar pratos, etc. E se houvesse, quantos meses funcionariam elas? Para um exemplo, bastam as portas dos elevadores: fecham automaticamente e por isso não devem ser forçadas. Poucos resistem à tentação de não deixá-las vir calmamente. Puxam-nas. E quando elas se relaxam e não fecham o jeito é esperar porque o elevador está parado. Mas ninguém imagina que isto é conseqüência da pressa em favor da qual se violentou a máquina. Pelo contrário, vingam-se do porteiro ou do elevador... É a ignorância que gera a indiferença e o desrespeito na utilização mecânica.
Voltando à higiene para termos uma idéia bem simples, basta lembrar que as marmitas dos soldados (e dos próprios cadetes) em manobra, eram “limpas”, esfregando-se nelas farinha ou areia... Este costume, visto com naturalidade pelos comandantes e médicos, era, com certeza, a causa dos constantes desarranjos intestinais nos acampamentos.
Certa vez, ouvi de um capitão que os desencontros e retardos ocorrentes nas manobras, eram testes para os oficiais e soldados. O bom capitão encontrou uma desculpa singular. Penso, todavia, que a origem era outra. O hábito, a repetição de um ato é que estabelece a prática. Nós somos empíricos, por deficiência técnica. É precisamente por isto que a improvisação nos domina. Cada cabeça, cada sentença; da disciplina social mecânica é que resulta o progresso, o movimento harmonioso, a dinâmica dentro de tal equilíbrio, em que cada um age como uma peça de máquina, sem excessos que superem a sua resistência, sem atritos que o desgastem, sem inércia que prejudique o movimento coletivo.
As deficiências do Exército são os reflexos das deficiências de toda a Nação. A falta de água, de transporte, de provimentos etc., em tempo e horas certas, não pode servir de teste, senão em determinados momentos já estabelecidos como experimento de iniciativa ou resistência física dos comandantes e dos comandados. Entretanto, ante as nossas deficiências naturais, estes testes precisam ser comedidos, porque eles virão por si mesmos na hora H... Se em simples treinamentos as coisas não andam e não chegam, no combate não andarão nem chegarão, porque o combate é por si mesmo a desordem, o imprevisto, a dificuldade. A resistência do homem tem limites, que ultrapassados resultarão em desgastes e no aniquilamento. Poupá-la, economizá-la, esperando sempre um momento posterior em que ela será exigida no máximo. Por isso é que o regulamento chega até às minúcias, do cuidado das meias limpas, das unhas aparadas, do repouso nas marchas, etc.
Lembram-me, agora, aquela noite de frio em uma acampamento na Colina da Torre (frio que em comparação com o da Itália era um grande calor...). Já era tarde e o soldado tentava, inutilmente, conciliar o sono. Não tinha manta para se cobrir. Mesmo naquela casas, entre paredes, ele se queixava:
- Não posso dormir desse jeito! Isto é um horror. Nem uma manta me deram!?
Do outro quarto, uma voz entrou em conversa com o soldado:
- Tá sem manta? Tome uma.
- E você tem?
- Tenho duas. Tome uma.
O praça foi apanhar o cobertor no quarto vizinho e mal-humorado disse:
- Eu logo vi! Uns com tanto e outros sem nada! Esta é boa!
E ficou cinzento, ao acender a luz, quando deu com a cara do Comandante...
b) Padrão americano.
Um dia veio a guerra e nós tivemos que atravessar o Atlântico para lutar pela primeira vez na Europa.
Começamos a aprender, às carreiras, princípios e regulamentos do Exército norte-americano dentro de cujos quadros íamos lutar. Chegou aquele momento em que, já orientados pelo sistema americano, e com uma interrogação nos sentidos, embarcamos em perfeita ordem, em um grande transporte de tropas.
Depois de alguns dias, em alto mar, o pracinha caiu em si. Sentiu no transporte americano, uma profunda diferença. Eles foram encarregados dos trabalhos das cafetarias, desempenhando-se daquele serviço, como se fossem velhos conhecedores do assunto. Tudo saia a tempo e a hora. Tudo limpo e perfeito.
Os alimentos que subiam por elevador do compartimento de baixo, eram completados, divididos e servidos a milhares de homens em levas sucessivas. Aquela “cafetaria” para não fugir à estandardização americana, era um “rancho” naval mais completo, porém, nos moldes do barracão de rancho dos acampamentos, descritos mais adianta: cafetaria e balcão de um lado e do outro as mesas-bancos desmontáveis. Em vez de pratos ou marmitas de campanha, dos soldados, estes recebiam uma bandeja onde estavam moldados recalques destinados aos diferentes alimentos e sobremesa. Essas bandejas eram guardadas de forma que a última ficava rente ao balcão, enquanto as outras – permaneciam abaixo no embutido. Uma mola as impelia para cima, porém qualquer que fosse o seu número, somente a última afloraria à superfície metálica do balcão. Com os recalques, a bandeja valia por vários pratos, com a vantagem de ser um prato único facilmente adaptável como uma peça, à máquina que iria lavar e esterilizar simultaneamente com fortes jatos de água fervente. Estas coisas mencionadas por acaso ao correr do teclado e muitas outras que omitiremos, eram objeto da curiosa observação do nosso pracinha que via em tudo novidades: - ordem, asseio, rapidez, eficiência. Nem lhe faltava a água gelada, em bebedouros, as privadas limpas, o banho, as notícias pelo alto falante, música e cinema.
Viram, dali, surgirem os mingaus, os pudins, os sorvetes, o presunto, ovos, leite evaporado, com vitamina “C”, café... E deviam comer tudo, porque, com exceção dos que trabalhavam, eles só tinham duas refeições. E comiam mesmo, embora de manhã. Um ou outro estranhava aquelas entradas, logo cedo, principalmente o carioca, pois este está acostumado exclusivamente a média (café e pão). Um destes disse:
- Logo de manhã, “seu” tenente? E eu lá sou sabiá pra comer pirão de manhã?
Daí por diante, o pracinha ia ter grandes surpresas. Não só a neve, as terras estranhas, o inimigo e a guerra com as suas asperezas. Não lhe faltaria, porém, o conforto material, que a técnica prodigiosa dos americanos lhe haveria de proporcionar.
Uma das maiores preocupações do Exército americano, refletindo o poderio econômico de seus naturais, era precisamente o cidadão de quem ele recebia não só o corpo e o espírito, mas, os meios, através dos impostos. O estado, como um mal necessário que os cidadãos admitem e sustentam, tributa-lhes, à guisa de compensação, o máximo respeito e devotamento. Ouvi na Itália, que o lema dos americanos era este:
“Um homem só se consegue em vinte anos. Uma máquina em vinte minutos. Estraguem-se as máquinas, poupem-se os homens.”
Assim, tudo o que possa fazer a benefício de seu conforto, o Exército americano idealiza e, principalmente, executa com perfeição. Nem os seus cidadãos, vindos de um padrão de vida superior, admitiam o contrário. Naquele Exército, estavam todos. Generais e altas patentes perderam seus filhos em combate, muitos deles voluntários.
Poderíamos dizer, que esse lema dos norte-americanos sobre os homens e as máquinas, seria, ainda, uma face do seu utilitarismo. Melhor, porém, que admitamos terem eles, mesmo se apoiando no utilitarismo, chegado até o homem, para o proteger, instruir, elevar, respeitar. E esta crença na personalidade do homem e na sua liberdade, fundamentos da sua Constituição, espiritualiza-os. E talvez sejam eles mais espiritualistas do que os que vivem a exaltar o espírito do homem e menoscabar-lhes o corpo e as mesinhas.
Continuemos, entretanto, a penetrar esse mundo de surpresas, nesta parte denominada diferenciação técnica, entre o “Exército de Caxias” e a FEB.
Vejamos, por exemplo, um acampamento americano:
Seria um lugar comum dizer que o trabalho e organização americanos são padronizados. Tudo tem um sentido lógico. Se não existem limpeza e conforto sem água, ela deve aparecer nem que seja transportada em caminhões, o que só ocorria por amor das conveniências da guerra. Eles souberam imitar para melhor os recipientes de couro usados pelos árabes, fabricando-os de lona e armados como uma barraca. (O sertanejo nordestino usava, ou usa também, pequeno recipiente de couro chamado “surrão”.)
Um acampamento americano é um aldeamento que poderia servir de exemplo para nós em matéria de penetração colonizadora. Consideremo-lo uma continuidade de companhias até à unidade: batalhão ou regimento. Os barracões das companhias estão alinhados de acordo com a área digamos, em linha reta. Por trás desse alinhamento, passa uma estrada interna de serviço. Para além, nos fundos desse alinhamento, máquinas trabalharam o terreno, aplainando-o e enchendo de pedras britadas. É o local de reunião de viaturas. Tomemos uma dessas companhias, a começar pelo seu barracão na linha da estrada interna, de trás do acampamento: - este barracão pré-fabricado, tem forma retangular sob o piso de cimento. Tem a armação de madeira. As paredes são de papelão alcatroado e adaptado a uma tela grossa. A cobertura tem duas águas e bem no centro se eleva um chalé com respiradouro telado. As portas são de madeira ou simples armação coberta e possuem molas que as mantêm constantemente fechadas. As trancas são de madeira, em forma de ferrolho. Nas paredes, a quase dois metros de altura, aberturas retangulares e em sentido longitudinal substituem as janelas; são fechadas com tela fina, o que permite a circulação do ar, entrada de luz exterior e proteção contra insetos. O acampamento é iluminado a luz elétrica gerada por um motor a gasolina.
Podemos dividir, internamente, o barracão em duas partes: a primeira, de dois terços ou mais da área, ocupada por mesas-bancos – é o rancho. (Em outras horas é, também, local de trabalho dos oficiais e sargentos da companhia). Na outra parte que se separa da primeira por uma grade-balcão, está cozinha com três fogões a gasolina. A cozinha é servida por uma grande pia com água corrente. (Vi soldados americanos fabricando, no próprio local, uma dessas pias: - elas vem cortadas em uma folha única, porque como simples folhas de metal podem ser facilmente transportadas. No momento em que se quer transformá-las em uma pia, dobram-se as suas extremidades, como se estivesse fazendo uma simples caixinha de papel. As junturas são soldadas a oxigênio. E eis a pia feita...) Na parte extrema da cozinha, comunicando-se com esta por uma porta com fechadura, está a despensa com as suas prateleiras para as provisões.
Na parte externa do barracão, na altura da cozinha, existe um piso cimentado em aclive, com uma bica, onde são lavadas as panelas-gavetas dos fogões e utensílios culinários. Ali mesmo, subterraneamente, está a fossa de gordura, onde se depositam os pequenos detritos arrastados pela lavagem na pia ou no piso em aclive, o que evita o entupimento das manilhas que escoam as águas servidas. Mais adiante, localiza-se a fossa de detritos, destinadas a recolher os restos de comida e as latas de conservas vazias, as quais eram previamente amassadas em um cepo.
Defronte desse barracão da companhia alinham-se, em duas fileiras, as grandes barracas de lona. Estas duas linhas de barracas formam, assim, uma rua central e perpendicular ao barracão, onde os soldados entram em forma para qualquer fim.
Na hora do rancho, por exemplo, toda a companhia, formada na rua central, dirige-se para o barracão, cada praça com a sua marmita e a caneca para o refresco. À proporção que vai entrando, o soldado recebe, no balcão da cozinha, a sua bóia e se dirige para as mesas-bancos. Terminada a refeição, cada um vai lavar a sua marmita. Dirige-se, primeiro, para um tonel ou fossa de detritos onde joga os restos dos alimentos. (Este tonel é logo recolhido.) Dali, o soldado entra outra vez em fila ante os três caldeirões de água fervente, onde concluirá a limpeza das marmitas. O primeiro caldeirão contém uma solução de água e sabão; o segundo, água clorada e o terceiro, água pura. As duas conchas da marmita e os talheres, presos pelos seus orifícios ao cabo-haste de uma das conchas, são mergulhados no primeiro caldeirão e esfregados com uma brocha ou bastão que tem panos presos na extremidade. (Esta brocha ou bastão não é anti-higiênica, porque deve estar sempre submersa na água fervente e não como nós já fazíamos: deixando-a de fora.) Depois de mergulhadas no segundo e terceiro caldeirões, as marmitas saem completamente limpas. Os talheres são colocados dentro das conchas que são fechadas por justaposição. A água dos caldeirões é aquecida por fogareiros a gasolina ou gás contido em tubos. (Jamais víramos tanta gasolina. Os nossos jeeps e caminhões encostavam nos postos americanos e o encarregado logo os enchia. Com ela funcionavam fogões, fogareiros, aquecedores d’água, motores para vários misteres. Quando eu fiquei, praticamente, com a responsabilidade do acampamento, em Francolise, onde estivera o 6o RI, com o Contingente “B”, recolhi, espalhados pelas barracas, e entregue ao capitão que nos veio comandar, para mais de cem camburões de gasolina. Aquela essência de cor avermelhada era como que o sangue de todos os movimentos.)
Esta prática de cada companhia cuidar do rancho, da cozinha e das provisões necessárias à mesma, tem na paz e principalmente na guerra, uma grande importância na alimentação dos soldados. São várias companhias a fiscalizarem o fornecimento. A comida, por ser em menor quantidade, sai melhor. E por fim, o comandante do batalhão pode aferir o grau de capacidade e qualidade dos alimentos, experimentando-os em dias alternados, o que resultará uma concorrência entre as companhias em favor do soldado.
Injustificável era e é a existência de duas alimentações diferentes – uma para os oficiais e outra para os soldados. Se o oficial não come a bóia do praça, como aferir-lhe o gosto e prestabilidade? A alimentação deve ser a mesmíssima.
O soldado brasileiro foi encontrar a novidade da alimentação comum a oficiais e praças, na FEB, ou melhor, com os americanos do norte.
As privadas do acampamento são construídas com o mesmo material dos barracões. As portas, como as destes, conservam-se fechadas por molas de aço. Possuem, também, janelas teladas e arejam e clareiam o seu interior. A privada, propriamente, é um grande e simples caixão com três ou seis lugares e respectivas tampas. O caixão é bem assentado sobre uma profunda fossa. Com o fim de evitar que se molhe o caixão, existe uma calha de papelão alcatroado, junto à parede, que se comunica com a fossa e que serve de mictório. As tábuas são lavadas com água, sabão e esfregadas com escovas que lá se encontram. Diariamente, um pó desodorante é posto na fossa e nas calhas, retirando-lhes todo o mau cheiro. (Este desodorante estava presente, mesmo nos avanços da tropa.) O papel higiênico, em quantidade, era o da melhor espécie, superior ao que se usa comumente no Brasil.
No acampamento há, também, banheiros com água fria e quente para todos. Os chuveiros abrem-se no puxar de uma corrente, de forma que, ao ensaboar-se, o soldado é obrigado a soltar a corrente, o que resulta no fechamento automático da torneira, economizando-se, destarte, a água. O aquecimento é feito por um aquecedor a gasolina, regulável à vontade, enquanto um pequeno motor, posto a funcionar no momento, pressiona a água.
Estes banheiros eram feitos com o mesmo material dos barracões. Seu piso é, também, cimentado, existindo, outrossim, um grande estrado de madeira, bancos laterais, cabides para roupa.
Nos acampamentos não há água estagnada, nem papéis, nem ponta de cigarros. Esta deve ser rompida pelo fumante, que sopra o fumo, e o pequeno papel é transformado entre os dedos numa bolinha tão insignificante que não chega para sujar os pátios.
Nas zonas suspeitas de malária, os soldados recebem mosquiteiros, um líquido para o rosto e mãos, líquido que repele os mosquitos, além de pílulas de atabrina, que deve ser tomada diariamente. Tubos de gás com DDT são encontrados no rancho, nas privadas, nos banheiros e nas barracas. (Cada um desses tubos, dos pequenos, era vendido aqui no Brasil, logo após a guerra, a Cr$ 100,00). Além dessas preocupações há placas avisando: DANGER – MALARIA (Perigo – Malária). Nas caixas de fósforos, no envoltório de certos conteúdos das rações de combate, havia instruções sobre o mosquito como transmissor da malária e os cuidados que devem ser tomados, principalmente ao amanhecer e ao entardecer.
Entretanto, sobre malária, tenho a seguinte recordação: - quando o 6o RI, deixou o acampamento de Francolise como a primeira tropa que regressava ao Brasil, eu fiquei, praticamente, como comandante do Contingente “B” ali deixado à última hora. (Nesta ocasião eu tive a minha maior experiência de comandar e disciplinar uma tropa heterogênea e mal satisfeita, com a responsabilidade de todo um acampamento de regimento cheio de material e invadido pelos italianos, cabendo-me protegê-lo, limpá-lo, sob o maior calor que já senti em minha vida). Verifiquei que ao partir o regimento, os mosquiteiros haviam sido recolhidos e a tropa estava sem proteção contra os mosquitos. Foi uma luta para conseguí-los. Fui eu mesmo buscá-los na intendência e os trouxe sob a minha responsabilidade pessoal, distribuindo-os. Antes de partir, recolhi-os e os devolvi.
Como surgissem mosquitos e houvesse um menor italiano doente de malária num raio de trezentos metros de onde estávamos, tomei as providências que me cabiam, comunicando o fato ao QG. Um dia, apareceu um médico no seu jeep, tomou apontamentos e examinou o menor. Ou porque os italianos pedissem para não levar o menor ou porque não houvesse um lugar para onde levá-lo, após tomar as anotações, o médico retirou-se e o doente lá permaneceu até que nós embarcamos.
No acampamento, existe, ainda, além de serviço telefônico, alto-falantes que transmitem toques de corneta já gravados em discos, noticiários, ou se for oportuno, músicas.
A quantidade e variedade do material são extraordinárias. Duvido que exista no Brasil casa de gêneros alimentícios e outros artigos, que os possua em variedade e qualidade como os provimentos do Exército americano. Principalmente a qualidade causou-me admiração. Tantos os fornecedores do Exército como os responsáveis pela aquisição, são dignos de elogios. Sim, porque provisões de toda a espécie para quase doze milhões de combatentes norte-americanos e outros milhões d aliados, não são nenhum brinquedo.
Tudo era do melhor. E não havia distinção entre oficiais e soldados. Diariamente recebiam estes, um maço de cigarros americanos dos mais finos, “chiclets” , chocolate e fósforos.
Quando nós e nossos pracinhas começamos a receber blusões, field-jacquets, ceroulas compridas de lã, meias, luvas de lã ou couro, etc., deixamos de lado as peças correspondentes que leváramos do Brasil. Que acabamento! Nós havíamos recebido uma espécie de sobretudo de lã, pesadões à chuva e ao frio. Se chovia, encharcavam-se, tornavam-se pesados como chumbo. As conhecidas “japonas”. O field-jacquet, era um blusão bem apertado à cintura, revestido de lã por dentro e impermeável por fora; com um fecho eclair e além deste, botões; as mangas podiam ser abotoadas no pulso tornando-se bem apertadas; a gola protegia bem o pescoço. Eram amplos e leves. Com os pulsos, a cintura e o pescoço bem ajustado. Impermeáveis, prendiam o calor do corpo, aquecendo. Quem teria dúvida em encostar a “japona” para um lado? As costuras das nossas roupas eram fracas. Quem pregou os botões de nossas fardas, há de ter pensado que o infante, ao chegar na Itália, transformar-se-ia numa matrona respeitável em viagem de descanso. E que, ao sentar-se sob os pinheirais, à falta de lã para o tricô, gostaria de pregar botões... Realmente, vi um dia com justificado mal-estar, caírem de uma vez, quatro botões de braguilha. É verdade que nós levamos um estojo de costura com tesoura, agulhas, botões e linha. Mas convenhamos que o infante tem muita coisa com que preocupar-se, para toda a hora viver pregando botões ou costurando os fundos da calça. A intendência deveria examinar as costuras e os botões das peças americanas, bem como a qualidade dos fechos-eclair das malas de lona. Ou os brasileiros são feitos para se abrirem por si mesmos? Assim já é ser muito aperfeiçoado... Nem oito nem oitenta...
Voltemos ao acampamento. A cozinha era bem aparelhada. Desde os utensílios dos mais variados, como facões, facas, machadinhas, abridores de lata, etc., até as mais diversas farinhas, óleos, gorduras, carnes de vários tipos, ovos em pó ou frescos, café, açúcar, feijões (havia uma conserva de feijão e carne enlatados, meat and beans, com que os nossos cozinheiros preparavam uma sopa a que os soldados, aportuguesando o nome chamavam de “mitibina”), presunto, queijo, manteiga, geléias, compotas de pêra e pêssego das mais deliciosas que já experimentei, salada de frutas enlatadas, avelãs, castanhas, nozes, tâmaras, laranjas (até bananas de Tenerife), balas e caramelos, chocolates, amendoim confeitado ou torrado, manteiga de amendoim, leite evaporado com vitamina “C” que era um creme delicioso, farinha de aveias, ou de cereais, sucos de tomate ou de vegetais, refrescos em pó, café enlatado vindo dos Estados Unidos, cervejas em lata, etc. Uma vez ou outra aparecia galinha ao molho pardo, congelada, excelente pitéu. Pelo Natal houve peru. Parecia um desperdício.
Naturalmente, houve oportunidade para os que apreciam esses momentos de fartura. Mesmo que não tivesse chegado para nós tudo que o soldado americano gozava – e muita coisa não tivemos – o soldado brasileiro, acostumado a uma vida de carência e apertos, nem deu pela falta.
Uma senhora brasileira, que estivera nos Estados Unidos durante a guerra, contou-me que tivera a impressão de que os soldados americanos eram umas criancinhas, filhinhos de papai... Isto porque em toda parte era só em que se falava: - caramelos para os soldados, distrações para os soldados, isto para os soldados, aquilo para os soldados.
Ela nem sabe com que conforto eles lutaram e como souberam lutar. Os sacos de dormir, as peles para o frio, os fields-jacquets, os blusões, os calçados, as galochas de neve, os campos de descanso, os teatros e cinemas, estes exibindo em primeira mão, filmes novíssimos; o alicate de unha, os fogareiros de campanha, os aquecedores, sabonetes, pentes, lâminas de barbear, cremes... As cantinas de retaguarda, vendendo tudo pelo preço de custo. Os hotéis com flores e música. Os campos de descanso onde o soldado entregava as suas vestes sujas e recebia outras limpas. E isto, indistintamente para oficiais e soldados, pretos, brancos e amarelos. Era sempre o mesmo lema:
- Estraguem-se as máquinas, poupem-se os homens!
Mas o povo e Governo americanos estavam certos. Aquele, pagou duros impostos, trabalhou dobrado, sofreu de verdade o racionamento, mas sabia que os filhos e filhas espalhados pelas cinco partes do mundo, eram bem tratados. Naqueles suprimentos, naqueles caramelos, naquelas tâmaras e doces, no peru do Natal, estavam o afeto materno da Nação ansiosa pela sorte do sangue do seu sangue. E por melhor que seja, a guerra é sempre a guerra. Não há conforto que possa suprir a perspectiva da morte a cada passo.
Não falo da guerra, da luta, dos avanços e dos abrigos dentro da neve, do frio cortante entrevando os membros (muitos perderam as pernas congeladas, nos chamados “ pés de trincheira”), das rajadas das metralhadoras, do tossir trágico dos morteiros, das arrancadas montanha acima sob o espoucar das granadas, da mina invisível e traiçoeira, pronta a explodir no apanhar de uma arma inimiga, no abrir de uma porta, no simples caminhar!...
Pode ser dito que tudo isto é um simples dever do cidadão. Direi, porém, que há ocasiões em que o dever é tão difícil de ser cumprido, tão doloroso e cruel, que não poderemos deixar de ver com respeito aqueles que o cumpriram. Aqueles que deixaram as suas cidades, os seus negócios, e interesses, a sua família e as comodidades da civilização, o que só podemos apreciar, realmente, quando bem longe delas.
Depois, não há dever mais terrível do que enfrentar a morte! Não se trata, porém, da morte certa, determinada, rápida, com despedidas e últimas vontades de quem praticou um crime, ou de quem, sem forças, sem saúde, não tem outro remédio. Refiro-me aos que, cheios de vigor, em geral escolhidos dentre os melhores e mais saudáveis, os mais fortes e cheios de vida – vão enfrentar a morte sem hora marcada, durante horas, dias, meses, que são eternidades!
Razão teve o povo dos Estados Unidos. Corretamente agiu o seu Governo. As altas patentes do Exército cumpriram à risca a vontade ambos. Sim porque é de admirar que em tão descomunais fornecimentos de provisões e materiais, tivesse havido tamanha honestidade na fiscalização e as indústrias fornecessem precisamente o melhor, o mais perfeito de suas produções.
O povo dos Estados Unidos esteva à altura do valor dos seus filhos. Vale a pena lutar por quem é capaz de compreender o preço de tamanho sacrifício.
É preciso que se diga, que todos esses alimentos eram exclusivamente americanos. Seria desnecessário dizê-lo. Entretanto, é bom esclarecer este ponto, porque a grande falta de tudo existente no Brasil durante a guerra, era justificada muitas vezes com a FEB...
Para se dizer a verdade, dos próprios presentes que famílias e organizações de senhoras patrióticas nos enviavam poucos chegavam ao seu destino. O cigarro brasileiro eu o vi no fim de tudo, após o desaparecimento inexplicável dos cigarros americanos. Mas a tropa recusou os nossos cigarros e tempos depois, tornaram a aparecer os de fabricação americana. (Quando isto ocorreu, surgiram boatos de quadros italianos eram comprados com cigarros... Um maço de cigarro americano era vendido à população por quatrocentas liras.)
c) Contato com o Hospital americano.
Esse cuidado do americano com o homem eu fui encontrar em outro setor: - o Hospital. Fui para um isolamento onde encontrei perto de cem soldados brasileiros. O comandante americano mandou e num instante foi improvisado dentro da própria sala um compartimento que passou a ser um quarto meu e de outro oficial. Diariamente colocava-se ali um rádio para nós e que só era retirado à noite. Pude apreciar a ordem, a limpeza e principalmente o trabalho metódico, sem exibições, sóbrio e disciplinado das enfermeiras americanas (duas tenentes), dois ou três sargentos comandados por elas e o capitão que fazia as visitas médicas todo dia. Diariamente às mesmas horas, os mesmos serviços eram feitos com exatidão. Desde a limpeza da sala, o forrar das camas, a observação dos doentes, até à alimentação. Reunidos ali estávamos pretos e brancos. Entretanto, apesar da separação racial do Exército americano, aquelas enfermeiras tratavam os nossos soldados de cor com uma dedicação de irmã de caridade. E quando um soldado daqueles deixava de alimentar-se, por fastio absoluto, elas já tinham anotado e, no dia seguinte, ele tomaria soro na veia. Fiquei, certa vez, a contemplar uma delas aplicando massagem em um nosso soldado preto e considerei como elas levavam a sério a sua missão desinteressada e extraordinária de enfermeira.
Quando eu e o aspirante Hilto chegamos lá, esses soldados estavam entregues a si mesmos. Ninguém falava português. Se bem que houvesse enfermeiras brasileiras ali, naquele hospital, ninguém foi lá.
Eu próprio senti a diferença enorme. Passei nesse hospital uns seis dias, por ter contraído caxumba. Mas as enfermeiras americanas notaram logo que eu estava com uma forte bronquite, resultante de um banho que, de quente se tornara gelado, ainda em Nápoles. Muitos camaradas que não passaram por esta, contraíram pneumonia. Eu apanhei somente uma violenta gripe e fiquei penalizado dos outros. A filosofia chinesa, ensina todavia, que não sabemos quando um bem é um bem ou um mal um mal... Pois os que tiveram pneumonia, tratados a penicilina, restabeleceram-se imediatamente, sendo encaminhados à famosa estação de Monte Catine, e voltaram de lá gordos e com a pela luzidia. O fastio, a tosse e por vezes a febre me arrasavam...
Entretanto um médico brasileiro (deve ter sido uma dessas infelizes exceções), gordo e balofo era indiferente à minha tosse à minha febre. Dizia que não era nada e me dava umas pílulas de codeína... Se me tratava assim, como trataria os soldados? Jamais tive tamanha repugnância por um semelhante.
Quando senti a dor num lado do rosto e fui me queixar ao sargento enfermeiro de que a tosse estava me arrebentando um ouvido, o sargento disse logo: - É caxumba, tenente! Pensei que fosse o complemento da desgraça. Em cima de queda, coice! Mas foi a minha felicidade... Naquele dia, quando ia apresentar-me atrasado, por ter ido consultar o enfermeiro, o coronel estava medonho, pregando no momento, um sermão aos oficiais. Quando viu que chegava, parou e veio furioso. Eu seria o bode expiatório. Mas quando lhe comuniquei que estava com caxumba, ele recuou e disse: - Vá embora, por favor! Fique na barraca! Fique na barraca! Já havia mais de cem. Ele temia o contágio de todos. No dia seguinte eu estava no hospital... Ao notarem a minha tosse, as enfermeiras americanas tomaram conta de mim. Fui visitado e examinado cuidadosamente por um médico, também americano. Tomavam a minha temperatura três vezes por dia e em horas certas davam-me remédio. Aqueles seis dias entre os americanos foram a minha salvação. Que diferença!
Uma das enfermeiras fez questão de aprender várias frases portuguesas a fim de ser compreendida pelos nossos soldados: - Já arrumou sua cama? Está melhor? Etc. O “arrumou”, por mais que eu fizesse, era como se fosse escrito com um “r” só... E veio contar-me satisfeitíssima, que os soldados estavam entendendo o “seu” português...
De outra feita, ficamos malucos para saber o que elas queriam de nós. Andavam às voltas com um pracinha nosso. No meu pobríssimo inglês, compreendi que elas desejavam que ele fosse imediatamente a um lugar naquele mesmo momento. Elas não podiam sair dali. Entendi tudo, menos o lugar. Só depois vim a saber que era o Raio X, que em inglês dito invertido me parecia uma palavra estranha.
Todo o interesse que tomamos pelos nossos soldados, não passou despercebido ao Comando do Hospital. Nós cumpríramos, apenas, um dever não só como oficiais, mas como brasileiros. Conversando com eles, animando-os, contribuímos para a disciplina na hora dos exames médicos e no cumprimento do silêncio noturno. O comandante americano teve conhecimento desses fatos e quando íamos partir, veio pessoalmente despedir-se de nós e dizer que tinha apreciado muito a nossa colaboração. Confesso que fiquei satisfeito. Até aquele momento nos acostumáramos a ouvir somente arengas e recriminações. A começar do dia em que fui tirar a carteira de identidade para embarcar do Brasil. Desde que chegara ao quartel brasileiro, não tive mais tempo para nada: redigir telegramas, ofícios, receber tropas, fazer isto e apanhar o material na intendência, etc. Dormia no quartel. (Lembro-me que pulverizei o quarto, lençóis, colchões com tanto inseticida que tudo ficou branco! Quando eu me virava na cama, subia uma nuvem de pó!...) Os poucos momentos de folga, tão rápidos, mal davam para liquidar os meus negócios, em que estavam em jogo interesses alheios. Quando cheguei ao Quartel-General para apanhar a minha carteira de identidade e disse que tinha urgência, pois poderia embarcar a qualquer momento, o oficial superior, irritadíssimo, perguntou-me:
- Por que não veio antes?
Expliquei-lhe tudo.
- Negócios particulares, não é? Pois saiba: - a Pátria está acima de tudo! Primeiro a Pátria! E se remexeu nervoso na cadeira. Fiz um exame de consciência para saber se, abandonando as minhas comodidades, os meus interesses, para ir lutar no outro lado do mar, não estaria servindo à Pátria. Deus seja louvado! Se aquele oficial tivesse uma causa em minhas mãos, grande parte do seu patrimônio em jogo e eu saísse daqui sem entregá-la a outro advogado de confiança, sem explicar toda a marcha do feito e os estudos já concluídos, ele haveria de me chamar irresponsável. Mas, pimenta na boca dos outros é refresco...
Voltando, porém, ao hospital. Ao lá chegar, tinha levado na minha bolsa de lona (o “saco B”) o que havia de mais importante, com o justo receio de que me “desapertassem”. Na entrada, porém, os americanos tomaram tudo para guardar e desinfetar. Até a farda que levava tive que entregar. Fiquei só de pijamas. Recebi um robe de chambre, por sinal muito bom, escova de dentes, sabonetes, etc. Verifiquei, posteriormente, que o sistema era aquele. Achei graça em ver os nossos pracinhas e todos os doentes, metidos naquele “peça” com ares de grã-fino!...
E quando chegou o dia de deixar o hospital, pois não é que as minhas coisas estavam lá, todinhas!? Em compensação, quando terminou a guerra, o intendente me entregou o mesmo “saco B” e mais outro, abertos. Explicou-me que o “fecho eclair” não prestava e se abrira. O fato é que as melhores peças não estavam mais. Enfim, o saco estava muito apertado e por isso resolveram o problema desapertando-o...
d) A vida na linha de frente.
Antes de abandonarmos o hospital, o Capitão-Médico americano nos explicou que não deveríamos pegar em peso, nem subir ladeiras durante alguns dias, devido a certas conseqüências que a caxumba pode ocasionar no homem. Não sabia disto. Pois bem: mal chegamos de volta ao Depósito do Pessoal, de péssima lembrança, tivemos ordem de seguir para a frente. Nós não havíamos feito nem estágio para 2o Tenente nem curso de espécie alguma. Entretanto, no Depósito estavam perto de 200 oficiais. Eu desconhecia por completo o armamento americano, nem sabia desmontar as suas metralhadoras, pois estudáramos sempre a Hotchkiss (francesa) e a Madsen (dinamarquesa). Confesso que fiquei preocupado, não pela minha morte, mas pela vida dos que ia comandar e pelo êxito da missão que me fosse destinada. Eu sempre imaginei um oficial apto a fazer qualquer coisa melhor do que qualquer dos seus soldados. Assaltavam-me a dúvida. Enfraquecido como estava, seria capaz de impulsionar o meu pelotão na escalada de uma montanha acima? Nem um relógio eu possuía. O meu, na véspera do embarque, arrebentara-se no assalto da multidão num trem da Central. Na Itália, embora me dissessem que os americanos haviam fornecido relógios automáticos, não os encontrei. Ainda tentei comprar no comércio italiano, porém custava, um relógio qualquer, cerca de vinte mil liras, ou sejam quatro mil cruzeiros. Caro de mais para minhas posses, na ocasião.
Mas, outra surpresa me aguardava. O front é o front. Ali os homens tornam-me mais simples, mais objetivos, mais amigos, mais solidários. O “farol” está na retaguarda. Até nas roupas. O lugar do infante é na frente.
Por toda parte, o Exército americano era dinâmico e uniforme. Máquinas poderosas deslocavam massas de terra para aterro ou para consertos de estradas. Até locomotivas eles levaram. Caminhões e mais caminhões passavam pelas autovias. Enormes autos-reboques, transportando carros de combate e mais carros de combate. Pontes montáveis, gigantescas, atravessando os rios sobre barcos de borracha. Aviões roncando nos céus. Gasolina como água. Vi, certa vez, jogarem-se barris e barris de petróleo numa estrada carroçável, para baixar a poeira. Munição era de dar com o pé!
Fiquei a pensar em tudo isto, nas padarias e lavandarias de campanha, no conforto geral, na abundância, nos serviços de comunicações, desde o homem subindo como um gato em árvores, com garras nos calcanhares, até o fio se desenrolando pela margem da estrada, vindo de um caminhão em disparada; desde o rádio transmissor da unidade até o rádio de mão do tenente; nas fitas brancas espalhadas no chão balizando os locais minados e em muitas e muitas outras coisas... Em todo este progresso da técnica de uma nação, dos civis laboriosos, emprestado de uma hora para outra ao Exército, capacitando-o a desincumbir-se de sua missão.
Para o soldado brasileiro, aquilo era inédito. Tudo se alterava da noite para o dia. E obrigatoriamente, teriam de discutir e comentar a respeito do que estavam testemunhando. Adaptaram-se de tal sorte, que aquele ambiente parecia rotineiro. Mas às vezes faziam comparações. E como o Exército do Brasil era tão diferente daquele outro Exército ali na Itália, tornava-se necessário delimitar os dois, da mesma forma que se diz hoje – a I Grande Guerra e a II Grande Guerra. Assim, surgiram na vida do soldado, duas épocas distintas na sua vida militar. Eles só diziam: - “No Brasil...” quando desejavam falar de assuntos gerais, na vida de paisano. Desde que se tratasse de fatos, comparações etc, da sua vida militar, então, era preciso esclarecer de que exércitos e tratava. Sim porque o soldado chama comumente de exército, a todo o Exército Nacional, como o marinheiro diz: - a Marinha, etc...
Das comparações dos métodos e de tudo o que eles estavam presenciando, o resultado lógico era a superioridade do presente sobre o passado militar. Ora, não se podia colocar em termos de comparação um exército dotado de todo o progresso técnico de que é capaz a civilização atual, como é a americana, com outro de uma nação atrasada de quase um século. A comparação pecava por si mesma. Mas o pracinha não podia compreender isto. Ele era brasileiro e não americano; estava servindo no “Exército” brasileiro da Itália como servira no “Exército” brasileiro do Brasil. Este, ele ouvira chamar sempre do “O Exército de Caxias”, tão seu conhecido e tão diverso daquele outro, da FEB, que não era mais o mesmo e, o pracinha, ao contar as suas histórias e críticas da vida de quartel, precisava:
- Mas, então, no Exército de Caxias...
- Qual o quê! Com o Exército de Caxias, o tedesco comia a gente!...
O Exército de Caxias, para eles, passou a ser engraçado.
Mas a diferenciação real entre os dois “exércitos” estava na técnica. No poderio de duas nações diferentes. Uma adiantada e outra atrasada. A americana e a brasileira. Na primeira, o homem vale mais do que a máquina e o lema é: - Um homem se faz em vinte anos. Uma máquina em vinte minutos. Estraguem-se as máquinas, mas poupem-se os homens. Na segunda, a máquina vale mais do que o homem e o lema é: - Esta máquina custa os olhos da cara! Poupe-se a máquina! E o homem? Raios que o partam!
A DIFERENCIAÇÃO GEOGRÁFICA.
a) Os brasileiros descobrem a Itália.
A Itália influiu também, na crença do soldado que se julgava em outro exército diferente do que ficara no Brasil.
País milenar, podemos dizer que a Itália se constitui na maior parte de cidades entre campos cuidados, bosques e pomares.
O povo italiano sente de tal forma o peso da História, que me pareceu ver em cada italiano uma personagem de romance em pleno desempenho de seu papel. Afigurou-se-me este um traço divisório entre a cultura latina e a dos anglo-saxões. Estes, sonham menos, representam vivendo, os latinos, mais idealistas, vivem representando.
O italiano, como bom latino, é cioso desse desempenho. Não usa apenas a boca, mas os olhos, os braços, as mãos e até os ombros... Um dia, esperava minha vez de passar numa ponte de aço armada pelos norte-americanos sobre barcos de borracha, ligando as margens de um rio larguíssimo. Como só havia passagem para uma fila de veículos e o local era de difícil manobra, as duas extremidades da ponte estavam ligadas por telefone. Cada um dos guardas comandava o trânsito, informado ao outro a interrupção ou abertura do sinal, no seu lado. Quando cheguei, o telefone estava ocupado por um soldado americano. Tudo ia em perfeita ordem. Dizia duas ou três palavras terminada com o infalível “OK”, e os pesados veículos avançavam ou esperavam que avançassem os do lado oposto, sem a menor alteração. Não sei porque, foi o americano substituído por um italiano, o que deve ter acontecido, também, na outra margem. Começou o barulho: o homem discutia como se estivesse numa arenga política. O abraço direito livre cortava o ar. A mão espalmada fazia circunvoluções, enquanto o queixo comprimia a garganta, a cabeça não tinha para onde virar, os ombros se alteavam em movimentos imprevistos e dentro em pouco foi uma confusão dos diabos na ponte! ...
É, contudo, um grande povo, nascido para o trabalho, para a alegria, para a arte e para as belezas da vida. Em contato com ele, pisando terra estranha, vendo costumes diversos e ouvindo diversa língua, o soldado brasileiro viveu um mundo de histórias e de novidades. Não demorou muito e estava falando, ao seu modo, o italiano, depois de algumas confusões e equívocos provocados por uma ou outra palavra. E, como se fosse um curso prático e intensivo, começaram por onde deveriam começar:
- Buon giorno, Signorina! Como vade, bene?
- Bene, grazie e voi?
- Bene, grazie, dizia o brasileiro, ao que a italiana dava o ponto final, concluindo o dialogo:
- Prego, Signore!
Palavras como esta última eram uma graça! Ora, esta! “Prego”! O expedicionário não podia deixar de associá-la à idéia de martelo. E assim, depois do diálogo acima, quando a italiana terminava com aquele “prego”! muitos responderam: - Martelo! E a italiana, espantada, perguntava com uma entonação bem cantada feminina: - Che cosa?...
Era, destarte, um mundo diverso para a imaginação simples do pracinha. Um ambiente em que até a língua era outra. Ao dominá-la, sentiu-se tomado de um forte bom humor, como se houvesse galgado alguns degraus no caminho de sua personalidade.
Outro aspecto que não deixou de ter grande repercussão no “ego” do combatente, foi o das relações com o sexo oposto, em sentido amplo. No Brasil, a tolerância racial sofre uma forte limitação, quando o elemento de cor é do sexo masculino. Um branco não sente constrangimento em receber um homem de cor em sua casa, desde que seu colega, ou do mesmo nível social. Uma vez, porém, que desta amizade e consideração familiar surja a pretensão amorosa, já aquela acolhida se turva, quando não desaparece.
O desnível social é que acentua o nosso discreto, porém, existente preconceito, que diria não exclusivamente racial, porém, educacional. A prova é que, não somente em relação ao preto, mas, em relação a qualquer outro, mesmo branco, sem instrução ou sem categoria na ordem social, ele existe. Acontece que entre os desfavorecidos, a maior parte é de gente escura, abandonados ao seu destino, após a escravidão.
De qualquer forma jamais chegaríamos à separação racial e isto é um grande bem para nós. Penso que a maior parte dos brasileiros não tem ressentimento em manter relações de amizade com um preto, desde que ele seja uma pessoa educada, de bom comportamento. Dificilmente, porém, veríamos, por exemplo, à chegada de uma tropa numa cidade do interior, as moças da sociedade local irem para um baile dançar com eles. Poderiam festejar-lhes a chegada, atirar-lhes flores, oferecer-lhes doces e bebidas. Jamais entrariam em intimidadas. Soldado, seja branco ou não, era sinal de gente desfavorecida. Se se tratar, então da polícia, ainda pior. É que, no abolido sistema de sorteio militar, poucos eram os jovens educados que iam parar no Exército.
A separação de oficiais e praças no Brasil, não tem relação exclusiva com a disciplina natural de todas as organizações militares do mundo. Nos países atrasados, onde existem massas de analfabetos e gente sem instrução, a separação é acentuada, até mesmo em relação ao conforto.
Entre nós, o “homem do povo” distingue a moça de padrão econômico elevado ou de instrução, em geral pela cor branca ou mesmo morena que sabe vestir-se e fala corretamente o português. Em toda parte, há uma tendência de aproximação entre as pessoas do mesmo nível educacional.
Os expedicionários encontraram nas moças italianas esses atributos aparentes de jovens de sociedade: - brancas, porque não há italiana preta ou mulata; bem vestidas e por vezes elegantes, porque mesmo as provincianas, sabem vestir-se com propriedade e graça. Em falando elas o italiano, a “linguagem correta” perdeu o seu valor distintivo.
Qualquer que seja a razão da boa acolhida dos nossos soldados pelas italianas, seja em alguns casos o interesse, seja a verbosidade e a “bossa” do brasileiro, seja pela atração física, a verdade é que deve ter produzido uma grande influência no ânimo, um crédito na personalidade, aumentando o prestígio da farda da FEB, muito mais valorizada do que a do Exército no Brasil. Antes, eram as empregadas domésticas, acentuadamente mestiças ou gente simples, do comércio ou da indústria, que lhes caíam nos braços nos bailes públicos ou nas praças. Ali, bem ao contrário, eram as brancas legítimas, brancas falando melhor do que eles, que andavam de bicicleta como uma grã-fina brasileira (as lavadeiras iam apanhar as roupas dos soldados, em bicicletas), garotas que iam à ópera e cantavam com desembaraço belas canções napolitanas. Era chique... no Brasil, como soldados, jamais tiveram essas oportunidades.
Recordo-me, agora, de Gibi, aquele pretinho conversador e de sorriso de neve da 9a Cia e que contava as suas aventuras, com a sua namorada loura, a qual muitas vezes dissera entusiasmada:
- Ma che bello nero!
Dir-se-ia que na Itália não existem estas separações de classes. Não tanto, talvez, como no Brasil onde a cor e a instrução são dois obstáculos bem fortes. Mas existe. Demais a nobreza e os seus reflexos separam mais do que a simples situação econômica ou intelectual. Por diversas vezes, ouvi de moças do campo referências admiradas pelo fato de nós, oficiais, passarmos pelo mesmo destino do soldado, partilhando com eles os mesmos momentos, numa camaradagem que me encheu de júbilo e honrou o nosso Exército. É verdade que o contribuíram bastante o perigo comum da guerra e o exemplo norte-americano. Mas, nós somos povos de colonização, entre os quais, principalmente no campo, jamais faltou esta solidariedade nas horas amargas. Os homens, principalmente as crianças, sempre se misturaram. As mulheres, não.
Contaram-me, pois, aquelas camponesas, - que os oficiais italianos não eram como nós. Principalmente os de carreira e mais ainda, os que tinham aproximação nobiliárquica.
De minha parte, não creio num exército cujos oficiais não são capazes de partilhar irmãmente o destino da tropa. Se eles têm, realmente, ascendência de conhecimentos e de caráter, sejam quais forem as circunstâncias, serão sempre respeitados como superiores hierárquicos. Vi numa revista italiana, ao tempo da ocupação alemã, uma informação sobre os brasileiros. Não recordo o nome desta publicação. Sei que dizia à população, no intuito de causar pânico e horror pelos “brasiliani” que os nossos soldados eram pretos e maus, usavam brincos nas orelhas e furtavam mulheres e crianças. Mas esta propaganda foi contraproducente, porque influenciou a eles mesmos, alemães, além de os italianos terem verificado depois a improcedência, a mentira dessas fantasias.
Contou-me uma senhora, se não me engano, em Cruciale, que em sua casa estava um coronel alemão e mais outro oficial observando o desenrolar de um combate. Em certo momento, colocando o binóculo, de fisionomia alterada e pálida, disse o coronel alemão:
- Estão avançando! Aí vêm os “negros” brasileiros! E saiu apressadamente dali.
A chegada dos brasileiros, constituiria o maior desmentido à propaganda mentirosa, pois os expedicionários com aquele temperamento expansivo e amigo, chegavam puxando conversa, falando o italiano, oferecendo caramelos às crianças, cigarros aos homens, conquistando a todos e quebrando todas as reservas...
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2a PARTE
Paisagem italiana - Permita-me o leitor, que me afaste um pouco do assunto - a Diferenciação Geográfica entre o Exército de Caxias e o da FEB, a fim de lhe mostrar um instantâneo do ambiente onde viveu algum tempo o nosso soldado.
O campo italiano é um pontilhado de casas. Podemos medir suas fazendas com a vista. Aqui está, por exemplo, a casa ainda nova do contadino. De um só, não, de quatro famílias de “contadini”. São quatro residências num bloco só. Em cada uma delas, a sala de visitas é também de jantar e ainda a cozinha. É bem ampla. Tudo está em ordem. Aquela lareira onde as achas ardem, com aquele caldeirão que pende de uma corrente, dá um aspecto agradável e hospitaleiro, que nos convida a sentar e aquecer o corpo. Observe que o fogão é todo de ferro. Ao canto, a mesa está bem posta. O guarda-louças deixa transparecer através dos vidros, que aquele camponês possui até porcelanas. Os utensílios domésticos são de metal. Nesta casa, você não está vendo as bicicletas das filhas deste contadino, porque os alemães as levaram, como levaram também bois, vinho, presuntos. Todos eles se queixavam:
- I tedeschi portarano via tuti! Tuti! Quelli delinquenti!
- Tanto os nossos soldados ouviram recriminações desta ordem, principalmente sobre bicicletas, que fizeram, até, uma modinha mais ou menos assim:
“Dove se trova la machina de Maria?
“Tedeschi portarano via...”.
Não houve tempo de levarem tudo, porque havia muita bicicleta na Itália, meio de transporte muito popular. Além disto, aos que trabalhavam em indústrias ou serviços considerados de utilidade bélica, era entregue um salvo conduto, escrito em italiano e alemão, proibindo o seqüestro da bicicleta, conforme tive ocasião de verificar.
Naquela gaveta, pelos cadernos e livros das filhas do contadino, você verá que elas estudam assuntos práticos. Veja: Lucia e Bianca Maria estudam economia doméstica.
Bem defronte a nós, na mesa da copa, cuja tábua fôra virada, a esposa do contadino já amassou a farinha. Enrolou esta massa como se fosse uma peça de tecido e de faca em punho, com rapidez incrível, está cortando aquele “peça” em fatias de talharim.
Lá fora, algumas galinhas que restam cacarejam. Valem ouro. Os coelhos lembram plumas movediças nos comedouros. No estábulo, cada uma das dez, quinze ou vinte vacas, produz dez, quinze ou até dezoito litros de leite, que são levados pelas ótimas estradas para aquela fábrica de queijos que se avista daqui da janela. No celeiro o feno e a palha estão enfardados. Se o celeiro não comporta toda a palha recolhida eles a arrumam em torno de um madeiral plantado, geralmente, ao lado da casa. E de tal forma é a palha trançada, que se ergue a vários metros de altura à maneira de um cone enorme, fulvo e pitoresco, a imitar a graciosa projeção de pinheiros erguidos aqui e ali. O milho em espiga, já descascado, pende dos varais, preso pela própria casca e ostenta grãos tão lindos que não pensei dessem mais aquelas terras. O tempo é bem aproveitado. O trabalho é metódico. No inverno, o labor no campo desaparece com o advento da neve, mas surgem outros serviços mais domésticos e cuidados com as criações. No verão, para suprir as forças perdidas num dia de trabalho que começa muito cedo e termina muito tarde, os homens fazem à sesta após o almoço. Os campos de cultura são aplainados e recortados de canalículos que, geralmente servem de divisas e são ligados ao canal maior que margina a estrada, prestando-se, assim, ao escoamento e à irrigação. Pequenas portas-d’água são vistas, intercaladas, nestes canaizinhos. Mesmo nas elevações eles aplainaram a terra, cortando-as de tal forma que, de longe parecem enormes degraus. As elevações são protegidas pelos bosques. Há, aliás, ao contrário do que pensei, muitos bosques na Itália e grandes parques de pinheiros que mesmo no inverno se mantém verdes. Vi, também, parques de caça.
O contadino em cuja casa estamos, neste momento, bem como os outros, não cortam a lenha da lareira ou do fogão com o machado. Serram-na. Penso que é para evitar o desperdício de três ou quatro centímetros que o golpe do machado ocasionaria. Tudo ali é aproveitado, até os garranchos. Que amor têm eles pelas coisas, pelas árvores, pelas plantações! Uma vez, depois que os alemães se renderam, saí de bicicleta com uma jovem italiana. Eram nove horas da noite e o sol estava, ainda no poente. Estávamos numa linda planície. A certa altura, páramos para contemplar aquela beleza campestre e eu, ao largar minha bicicleta, deixei-a cair sobre o trigal que avançava até à margem da estrada. A italiana disse-me, então, numa expressão de censura:
- Nè fate cosi!
- Che cosa?, perguntei-lhe.
E ela, com a voz mais doce que já ouvi em tão curta frase, estendeu as mãos como se afagasse o trigal que não lhe pertencia e disse:
- Il grano!!... (O trigo!).
Quando chega a noite, os contadinos se reúnem, limpam, enxugam e guardam carinhosamente suas ferramentas. Depois, sentam-se palradores em volta da mesa ante a sopa, o minestrone suculento e fumegante. Nem sempre há carne. Um dia ou outro um pedaço de coelho da criação. É a guerra. Mas há sempre ovos, legumes, castanhas apanhadas nos bosques. Bastante massa, queijo e vinho puro e bom, ou então com água, porque o vinho deve estar sempre em sua mesa. Muita fruta. (Quando estive em Roma, comprei menos de vinte cruzeiros o quilo, excelentes pêssegos vindos de Nápoles, de tão longe pelas ótimas estradas). Os contadinos, apesar dos pesares, mostram um ótimo físico. Corpo cheio, braços roliços e rijos, índices de boa nutrição. Falam, gesticulam como um bom latino. Adjetivam e doutrinam. Ecco!
Eu que nasci no campo e conheço um bocado este Brasil, fiquei surpreso ante esta mudança geográfica. Era aquela a chamada necessidade dos povos da Europa? Vi, sim, necessitados nas cidades. Deslocados, “rovinati”, “sfollati”. Mas se pensarmos nos homens dos mocambos, das favelas e cortiços não encontraremos termo de comparação. Necessitados somos nós. Ao chegar aqui ouvi risos quando disse isto. Somos verdadeiramente cegos. Poucos acreditaram no que disse. Ora, segundo li em um jornal em Roma, somente 25 a 30% das fábricas italianas foram, realmente, destruídas. Maior número, talvez, parcialmente arruinado. Quase a metade do poderio industrial italiano ficou intacto. Com os reparos nas indústrias em parte atingidas, esta metade pode se aproximar dos dois terços. A riqueza queda-se em potencial nas fábricas e nos campos povoados. E, mas acabava o combate, lá estava o italiano, numa paciência de formiga, cultivando a terra.
Ocorreu um fato comigo, que bem pode comprovar esta perseverança: no deslocamento pelo Vale do Pó, eu estava com o meu pelotão quando esbarrei num terreno, onde os sulcos dos arados eram bem recentes, pois a terra estava ainda úmida. Todos nós receávamos as minas. Os alemães as espalharam em tal número que por muitos anos elas serão responsáveis por acidentes fatais. Tudo o que pudesse chamar a atenção do soldado em avanço, o alemão podia minar: as margens dos parreirais onde as uvas convidassem; os caminhos de fácil penetração e até os cadáveres dos nossos soldados, como aconteceu, segundo me contaram. Colocadas as minas, eram dissimuladas por forma que o terreno não apresentasse vestígios. Se o terreno ante o qual estávamos apresentava sulcos recentes de arado, não devíamos temer. Pensei, porém, em que a dissimulação tem mil formas de realidade. O inimigo em fuga não tem tempo. Quem poderia sabe se eles araram aquelas terras, semeando, depois, as minas e deixando uma impressão de campo recém-cultivado? Fui à casa do contadino, já ocupada, e perguntei:
- Quem trabalhou naquele campo?
- Eu, respondeu o italiano.
Por vias das dúvidas, cortesmente, convidei-o a caminhar na frente. Seguro morreu de velho... Estas preocupações, aliás, nos fizeram, posteriormente, arrebentar um enorme garrafão de vinho, por ter à superfície um pó esbranquiçado. Sabíamos lá se era veneno? Contaram-me, depois, que havíamos perdido um ótimo vinho velho...
Vemos, pois, que mal passada a guerra, a terra ainda marcada pelos borzeguins dos soldados, às vistas quase, dos combates, lá estava o contadino sobre o campo cultivando-o e dele colhendo riquezas.
E eu fico a pensar nos “entendidos” que dizem: “A Europa está uma desgraça. Podemos receber italianos aos milhares e soltá-los como boi em Mato Grosso, por exemplo!” Estão enganados! Eles não agüentariam sem uma boa assistência do Governo ou do particular. A Itália tem uma cultura milenar e oferece, apesar de todas as dificuldades de que foi vítima, um padrão de vida superior ao do nosso trabalhador de eito ou até de muitos fazendeiros do Brasil. Os italianos são um povo que sabe como trabalhar, produzir, como alimentar-se e distrair-se. Atravessando-lhes os campos e a excelentes estradas cimentadas, correm os trens elétricos e a eletricidade ilumina-lhes grande parte das casas do campo. Nestas, de tijolo, simples, porém, de gente civilizada, vemos utensílios domésticos de ferro e alumínio e móveis aceitáveis. Os filhos se educam ali mesmo. Trabalham muito. Não há esperanças de riquezas da noite para o dia. Mas gozam um pouco dos prazeres de um padrão de vida mais desenvolvido. Estão perto uns dos outros, a dois passos das obras de arte, de histórias e tradições do passado.
Não se trata, é óbvio, de superioridade racial, porém, de superioridade de cultura. Mesmo que ela não saiba ler (o que é raro), sabe como semear, como colher, produzir e economizar. Em todos os países de clima temperado, o frio, a necessidade do calçado, do agasalho, do calor, traça o caminho da civilização. Os campos nevados obrigam o homem a cuidar mais da sua casa, a economizar e a prover. O que eles aprenderam pela experiência, pela necessidade secular, pela imposição do clima, nós teremos de fazê-lo pela educação permanente e experimental repetida até constituir um hábito.
Com esta vastidão territorial desabitada, estas terras barbaras, sem preparo, sem trato e sem aplaino, estes métodos empíricos, sem máquinas e sem braços, tão cedo não seremos nada no rol dos povos civilizados. O italiano é um ótimo elemento de colonização, sabem-no todos. E o imigrante é a escola melhor e mais barata, porque ensina aos nossos homens pelo exemplo. Se o desejamos, criem-se os meios de fixá-los à terra. Do contrário, ele abandonará a terra para vender jornais e bilhetes de loteria nas cidades. Na Itália ele é, apenas, contadino, isto é, trabalha para o dono da fazenda, recebendo uma percentagem sobre a produção. Ofereçam-lhe a terra. Digam-lhe a verdade sobre o nosso país. Que eles virão para uma terra ainda virgem mas que será deles e de seus filhos. E os que vierem serão os desbravadores de que carecemos. Trabalhando aqui em terra própria como trabalham lá em terra alheia, encontrarão outra sorte, outras compensações. A Itália já deu o que tinha a dar. É mais a manutenção de um passado de séculos. Enquanto isto, nós somos como aqueles versos de Augusto dos Anjos: “O choro da energia abandonada”, “o cantochão dos dínamos profundos, que podendo mover milhões de mundos, jazem, ainda, na estática do nada” ... Somos a esperança que urge abreviar.
Mas, voltemos à casa do contadino, onde nós estamos, enquanto os “técnicos”, os “entendidos” resolvem estes problemas. Aqui está o quarto de dormir. A cama é boa e forte. Um colchão? Não. Dois ou três, sobrepostos, sendo em alguns casos de penas. Lá no canto o guarda-roupa e a penteadeira. As vezes são simples móveis antigos, bem conservados e apresentáveis. Podemos notar objetos de gente civilizada, roupas de cama de antes da guerra, lã e seda (esta de boa fabricação, pois a Itália produz boa seda).
No verão, mesmo na primavera, ao contrário do inverno, as madrugadas surgem bem cedo, antes das cinco e o crepúsculo é muito mais tarde. Às 9:30 da noite ainda existem vestígios do poente. Era uma coisa que desorientava a nossa idéia do tempo. Após a guerra, quando aquartelados, precisávamos ter cuidado para não perder o jantar, pois às 5 ou 6 horas da tarde o sol estava tão alto que qualquer um de nós julgaria ser três horas da tarde. Se marcássemos um encontro às sete de noite e se não estivéssemos de olho no relógio, seríamos capazes de chegar às dez da noite...
A tarde que se entende, assim, noite a dentro, proporciona aos que saem do trabalho, momentos de folga em plena claridade solar. E pelas estradas que enfeitam de fitas as planícies e as alturas, as bicicletas passam em todos os sentidos. Nas águas dos pequenos canais os patos se aninham serenos e uma vez ou outra mergulham, rápidos e trêmulos, os longos pescoços. Estamos na primavera e os pessegueiros e macieiras, desfolhados pelo inverno que se retira, estão agora completamente cobertos de flores. O campo é um vasto painel policromo onde o azul, o branco e o vermelho casam-se com as manchas verdes do trigal que vai surgindo como grama. Um quadro gigantesco e colorido que a primavera pintou na tela da natureza com molduras de neve das montanhas...
Quando as noites convidam - (e os céus da Itália são tão estrelados!) - poderemos dar um passeio de bicicleta. Não há perigo de poeira. As pistas cimentadas das autovias italianas podem ser percorridas por qualquer engenheiro de país civilizado. Cruzam a península de norte a sul e de leste a oeste. Cruzar é um modo de dizer, pois essas estradas em geral não se cruzam, passam por cima em viadutos que se vão elevando aos poucos. A guerra não as destruiu, senão, em determinados locais. Ambas as partes em luta tinham interesse em conservá-las.
Por elas, portanto, você, leitor, o contadino, suas filhas e eu poderemos passear como se estivéssemos num campo-jardim, atravessando aldeias com suas igrejas seculares de campanário erguido em torres. Por esses vilarejos e cidades que transformam a Itália numa campanha urbana onde a eletricidade brilha nos postes e risca os trilhos dos trens elétricos.
Mas, se você não quiser passear de bicicleta, vá contemplar a quietude, a simplicidade tão humana da cidade mais próxima. Vá ao teatrinho! Pode ser que haja a estréia de uma novo tenor...
b) Fantasia brasileira.
Num ambiente, inédito, cercado pelo conforto do Exército americano, que até chegou para ele, o soldado brasileiro esqueceu-se dos seus tempos do Exército no Brasil e da realidade brasileira e fez uma ótima apresentação das nossas fantasias...
Acentuaram-se os traços de bondade e solidariedade de nossa gente, dos nossos soldados, capazes de gastar até os últimos centavos, as economias do mês só para oferecê-las em lauto almoço a um amigo ou parente recém-chegado.
Os italianos que viviam, mesmo assim, num regime de carências em comparação ao período anterior à guerra, estavam acostumados à campanha de descrédito que os nazi-fascistas fizeram contra os aliados e ainda às requisições de gêneros alimentícios que aqueles faziam constantemente, exigindo sempre mais trigo, mais provisões dos camponeses. Os próprios alemães, embora bem equipados, tomavam-lhes os bois, os cavalos, os gêneros, as bicicletas, etc. Era de esperar, pois, que se espantassem da massa de material e provisões que nós brasileiros arrastávamos com o 5o Exército americano. Caminhões e caminhões, jeeps, rádios transmissores, equipamentos e petrechos de todos os gêneros. O meu pelotão fôra transportado do Vale do Pó, por três caminhões, cada um dos quais, possuía, rodando, dez pneumáticos... E aquela profusão de alimentos? Açúcar, café, sabão, carnes, conservas, doces, chocolates que eles há muito não viam, senão em doses medicinais e a preços astronômicos... E aquelas botinas? Galochões para neve? Aqueles blusões? Mas, quanta gasolina queimando naquelas viaturas nos três fogões e fogareiros de cada companhia, como água! Quanta borracha! Tudo aquilo era um sonho...
- Mamma mia!
- Ecco!
Observei a satisfação dos nossos pracinhas vitoriosos, ao exibirem tudo aquilo como se fosse realmente nosso. Cantaram as riquezas do Brasil. Os nossos rios, florestas, a nossa vastidão geográfica, do tamanho da Europa. Nós tínhamos muito açúcar, muita borracha, muita carne.
- “Sí, in Brasile nè manca niente! C’è tuti, tuti! Molte zucchero, molte mangiare, molte gome, tuti, tuti!”
Os italianos não podiam conter a admiração e exclamavam:
- Per Bacco!
E os nosso pracinhas, num gesto, ao acenderem um cigarro Chesterfield, Camel ou Luck Strike, ofereciam-no ao italiano, que logo o tomava, examinava, cheirava e às vezes o guardava pra depois da ceia. “Si, doppo la cena....” E amaldiçoava a guerra, Mussolini e os alemães, pois antes da guerra, não era assim. “Prima la guerra...”
E enquanto os italianos assistiam com espanto todo aquele aparato de material, os soldados presenteavam as crianças com caramelos e chocolates (carameli per bambini). Os pracinhas e não só eles, porém muito tenente, muito capitão, etc., estavam penalizados com a pobreza, a miséria da Itália. Muitos julgavam-nos até um povo primitivo. Quis chamá-los à realidade, mas já se haviam esquecido do nosso Brasil ou tinham em mente as avenidas asfaltadas das capitais debruçadas no Atlântico...
Aos meus soldados nada disse, porém. Escutava aquele entusiasmo patriótico, como demonstração do moral elevado da tropa. Mas fiquei embaraçado, quando certa vez, um italiano instruído e curioso me perguntou:
- Senhor Tenente, quantas fábricas de automóvel existem no Brasil?
Respondi-lhe que não estava a par desse assunto e mudei de conversa.
Uma verdade terrível empolgou-me a mente: nós não fabricamos nem bicicletas... E achei graça quando um soldado que havia observado o trabalho das mulheres no campo, comentou:
- Aqui, “seu” tenente, as “fêmia” não tem vez! O Senhor não viu? Até as vacas puxam o carro!?
A Itália era como uma grande fazenda organizada, com enormes benfeitorias e oficinas erguidas por inúmeras gerações através dos séculos. Com os seus apartamentos bem arranjados e cheios de obras de arte. Seus campos cultivados, etc. De repente, um rio cresceu e inundou tudo. Os homens não puderam trabalhar. Algumas máquinas foram arrastadas pela correnteza. Alguns móveis, também. A lama chegou até a encher alguns apartamentos. Mas quando as águas baixarem, os homens voltarão ao trabalho e saberão o que têm a fazer. Máquinas e tornos matrizes fabricarão peças e máquinas destruídas. Faltará açúcar, chocolate e provisões por algum tempo. Depois, as coisas surgirão. O mesmo será na Holanda, na Bélgica e na própria Alemanha destruída. E é muito mais fácil fazer isto, muitas vezes mais, em menos tempo do que nascerem homens, criarem-se, crescerem, educarem-se, reproduzirem-se, em número suficiente à conquista deste nosso Brasil imenso, disperso, empírico, sem comunicações, até que ele seja um grande país, uma grande e próspera nação.
A Itália já produziu um “Netunia”, um “Oceania”, seus automóveis e máquinas. Dentro em breve fabricá-los-á outra vez, antes que façamos bicicletas. Um dia produziremos tudo isto e muito mais, desde que sejamos mais práticos, mais objetivos, menos teóricos, menos burocráticos.
c) Os brasileiros voltam a encontrar o Brasil...
Os pracinhas só sentiriam a realidade, quando deixassem as terras da Itália; quando a FEB se desligasse do 5o Exército americano; quando eles voltassem outra vez, para a outra conquista, a do pão de cada dia... Não teriam mais aqueles agasalhos. Não teriam mais aqueles alimentos em quantidade e qualidade tais que mantiveram e até superaram as suas reservas físicas, apesar da pressão psicológica a que foram submetidos e do desgaste a que fora entregue a sua Divisão, na guerra contra a pertinácia do tedesco audaz, dominando as alturas em defensiva.
Muitos e muitos teriam de voltar às favelas, aos mocambos, às taperas de taipa, de sopapo, às casas de sapê por estas terras a fora sem água, sem saneamento, sem luz elétrica, sem estradas, sem transportes no domínio das moscas e dos mosquitos, depois daquela abundância de tudo e até dos banhos quentes e frios dos acampamentos americanos...
Aqueles que voltaram, como eu, em navio brasileiro, experimentaram antes de pisar em terra natal, a mudança do trato, do ambiente: vinham deitados pelo chão, nos corredores e convés do vapor.
Os que mandaram o navio daqui, eram completamente “rombudos”, em matéria de assistência e compreensão. Gente do Lóide, gente do Estado. Se fosse uma companhia de particulares não teriam procedido assim. O que custava um simples toca-disco e um alto-falante? Alguns discos de música brasileira, mesmo pelo convés naqueles vinte dias de viagem (o dobro do transporte americano) por vezes expostos à chuva e às intempéries, seriam a recepção musical brasileira, um abraço fraterno e amigo.
Mas não. As marmitas não eram mais nem lavadas direito, quanto mais esterilizadas, como no sistema americano. Faltou água para o banho. A comida má. Em pouco tempo, os desarranjos intestinais tomaram conta da tropa. Os jornais do Recife (primeiro porto nacional) testemunharam os protestos dos soldados, logo ao desembarque. Correu, porém, uma lista de assinaturas (que muitos firmaram sem maiores formalidades, pois eram comuns as tomadas de nomes como recordação dos camaradas), declarando a ótima qualidade dos alimentos. Como sempre, as realizações no papel...
Mas, os soldados deste navio, compreenderam, talvez inconscientemente, a razão de ser do conforto que tiveram na Itália: quando o barco entrava no porto do Recife, quem nos saudou primeiro foi um grande transporte norte-americano. E o fez estridentemente com os ruídos dos seus apitos e os acenos entusiásticos dos seus marujos. Então, os pracinhas, por eles mesmos, de forma imprevista e espontânea começaram a cantar o “Deus Salve a América!”
Ouvi no 6o Regimento de Infantaria, o seguinte fato: - um oficial superior americano fôra visitar, devidamente acompanhado por outro oficial brasileiro, uma posição nossa em Torre de Nerone, de grande importância para todo o 5o Exército. Esta posição era constantemente visada pelo inimigo. O capitão (aliás muito popular no Regimento) aproveitara a presença momentânea de um superior, para se queixar dos reiterados atrasos das provisões, o que deixava os homens de sua companhia em situação difícil.
Este capitão foi punido, mais ou menos sob o fundamento de se portar de forma inconveniente em presença de oficial superior estrangeiro. Entretanto, este mesmo “oficial superior estrangeiro” quando lhe estendeu a mão em despedida, referindo-se à sua reclamação lhe dissera o seguinte:
- “É assim que se comanda, capitão!”
Sim, porque os norte-americanos não desejavam arrastar consigo, uma divisão de subnutridos. E quando não encontram as coisas como eles desejam, dizem-no com aquela franqueza a que nós não estamos acostumados, como os seus médicos diziam com toda a naturalidade, aos comandantes de companhia, quando a situação higiênica não andava de acordo com as suas normas. É sempre aquele princípio: um homem se faz em vinte anos e uma máquina em vinte minutos. Estraguem-se as máquinas, poupem-se os homens.
Sim, a Itália era outra paisagem com outra moldura pra aqueles homens. Outra impressão bem diferente daquela do seu velho e conhecido “Exército de Caxias”.
Na arremetida da Força Expedicionária através da Península, os soldados sentiram de perto o contato de um povo diverso, outros costumes e de uma geografia inédita e surpreendente para eles. Deitaram-se em terras brancas de neve, em campos floridos, pelos trigais. Fizeram, daquelas casas campesinas, quartéis de inverno. Dormiram em suas camas, em seus celeiros. Beberam-lhes o vinho e cantaram-lhes as canções.
Ah! a Itália! Há de suspirar o pracinha em todos os recantos do Brasil. E contará aos filhes e netos, aos amigos e vizinhos, histórias de mil e uma noites.
Muitos dirão:
- Aquele cara é um garganta!
Outros mais “patriotas” dirão:
- Por que ele não volta lá pra Itália?
Mas ele estará ouvindo suas próprias palavras; suas últimas palavras.
- “Doppo domani noi andaremo via de qui”
- A rivederci - Itália!
E os expedicionários recordarão canções como Mamma, La Strada del Bosco, Bambina tu me me piace. Firenze Dorme ou daquela traduzida em todas as línguas inclusive para a italiana: Lili Marlene.
Em Mamma era a recordação das mães distantes; na Strada del Bosco, o passeio romântico e bucólico pelo bosque; em Bambina tu me piace, como o nome diz, a declaração de amor às garotas que lhes agradaram. E como naqueles versos de Firenze Dorme, há de haver sempre em suas recordações, um Arno de prata espelhando um firmamento de estrelas fosforescentes e sorrisos de vida e alegria daquelas signorine, como eternas canções napolitanas. Jamais faltará, também aquela rosa de Lili Marlene, presa nos seus corações “com o fio dos seus cabelos de ouro”...
E, viva la Torre de Pisa
Che pende, che pende
E non va a giù...
Para eles, assim foi a Itália. Assim serão as suas recordações...
DIFERENCIAÇÃO DISCIPLINAR.
a) O brasileiro, um indisciplinado.
Da mesma forma que a uma nação poderosa é fácil montar um exército poderoso, a uma nação disciplinada fácil é manter um exército disciplinado.
Constituímos nós uma nação disciplinada? O brasileiro, é em geral indisciplinado. Acusam-no de preguiça, indisposição para o trabalho, ineficiência, vagabundagem. O que lhe falta, porém, é legalidade, educação positiva especializada e estímulo. Qualquer trabalho de que se não tenha conhecimento fundamental é enfadonho.
Para nós, a obrigatoriedade é, talvez, pior do que o próprio esforço. Existe como que, um complexo de escravidão. É evidente que em toda parte do mundo há pouca vontade pelos trabalhos pesados, trabalhos braçais. É natural. A lei do menor esforço faz flutuar o homem em balões de desejos cômodos. Nós viemos, porém, há bem pouco tempo, de uma época em que os “senhores” mandavam e os “escravos” trabalhavam. E, parece, existe até hoje esta revolta mestiça dentro de nós. Os empreendimentos mais pesados, de amanho da terra, de escavações, de limpeza, qualquer coisa que aproxime da criadagem, são ligados inconscientemente à idéia da servidão e o homem os repele com um pavor de recém-liberto... É como se uma voz, interior relembrasse: - Não sou escravo! Talvez esteja aí o hábito das mãos finas, a aspiração do mando, da autoridade, que atrai o homem aos cargos políticos, às poses administrativas, aos manda-chuvas da terra - (sabe com quem está falando?) etc.
Certa vez, num “engenho de açúcar” em Pernambuco, surpreendi o “Senhor de Engenho” procurando os alfabetizados entre os trabalhadores da sua propriedade para lhes indicar os nomes ao sorteio do Exército. Perguntei-lhe porque não enviava os analfabetos que seriam alfabetizados (neste tempo, eu entendia ainda menos de Exército) ao que o proprietário respondeu:
- Homem alfabetizado é homem perdido. Aprendeu a ler não quer mais trabalhar. Vai tocar viola, cantar modinhas, passar jogo de bicho. Não pára mais. Muda-se para a vila e da vila para a cidade. A enxada para ele é uma desonra. Se esta é a verdade, eu lhes apresso a viagem...
É possível que esteja neste complexo da escravidão, o pavor acentuado que temos por certos trabalhos, a procura dos cargos burocráticos, dos empregos públicos ou de escritório onde o cidadão engravatado e limpo se sujeita a perceber muito menos do que um mestre pedreiro, um pintor, um mecânico. Engenheiros, agrônomos, químicos, até há abem pouco tempo de mãos finas, engomados ante as mesas ministeriais. Os bacharéis verbosos, os “doutores”, como os proprietários de terras - capitães, majores, coronéis.
Recordo-me, agora, do prazer sádico, da vingança daquele sargento em Recife, ao tempo da guerra, dirigindo-se aos soldados:
- Quem sabe inglês aí?
Diversos se apresentaram. Então, o sargento comandou:
- Ótimo. Peguem aquelas vassouras e vamos para as latrinas!
Certa vez, o pelotão ocupava uma granja, no norte de Itália. Usávamos uma privada rústica, situada externamente ao lado da casa dos contadinos (como é comum lá). Dos americanos recebíamos todo o material, inclusive um pó desodorante. Mas, ninguém queria fazer a limpeza à vista dos italianos. Porém, algumas noções sobre a necessidade do asseio e a afirmativa de que a prática da higiene não humilha ninguém, fizeram desaparecer o “complexo”.
A indisciplina nacional salta aos olhos em qualquer parte. No trânsito, está a confusão que “uma semana” de ordem não redime. O atraso dos trens, o das chegadas ao trabalho e às saídas dele, a desobediência das posturas e regulamentos, etc. Quantas vezes tenho visto, por cima do letreiro: - “É proibido conversar com o motorista ou com motorneiro”; o guarda que pegou uma “carona”; “pagar” a gentileza com dois dedos de prosa com o motorista ou o condutor...
Cada cidade tem uma percentagem assombrosa de habitantes abandonados ao seu destino solapando a levíssima camada de educação das minorias instruídas e orientadas. Pelas ruas, os papéis andam soltos. Nos encostos dos bancos de cinema, bondes e ônibus, e até em paredes, as marcas dos pés inquietos. As crianças, fugindo das “camisas-de-força” dos apartamentos para as ruas bater bola e brincar de bandido. E o rádio leva até elas os teatros comerciais, onde na exploração do som, quase que só existem tiros, sadismo, choro e ranger de dentes.
Nos cinemas mais distintos, em meio de cenas artísticas e elevadas, é comum ouvirem-se piadas de mau gosto, gritinhos neuróticos, histéricos, assobios acolhidos pelas gargalhadas de aprovação. As estatísticas de homicídios, assaltos, violências, inclusive de autoridades, falam por si mesmas, do respeito em são tidas as leis e os princípios mais comezinhos de educação social.
Não seria, pois, de admirar, que a disciplina no Exército, sofresse, por um lado, os efeitos do reflexo nacional e tivesse, por outro, a repressão mais violenta, no sentido de conseguir um soldado respeitador, pontual e ordeiro.
Analisaremos, por conseguinte, nesta parte, a diferenciação disciplinar sentida pelos soldados, no Brasil e na Itália.
b) A disciplina rotineira do quartel
A vida do conscrito é constituída por uma série permanente de desfalques na sua vontade e liberdade, em benefício da equipe, do conjunto. É uma fase em que o indivíduo, depois de chegar à idade adulta, tem que regredir em sua vontade já liberta. Em benefício dele próprio, da segurança de sua vida e da vida dos outros, é que se torna necessário que cada um aja em função de um todo.
Em qualquer exército de qualquer parte do mundo, esta iniciação na vida militar é desagradável. Uma porção de princípios, etiquetas, formalidades, simbolismos, teorias, disposições regulamentares, reduz o pobre mortal a uma vontade comandada por outrem.
Só mesmo a contingência de todo um povo ver-se ameaçado pela ferocidade de outro, a necessidade imperiosa de todos defenderem como um só homem as fronteiras nacionais, é que obriga um cidadão a tamanho sacrifício e situa outro em tão honroso quão delicado posto como o de comandante.
Depois de fardar-se e apresentar-se aos de casa todo ufano, vai sofrer a primeira timidez, ao sair à rua. Começa a sentir-se olhado de todas as direções. No quartel, ele entra como um anjo e o sargento o espera como um demônio... O recruta é a melhor distração do ano. É como se o sargento quisesse logo descontar os juros do esforço e do suor que vai derramar no fazer daquele “paisano” um soldado...
Será breve um farrapo. Acorda sempre pela metade do sono. O soldado adaptou ao toque de alvorada, uma letra que é a expressão da sua angústia:
“Ai meu Deus
Que vida apertada
Nem bem eu me deito
Já toca a alvorada...”
Ou então:
“Ai meu Deus
Que vida esta minha
Nem bem eu me deito
O Plantão me aporrinha.”
Desde que acorda até à noite, tem que fazer as coisas às carreiras. A ordem-unida, o manejo das armas, a maneabilidade, a instrução física, as marchas, o serviço na guarda, a limpeza dos armamentos, a instrução geral, toda um invenção diabólica comprimida em um ano de serviço militar, como se fôra mesmo de propósito para não “dar vez” ao soldado... Sua, esfola-se, suja-se na terra ou na lama, lambuza-se de óleo quando não se “perfuma” no cheiro dos muares...
Tem que saber dirigir-se ao superior, perfilar-se, fazer a continência, “cantar” o número, o nome, a subunidade, a unidade... e tudo com a mão esquerda bem colada à coxa, e a direita em continência, sem baixá-la, a não ser que o oficial ordene. E se o braço esquerdo não cai naturalmente, se está arqueado, o superior dirá que ele é uma asa de açucareiro... Se na farda lhe falta um botão, o superior dir-lhe-á: Você está nu, soldado. Vista-se e venha falar comigo!
Na vida civil, a gente só cumprimenta aquele a quem estima. E tanto pode ser um bom dia, um “alô”, um “o que é que há, velhinho” etc. Mas o soldado tem que andar sempre vigilante, em cada rua, em cada esquina, em cada canto. E não adianta sair à paisana, porque soldado só pode andar fardado.
À noite, lá está ele na rua, na praça com a namorada (até à hora de recolher ao quartel) ou aproveitando uma folga que teve por ter feito uma marcha de vinte ou trinta quilômetros. Mas, aqui e ali passam os cabos, os sargentos, os oficiais... O idílio é constantemente desmanchado pelas continências
Às vezes, no ônibus, está ele todo satisfeito, bem sentado junto à vizinha. Entra um superior e lá se foi o lugar...
Teve espírito, portanto, o autor (não sei se anônimo) desta quadrinha que ouvi de soldados do Exército em Pernambuco, com a música do toque de corneta para o banho, em que o soldado se crê indigno de ser amado:
“Mulher que ama soldado
Ama cachorro também
Cachorro ainda tem rabo
Soldado nem rabo tem...”
Ou então este dito bem carioca: - Soldado não tem vez (isto é, oportunidade).
c) Uma herança do Patriarcalismo na Caserna.
Esses princípios comuns a todos os quartéis do mundo, não foram inventados especialmente para martirizar o cidadão que veste a farda e sim para lhe imprimir a vigilância, a presteza, a vivacidade na execução das ordens, mesmo ante o perigo do combate - finalidade precípua da instrução militar.
Entretanto, esta necessidade de moldar primeiro um cidadão que já deveria vir formado pela vida civil, exagera as fronteiras do rigor disciplinar do Exército e acentua muito mais a diferença entre o comandante e o comandado.
Não se trata da simples separação de alojamento, de rancho, de banheiros e privadas, de lugar de recreação, por si mesmos já bem diferenciados. O soldado brasileiro é tratado como um colegial, transição do patriarcalismo já analisado. A este homem que o Exército tem que preparar no quartel não se dá a amplitude da responsabilidade que deve ter. É a mesma coisa que ocorre nas fábricas, nos escritórios, nas empresas particulares: - é preciso a presença do chefe, do fiscal - como os alunos necessitam de um inspetor. Desde que o “mestre” esteja ausente, o “aluno” acende um cigarro, faz uma garatuja no quadro negro, joga uma bola de papel ou ensaia uma palhaçada qualquer... É outro defeito de origem nacional. Partimos do pressuposto de que todo o mundo é desonesto ou inábil: do princípio de desconfiar de tudo; criamos uma série de leis e regulamentos minuciosos; surgem os papéis, os selos, os carimbos. Os recarimbos, os autos, os flagrantes, as inquirições, os julgamentos mais complexos e intermináveis. Todo o mundo fica inibido, peado pelas exigências e pela burocracia. Finalmente, quando se apanha um que falhou, que furtou, que falsificou um cheque ou infringiu algo, não vai sofrer lá grande coisa... A falsa piedade, os arranjos, as provas, as testemunhas, as desistências, tudo favorece. Se há países em que se não pode acreditar muito na fiscalização, o Brasil é um deles. Seria necessário criar o fiscal do fiscal até o infinito. Os americanos, neste ponto, são mais práticos. Partem mais ou menos do princípio de que todos são bons e deixam correr a vida. Mas, uma vez apanhado o faltoso as conseqüências são duras. Doa a quem doer. Desta forma os honestos e bem intencionados não têm os seus passos tolhidos pela minoria desonesta. Tanto na paz como na guerra, o homem representa em produção o que é realmente e não o que poderia ser. O que não cresce espontaneamente, de forma lenta e constante, não adquire consistência.
Um soldado “colegial” é uma preocupação permanente. A sua personalidade não atinge as alturas que lhe podem exigir as circunstâncias.
Este receio do relaxamento disciplinar entre comandante e comandado é que estreita de forma bem acentuada as exigências regulamentares de uns para outros, de maneira por vezes exageradas.
O soldado brasileiro saiu deste plano para outro muito mais restrito decorrente da própria convocação para a guerra. A vida de quartel piorou muito. Em primeiro lugar, a certeza de que embarcaria para a Europa onde a guerra o esperava plantou-lhe a angústia instintiva da morte. Ocorre nos homens, nestas situações, como nas plantas ameaçadas; há como que um desejo de vida de reflorir e frutificar. Obrigados a penosos exercícios, submetidos a mais fortes exigências físicas, uma vez em folga, esses homens bebiam, expandiam-se, do que resultavam certos excessos mal compreendidos e maiores depressões físicas.
É preciso observar que esses soldados receberam sobre os ombros, o encargo de, eles - uma minoria incrível - desagravar e representar o Brasil na guerra que este declarara. Não existia uma situação geral de luta em que todo um povo tem que servir em qualquer frente e faz da desgraça geral um estado comum. Deste “élan” nacional que arranca das profundezas da alma, em lampejos de entusiasmo patrióticos, a vontade de combater. É, às vezes, chocante, ter um homem de lutar e talvez tombar longe de sua Pátria, quando sabe que atrás dele ficam dois mil; dos vinte mil que seguem, ficam quarenta e cinco milhões...
Assim, após sofrerem uma compressão tremenda, desde que se tornaram expedicionários, pois a “vida de soldado” piorou, ao embarcarem sentiram o desafogo que analisaremos.
d) Disciplina militar americana.
Desde que sob a organização americana os homens caminharam para o grande navio transporte, outra seria a sua vida, outra a sua personalidade, outras as circunstâncias.
As emoções e saudades já começaram a indiferenciar os homens, comandantes ou comandados. As próprias fardas, feitas para dificultarem o discernimento inimigo, já não distinguiam tanto o superior do inferior. O oficial já não tinha bagageiro que lhe carregasse o saco. Cada um que transportasse o seu e com ele galgasse as escadas do navio.
Ali a alimentação era igual para todos. Quem não prestasse serviço, oficial ou não, só teria direito a duas refeições diárias. Os que trabalhavam, mesmo soldado, recebiam três. Todos, indistintamente, estavam sujeitos aos mesmos perigos, aos mesmos rigores da guerra, pois a morte não tem preferências. Daí por diante as coisas seriam bem diversas...
Até aquele momento, o soldado do Exército tinha dado o seu “murro”, curtido o seus sofrimentos e as suas desigualdades sem que ninguém lhe atribuísse nenhum destaque. Estes, porém, que iam partir com uma interrogação atravessada na garganta, já haviam recebido palmas e flores pelas avenidas. Os jornais proclamavam, em negrito, qualidades que eles nem imaginaram. E dentro em breve, eles que sempre foram chamados, simplesmente, “praças” receberiam o diminutivo carinhoso de “pracinha”...
Quando o grande transporte ganhou o alto mar, esta bela cidade do Rio de Janeiro, já invisível, deixou de ser o torrão natal daqueles brasileiros de todos os recantos e cada um aninhou dentro de si as suas saudades. A imensidão Atlântica fez de cada homem uma enseada tranqüila. Depois, a alma artista e simples do povo começou a falar pelas cordas dos violões e dos cavaquinhos, das cuícas e pandeiros. E o homem cantou músicas sentimentais como “Na Baixa do Sapateiro” e relembrou “a morena mais faceira da Bahia...”.
E veio o cinema americano em filmes novinhos para alegrar o soldo. E vieram as brincadeiras, as lutas de boxe, a presença de Netuno na passagem do equador, as músicas do alto-falante, as notícias, o serviço religioso. Uma vez ou outra os exercícios de salvamento ou o toque de alarme lembravam a presença do inimigo naquelas águas imensas em que só o radar penetrava.
A disciplina não deve partir somente do soldado. Deve estar em tudo que o cerca. E tudo naquele transporte emana disciplina e ordem. Tudo era feito a tempo e à hora. Os marujos em seus postos, juntos das suas armas, nos postos de observação, no trabalho de limpeza ou renovação da tinta, na cozinha, etc. Não se via o comandante. Não se viam oficiais dando ordens, sargentos para lá e para cá. Aqueles americanos pareciam mudos. Era como se cada um fosse comandante de si mesmo. E os brasileiros se adaptaram àquele estado geral como peças de máquina.
É que os americanos traziam da vida civil e mecânica, a sua disciplina natural. Nos Estados Unidos, todos sabem mais ou menos o que seja a atenção à lei e o preço da sua desobediência. Governantes e governados se respeitam e se acatam, porque ambos respeitam e acatam a autoridade maior que é a Lei. As suas forças armadas, parcela daquele todo, não podiam fazer exceção. Não se viu o Congresso dos Estados Unidos punir publicamente um dos mais bravos e valorosos generais - o General Patton - por ter esbofeteado um soldado em crise histérica? A posição não cria imunidade. A falta ou o crime de uma autoridade, por mais alta que seja, não desmoraliza as instituições. E a impunidade daqueles que mais as deveriam respeitar que o faz.
Cada um deve saber quais os seus direitos e quais as suas obrigações. Mas esta mentalidade legal, que sem dúvida existe mais perfeita ainda, em países como a Suécia, Suíça, Inglaterra, etc., não é conseqüência espontânea. É, sim, fruto da vigilância permanente do espírito de ordem e de legalidade, vividos há séculos. O mais é uma simples decorrência destas. Soube que na Suíça, durante a guerra, nas repartições, nos escritórios particulares, no comércio, os civis trabalhavam equipados. A seu lado, estavam as carabinas, a sua máscara, os capacetes de aço. A um toque de alarme, todos estariam prontos e correriam a seus postos para defender a pátria. E cada um sabia o que fazer. Dir-se-ia que o comando americano poderia prescindir da vigilância que mantinha, pois o soldado - um civil que vem de uma vida organizada e legal - por si mesmo saberia manter aquela constância e equilíbrio no cumprimento do dever. Porém, a autoridade, seja qual for, não pode esmorecer na constância da perfeição. A natureza humana é fraca e tende à inércia. Conseguida a ordem, é preciso mantê-la como a uma chama que se não pode apagar.
Vi, naquele transporte, como se conseguiu isto. Cada um é responsável pelos seus atos e obrigações da mesma forma que é senhor dos seus direitos e vantagens. Mas, o comando não espera pelo esmorecimento daquele padrão para remediar. Diariamente, o subcomandante do navio, acompanhado de um taquígrafo sai à inspeção mais rigorosa que eu já vi. É como se fôra a primeira, após um ano de ausência e, entretanto, é o comum de todo dia. De lanterna à mão, vai a toda parte. Entra em banheiros e privadas, camarotes e alojamentos, corredores e recantos, cozinhas e frigoríficos. Nada escapa! De lanterna acesa, agacha-se para ver por baixo dos móveis, esfrega o dedo sobre as coisas em busca de qualquer sujo, abre os armários e gavetas para ver a ordem interna, interroga, observa. Qualquer falta, uma simples torneira que vaza, uma caixa de descarga sem funcionamento uma desobediência regulamentar, ele a proclama e o taquígrafo anota.
Os nossos camarotes de oficiais, eram também visitados. Nós, os oficiais, tínhamos de varrê-los, apanhá-los, passar um pano úmido sobre o encerado, forrar as camas, limpar as pias e os espelhos e deixar à porta a lata do lixo para ser recolhida. Se na inspeção o camarote não estava “very well”, ou pelo menos “well”, a conseqüência era a cadeia.
Por obrigação acompanhei o subcomandante americano nestas inspeções e só não consegui entrar no frigorífico, porque o frio era demais... Da porta vi, porém, a ordem, arrumação notável das caixas de ovos, de frutas, de conservas. Que limpeza! De lá não emanava nenhum odor desagradável, que eu esperei encontrar em tão grande frigorífico, em meio de tão variado sortimento.
Ora, diante de uma inspeção real, assim, permanente, constante, honesta, o homem, qualquer que ele seja, compreende que é inútil deixar de fazer as coisas como devem ser feitas. A ordem, a obrigação, torna-se a rotina. E como o hábito é a repetição de um ato, os homens ao fazerem, todo dia, às mesmas coisas, habituam-se por si mesmos, dispensando que se lhes dêem ordens a cada passo, que se lhes dêem instruções a cada momento, que ocasionariam má vontade, atritos, vexames, gritos, sermões, relaxamento da autoridade, insensibilidade de caráter e confusão.
Em lugar dessa vigilância permanente (não sobre os homens, porém sobre as tarefas), imagine-se uma inspeção assim: um dia a tropa toma conhecimento de que um general ou outro oficial superior, no dia tal visitará o quartel. Um frenesi apodera-se de todos. Os soldados exercitam-se para uma apresentação exemplar. É um corre-corre, um limpa-limpa, um esfrega-esfrega, um lava-lava medonho. Bronze e metais ficam espelhando. O pátio do quartel, as privadas, banheiros e a cozinha são objetos de atenções especiais. Os detritos desaparecem. Os desinfetantes entram em ação. As moscas são apanhadas de surpresa numa guerra mortal. As coisas são arrumadas e o que sobre é empurrado para dentro das gavetas e gavetões. Ao chegar a autoridade, tudo está perfeito! Uma ordem do dia traduzirá a satisfação do general e todos terão uma folga justa e merecida após aquela azáfama terrível.
Mas o dia seguinte é um Deus nos acuda, pois muita coisa não será encontrada. A poeira, volta. As moscas, indecisas e descrentes, também. O mau cheiro... onde haveria de estar o mau cheiro, se não no seu lugar lógico e natural? E a cozinha? Um mercadinho de detritos, folhas, carnes expostas, panos sujos, o diabo!
Uma inspeção dessas é uma escola de ilegalidade, de fraude à lei regulamentar. É a indisciplina comandada porque ensina o soldado a ludibriar o seu superior.
Nós possuímos unidades modelos. Os nossos quartéis são, em geral, bem construídos. É fácil, por conseguinte, manter a limpeza. Onde existe vassoura e água corrente não pode haver mau cheiro. Se não existem detritos e se as latas ou depósitos de lixo estão bem fechadas, não pode haver moscas. É verdade que ao nosso homem falta, infelizmente, os princípios elementares de higiene. Não sabiam forrar as camas direito, o que constituía vexame para as enfermeiras. Presenciei isto no 7o Hospital em Livorno. Entretanto, apesar de ter passado ali alguns dias, as ligeiras palestras que mantive com eles, surtiram o efeito desejado. O elemento humano é bom, amoldável. O que lhe falta é educação. Aulas bem orientadas com utilização do cinema educativo mostrando o certo e o errado, seria o remédio. Alias, nós temos o Instituto Nacional do Cinema Educativo que poderia prestar ótimos serviços. As organizações cinematográficas que fazem filmes medíocres poderiam contribuir para a educação do povo pelo cinema, desde que o Governo incremente a produção de películas desta natureza, concedendo prêmios anuais que as estimulem. Para os cozinheiros, copeiros, ajudantes de cozinha, etc., só mesmo um microscópio... No dia em que se apanhar a água aparentemente limpa, os alimentos, aparentemente bons, e se fizer este pessoal ver pelo microscópio os “bichos” em movimento, neste dia acreditarão no micróbio e terão certeza de que “nem tudo que brilha é ouro”...
A disciplina americana parece diferir da nossa, precisamente porque ela não se exerce sobre os homens, individualmente, acompanhando-os como uma sombra feitora, porém sobre os resultados, os atos, as obrigações que deles se esperam. O regulamento manda que se faça assim. Cada um sabe como deve fazer. Então que se cumpra. Se o resultado não está de acordo com os preceitos regulamentares, com as determinações superiores, pune-se imediatamente. Este processo de dar autonomia ao homem, empolgando-o pela responsabilidade, pode ser exercido em qualquer circunstância e sobre qualquer elemento. Durante as oportunidades que tive de comandar, inclusive centenas de soldados descontentes, retirados de vários pelotões e que ficaram no acampamento em Francolise, fiz experiências que me parecem satisfatórias. Orientar o homem pela doutrinação; deixá-lo livremente e sob sua responsabilidade executar a ordem; puni-lo ou distingui-lo no final, se deixou ou não de cumprir o dever. Depois que a ordem, o asseio e tudo o mais se tornarem verdadeira rotina, o homem adquiriu o bom hábito e dificilmente o perderá.
e) Existe uma disciplina própria da Linha de Frente.
Já vimos acima, mais ou menos, a pressão que a vida de quartel imprime no conscrito, acrescida dos complexos da nossa formação nacional.
Outrora, as elites se dividiam entre os que permaneciam nas profissões liberais e os que seguiam a carreira das armas. Destarte, os seus filhos não se encontravam no quartel porque a tropa era formada pela massa comum e desfavorecida. O civil que ia ter no quartel era o “homem do povo”, que saía do “comando paisano” para o “comando militar”.
Se observarmos bem este aspecto da nossa formação encontraremos conclusões interessantes quando à estrutura mental das chamadas “Classes Armadas” e das “Classes Liberais” - militares e “paisanos”.
A proporção que nos democratizamos, estes sintomas vão desaparecendo. Houve, também, a grande influência da simplicidade e civilismo do Exército dos Estados Unidos. Acontece, todavia, que o militar em contato permanente com a grande proporção de soldados incultos, no esforço de fazer do nada - um homem respeitador da lei do quartel, um disciplinado, absorve grande parte daquela rusticidade. A falta de formação educacional e legal do soldado prejudica bastante a disciplina consciente. O inculto não pode transformar-se de uma hora para outra, senão pelo grito, pelo medo, pelo receio do comandante. A sua mentalidade não pode ter a noção do comportamento pelo dever, pelo direito, o que deveria ser moldado desde o berço no equilíbrio jurídico e legal de toda a nação. Em geral, a força é a condição primária que respeita. Desta forma o comandante, o militar corre o risco de influenciar o espírito pela autoridade, pela indiscutibilidade dos seus princípios, de suas ordens. Se isto ocorrer, pode ele caminhar para a intolerância.
Quando a disciplina não é consciente, o soldado despersonaliza-se, inibe-se, anula-se na inconstância, não adquire um ritmo racional no cumprimento de suas obrigações.
Ao pisarem na Itália ao som das bandas militares americanas, os soldados começariam a perceber cada vez mais a diferenciação disciplinar entre a sua vida no Brasil e na guerra, entre o que ele chamaria o “Exército de Caxias” e o “Exército da FEB”. Haveria de dar o seu “murro”, porém, sentindo o prazer da camaradagem, o valor da sua personalidade, a importância da sua “maioridade militar”.
Ainda sobre a impressão das ordens e contra-ordens, do manda e desmanda, da “última forma”, antes de seguir para a linha de frente ele traduziu em verso, com a música de “Deus Salve a América” o seu desapontamento com o “Saco A”, saco que acompanha o combatente que vai para o front:
Chegou a hora
Da cobra fumar
Saco “A”
Às costas
Ó que murro
Que a gente vai dar!
Pega o saco!
Larga o saco!
No lugar!
Chegou a hora
Da cobra fumar!
É preciso notar, entretanto, que a rigidez disciplinar decresce, naturalmente do quartel para os acampamentos de paz ou retaguarda da guerra, e desta para a frente de combate.
Paisagem italiana - Permita-me o leitor, que me afaste um pouco do assunto - a Diferenciação Geográfica entre o Exército de Caxias e o da FEB, a fim de lhe mostrar um instantâneo do ambiente onde viveu algum tempo o nosso soldado.
O campo italiano é um pontilhado de casas. Podemos medir suas fazendas com a vista. Aqui está, por exemplo, a casa ainda nova do contadino. De um só, não, de quatro famílias de “contadini”. São quatro residências num bloco só. Em cada uma delas, a sala de visitas é também de jantar e ainda a cozinha. É bem ampla. Tudo está em ordem. Aquela lareira onde as achas ardem, com aquele caldeirão que pende de uma corrente, dá um aspecto agradável e hospitaleiro, que nos convida a sentar e aquecer o corpo. Observe que o fogão é todo de ferro. Ao canto, a mesa está bem posta. O guarda-louças deixa transparecer através dos vidros, que aquele camponês possui até porcelanas. Os utensílios domésticos são de metal. Nesta casa, você não está vendo as bicicletas das filhas deste contadino, porque os alemães as levaram, como levaram também bois, vinho, presuntos. Todos eles se queixavam:
- I tedeschi portarano via tuti! Tuti! Quelli delinquenti!
- Tanto os nossos soldados ouviram recriminações desta ordem, principalmente sobre bicicletas, que fizeram, até, uma modinha mais ou menos assim:
“Dove se trova la machina de Maria?
“Tedeschi portarano via...”.
Não houve tempo de levarem tudo, porque havia muita bicicleta na Itália, meio de transporte muito popular. Além disto, aos que trabalhavam em indústrias ou serviços considerados de utilidade bélica, era entregue um salvo conduto, escrito em italiano e alemão, proibindo o seqüestro da bicicleta, conforme tive ocasião de verificar.
Naquela gaveta, pelos cadernos e livros das filhas do contadino, você verá que elas estudam assuntos práticos. Veja: Lucia e Bianca Maria estudam economia doméstica.
Bem defronte a nós, na mesa da copa, cuja tábua fôra virada, a esposa do contadino já amassou a farinha. Enrolou esta massa como se fosse uma peça de tecido e de faca em punho, com rapidez incrível, está cortando aquele “peça” em fatias de talharim.
Lá fora, algumas galinhas que restam cacarejam. Valem ouro. Os coelhos lembram plumas movediças nos comedouros. No estábulo, cada uma das dez, quinze ou vinte vacas, produz dez, quinze ou até dezoito litros de leite, que são levados pelas ótimas estradas para aquela fábrica de queijos que se avista daqui da janela. No celeiro o feno e a palha estão enfardados. Se o celeiro não comporta toda a palha recolhida eles a arrumam em torno de um madeiral plantado, geralmente, ao lado da casa. E de tal forma é a palha trançada, que se ergue a vários metros de altura à maneira de um cone enorme, fulvo e pitoresco, a imitar a graciosa projeção de pinheiros erguidos aqui e ali. O milho em espiga, já descascado, pende dos varais, preso pela própria casca e ostenta grãos tão lindos que não pensei dessem mais aquelas terras. O tempo é bem aproveitado. O trabalho é metódico. No inverno, o labor no campo desaparece com o advento da neve, mas surgem outros serviços mais domésticos e cuidados com as criações. No verão, para suprir as forças perdidas num dia de trabalho que começa muito cedo e termina muito tarde, os homens fazem à sesta após o almoço. Os campos de cultura são aplainados e recortados de canalículos que, geralmente servem de divisas e são ligados ao canal maior que margina a estrada, prestando-se, assim, ao escoamento e à irrigação. Pequenas portas-d’água são vistas, intercaladas, nestes canaizinhos. Mesmo nas elevações eles aplainaram a terra, cortando-as de tal forma que, de longe parecem enormes degraus. As elevações são protegidas pelos bosques. Há, aliás, ao contrário do que pensei, muitos bosques na Itália e grandes parques de pinheiros que mesmo no inverno se mantém verdes. Vi, também, parques de caça.
O contadino em cuja casa estamos, neste momento, bem como os outros, não cortam a lenha da lareira ou do fogão com o machado. Serram-na. Penso que é para evitar o desperdício de três ou quatro centímetros que o golpe do machado ocasionaria. Tudo ali é aproveitado, até os garranchos. Que amor têm eles pelas coisas, pelas árvores, pelas plantações! Uma vez, depois que os alemães se renderam, saí de bicicleta com uma jovem italiana. Eram nove horas da noite e o sol estava, ainda no poente. Estávamos numa linda planície. A certa altura, páramos para contemplar aquela beleza campestre e eu, ao largar minha bicicleta, deixei-a cair sobre o trigal que avançava até à margem da estrada. A italiana disse-me, então, numa expressão de censura:
- Nè fate cosi!
- Che cosa?, perguntei-lhe.
E ela, com a voz mais doce que já ouvi em tão curta frase, estendeu as mãos como se afagasse o trigal que não lhe pertencia e disse:
- Il grano!!... (O trigo!).
Quando chega a noite, os contadinos se reúnem, limpam, enxugam e guardam carinhosamente suas ferramentas. Depois, sentam-se palradores em volta da mesa ante a sopa, o minestrone suculento e fumegante. Nem sempre há carne. Um dia ou outro um pedaço de coelho da criação. É a guerra. Mas há sempre ovos, legumes, castanhas apanhadas nos bosques. Bastante massa, queijo e vinho puro e bom, ou então com água, porque o vinho deve estar sempre em sua mesa. Muita fruta. (Quando estive em Roma, comprei menos de vinte cruzeiros o quilo, excelentes pêssegos vindos de Nápoles, de tão longe pelas ótimas estradas). Os contadinos, apesar dos pesares, mostram um ótimo físico. Corpo cheio, braços roliços e rijos, índices de boa nutrição. Falam, gesticulam como um bom latino. Adjetivam e doutrinam. Ecco!
Eu que nasci no campo e conheço um bocado este Brasil, fiquei surpreso ante esta mudança geográfica. Era aquela a chamada necessidade dos povos da Europa? Vi, sim, necessitados nas cidades. Deslocados, “rovinati”, “sfollati”. Mas se pensarmos nos homens dos mocambos, das favelas e cortiços não encontraremos termo de comparação. Necessitados somos nós. Ao chegar aqui ouvi risos quando disse isto. Somos verdadeiramente cegos. Poucos acreditaram no que disse. Ora, segundo li em um jornal em Roma, somente 25 a 30% das fábricas italianas foram, realmente, destruídas. Maior número, talvez, parcialmente arruinado. Quase a metade do poderio industrial italiano ficou intacto. Com os reparos nas indústrias em parte atingidas, esta metade pode se aproximar dos dois terços. A riqueza queda-se em potencial nas fábricas e nos campos povoados. E, mas acabava o combate, lá estava o italiano, numa paciência de formiga, cultivando a terra.
Ocorreu um fato comigo, que bem pode comprovar esta perseverança: no deslocamento pelo Vale do Pó, eu estava com o meu pelotão quando esbarrei num terreno, onde os sulcos dos arados eram bem recentes, pois a terra estava ainda úmida. Todos nós receávamos as minas. Os alemães as espalharam em tal número que por muitos anos elas serão responsáveis por acidentes fatais. Tudo o que pudesse chamar a atenção do soldado em avanço, o alemão podia minar: as margens dos parreirais onde as uvas convidassem; os caminhos de fácil penetração e até os cadáveres dos nossos soldados, como aconteceu, segundo me contaram. Colocadas as minas, eram dissimuladas por forma que o terreno não apresentasse vestígios. Se o terreno ante o qual estávamos apresentava sulcos recentes de arado, não devíamos temer. Pensei, porém, em que a dissimulação tem mil formas de realidade. O inimigo em fuga não tem tempo. Quem poderia sabe se eles araram aquelas terras, semeando, depois, as minas e deixando uma impressão de campo recém-cultivado? Fui à casa do contadino, já ocupada, e perguntei:
- Quem trabalhou naquele campo?
- Eu, respondeu o italiano.
Por vias das dúvidas, cortesmente, convidei-o a caminhar na frente. Seguro morreu de velho... Estas preocupações, aliás, nos fizeram, posteriormente, arrebentar um enorme garrafão de vinho, por ter à superfície um pó esbranquiçado. Sabíamos lá se era veneno? Contaram-me, depois, que havíamos perdido um ótimo vinho velho...
Vemos, pois, que mal passada a guerra, a terra ainda marcada pelos borzeguins dos soldados, às vistas quase, dos combates, lá estava o contadino sobre o campo cultivando-o e dele colhendo riquezas.
E eu fico a pensar nos “entendidos” que dizem: “A Europa está uma desgraça. Podemos receber italianos aos milhares e soltá-los como boi em Mato Grosso, por exemplo!” Estão enganados! Eles não agüentariam sem uma boa assistência do Governo ou do particular. A Itália tem uma cultura milenar e oferece, apesar de todas as dificuldades de que foi vítima, um padrão de vida superior ao do nosso trabalhador de eito ou até de muitos fazendeiros do Brasil. Os italianos são um povo que sabe como trabalhar, produzir, como alimentar-se e distrair-se. Atravessando-lhes os campos e a excelentes estradas cimentadas, correm os trens elétricos e a eletricidade ilumina-lhes grande parte das casas do campo. Nestas, de tijolo, simples, porém, de gente civilizada, vemos utensílios domésticos de ferro e alumínio e móveis aceitáveis. Os filhos se educam ali mesmo. Trabalham muito. Não há esperanças de riquezas da noite para o dia. Mas gozam um pouco dos prazeres de um padrão de vida mais desenvolvido. Estão perto uns dos outros, a dois passos das obras de arte, de histórias e tradições do passado.
Não se trata, é óbvio, de superioridade racial, porém, de superioridade de cultura. Mesmo que ela não saiba ler (o que é raro), sabe como semear, como colher, produzir e economizar. Em todos os países de clima temperado, o frio, a necessidade do calçado, do agasalho, do calor, traça o caminho da civilização. Os campos nevados obrigam o homem a cuidar mais da sua casa, a economizar e a prover. O que eles aprenderam pela experiência, pela necessidade secular, pela imposição do clima, nós teremos de fazê-lo pela educação permanente e experimental repetida até constituir um hábito.
Com esta vastidão territorial desabitada, estas terras barbaras, sem preparo, sem trato e sem aplaino, estes métodos empíricos, sem máquinas e sem braços, tão cedo não seremos nada no rol dos povos civilizados. O italiano é um ótimo elemento de colonização, sabem-no todos. E o imigrante é a escola melhor e mais barata, porque ensina aos nossos homens pelo exemplo. Se o desejamos, criem-se os meios de fixá-los à terra. Do contrário, ele abandonará a terra para vender jornais e bilhetes de loteria nas cidades. Na Itália ele é, apenas, contadino, isto é, trabalha para o dono da fazenda, recebendo uma percentagem sobre a produção. Ofereçam-lhe a terra. Digam-lhe a verdade sobre o nosso país. Que eles virão para uma terra ainda virgem mas que será deles e de seus filhos. E os que vierem serão os desbravadores de que carecemos. Trabalhando aqui em terra própria como trabalham lá em terra alheia, encontrarão outra sorte, outras compensações. A Itália já deu o que tinha a dar. É mais a manutenção de um passado de séculos. Enquanto isto, nós somos como aqueles versos de Augusto dos Anjos: “O choro da energia abandonada”, “o cantochão dos dínamos profundos, que podendo mover milhões de mundos, jazem, ainda, na estática do nada” ... Somos a esperança que urge abreviar.
Mas, voltemos à casa do contadino, onde nós estamos, enquanto os “técnicos”, os “entendidos” resolvem estes problemas. Aqui está o quarto de dormir. A cama é boa e forte. Um colchão? Não. Dois ou três, sobrepostos, sendo em alguns casos de penas. Lá no canto o guarda-roupa e a penteadeira. As vezes são simples móveis antigos, bem conservados e apresentáveis. Podemos notar objetos de gente civilizada, roupas de cama de antes da guerra, lã e seda (esta de boa fabricação, pois a Itália produz boa seda).
No verão, mesmo na primavera, ao contrário do inverno, as madrugadas surgem bem cedo, antes das cinco e o crepúsculo é muito mais tarde. Às 9:30 da noite ainda existem vestígios do poente. Era uma coisa que desorientava a nossa idéia do tempo. Após a guerra, quando aquartelados, precisávamos ter cuidado para não perder o jantar, pois às 5 ou 6 horas da tarde o sol estava tão alto que qualquer um de nós julgaria ser três horas da tarde. Se marcássemos um encontro às sete de noite e se não estivéssemos de olho no relógio, seríamos capazes de chegar às dez da noite...
A tarde que se entende, assim, noite a dentro, proporciona aos que saem do trabalho, momentos de folga em plena claridade solar. E pelas estradas que enfeitam de fitas as planícies e as alturas, as bicicletas passam em todos os sentidos. Nas águas dos pequenos canais os patos se aninham serenos e uma vez ou outra mergulham, rápidos e trêmulos, os longos pescoços. Estamos na primavera e os pessegueiros e macieiras, desfolhados pelo inverno que se retira, estão agora completamente cobertos de flores. O campo é um vasto painel policromo onde o azul, o branco e o vermelho casam-se com as manchas verdes do trigal que vai surgindo como grama. Um quadro gigantesco e colorido que a primavera pintou na tela da natureza com molduras de neve das montanhas...
Quando as noites convidam - (e os céus da Itália são tão estrelados!) - poderemos dar um passeio de bicicleta. Não há perigo de poeira. As pistas cimentadas das autovias italianas podem ser percorridas por qualquer engenheiro de país civilizado. Cruzam a península de norte a sul e de leste a oeste. Cruzar é um modo de dizer, pois essas estradas em geral não se cruzam, passam por cima em viadutos que se vão elevando aos poucos. A guerra não as destruiu, senão, em determinados locais. Ambas as partes em luta tinham interesse em conservá-las.
Por elas, portanto, você, leitor, o contadino, suas filhas e eu poderemos passear como se estivéssemos num campo-jardim, atravessando aldeias com suas igrejas seculares de campanário erguido em torres. Por esses vilarejos e cidades que transformam a Itália numa campanha urbana onde a eletricidade brilha nos postes e risca os trilhos dos trens elétricos.
Mas, se você não quiser passear de bicicleta, vá contemplar a quietude, a simplicidade tão humana da cidade mais próxima. Vá ao teatrinho! Pode ser que haja a estréia de uma novo tenor...
b) Fantasia brasileira.
Num ambiente, inédito, cercado pelo conforto do Exército americano, que até chegou para ele, o soldado brasileiro esqueceu-se dos seus tempos do Exército no Brasil e da realidade brasileira e fez uma ótima apresentação das nossas fantasias...
Acentuaram-se os traços de bondade e solidariedade de nossa gente, dos nossos soldados, capazes de gastar até os últimos centavos, as economias do mês só para oferecê-las em lauto almoço a um amigo ou parente recém-chegado.
Os italianos que viviam, mesmo assim, num regime de carências em comparação ao período anterior à guerra, estavam acostumados à campanha de descrédito que os nazi-fascistas fizeram contra os aliados e ainda às requisições de gêneros alimentícios que aqueles faziam constantemente, exigindo sempre mais trigo, mais provisões dos camponeses. Os próprios alemães, embora bem equipados, tomavam-lhes os bois, os cavalos, os gêneros, as bicicletas, etc. Era de esperar, pois, que se espantassem da massa de material e provisões que nós brasileiros arrastávamos com o 5o Exército americano. Caminhões e caminhões, jeeps, rádios transmissores, equipamentos e petrechos de todos os gêneros. O meu pelotão fôra transportado do Vale do Pó, por três caminhões, cada um dos quais, possuía, rodando, dez pneumáticos... E aquela profusão de alimentos? Açúcar, café, sabão, carnes, conservas, doces, chocolates que eles há muito não viam, senão em doses medicinais e a preços astronômicos... E aquelas botinas? Galochões para neve? Aqueles blusões? Mas, quanta gasolina queimando naquelas viaturas nos três fogões e fogareiros de cada companhia, como água! Quanta borracha! Tudo aquilo era um sonho...
- Mamma mia!
- Ecco!
Observei a satisfação dos nossos pracinhas vitoriosos, ao exibirem tudo aquilo como se fosse realmente nosso. Cantaram as riquezas do Brasil. Os nossos rios, florestas, a nossa vastidão geográfica, do tamanho da Europa. Nós tínhamos muito açúcar, muita borracha, muita carne.
- “Sí, in Brasile nè manca niente! C’è tuti, tuti! Molte zucchero, molte mangiare, molte gome, tuti, tuti!”
Os italianos não podiam conter a admiração e exclamavam:
- Per Bacco!
E os nosso pracinhas, num gesto, ao acenderem um cigarro Chesterfield, Camel ou Luck Strike, ofereciam-no ao italiano, que logo o tomava, examinava, cheirava e às vezes o guardava pra depois da ceia. “Si, doppo la cena....” E amaldiçoava a guerra, Mussolini e os alemães, pois antes da guerra, não era assim. “Prima la guerra...”
E enquanto os italianos assistiam com espanto todo aquele aparato de material, os soldados presenteavam as crianças com caramelos e chocolates (carameli per bambini). Os pracinhas e não só eles, porém muito tenente, muito capitão, etc., estavam penalizados com a pobreza, a miséria da Itália. Muitos julgavam-nos até um povo primitivo. Quis chamá-los à realidade, mas já se haviam esquecido do nosso Brasil ou tinham em mente as avenidas asfaltadas das capitais debruçadas no Atlântico...
Aos meus soldados nada disse, porém. Escutava aquele entusiasmo patriótico, como demonstração do moral elevado da tropa. Mas fiquei embaraçado, quando certa vez, um italiano instruído e curioso me perguntou:
- Senhor Tenente, quantas fábricas de automóvel existem no Brasil?
Respondi-lhe que não estava a par desse assunto e mudei de conversa.
Uma verdade terrível empolgou-me a mente: nós não fabricamos nem bicicletas... E achei graça quando um soldado que havia observado o trabalho das mulheres no campo, comentou:
- Aqui, “seu” tenente, as “fêmia” não tem vez! O Senhor não viu? Até as vacas puxam o carro!?
A Itália era como uma grande fazenda organizada, com enormes benfeitorias e oficinas erguidas por inúmeras gerações através dos séculos. Com os seus apartamentos bem arranjados e cheios de obras de arte. Seus campos cultivados, etc. De repente, um rio cresceu e inundou tudo. Os homens não puderam trabalhar. Algumas máquinas foram arrastadas pela correnteza. Alguns móveis, também. A lama chegou até a encher alguns apartamentos. Mas quando as águas baixarem, os homens voltarão ao trabalho e saberão o que têm a fazer. Máquinas e tornos matrizes fabricarão peças e máquinas destruídas. Faltará açúcar, chocolate e provisões por algum tempo. Depois, as coisas surgirão. O mesmo será na Holanda, na Bélgica e na própria Alemanha destruída. E é muito mais fácil fazer isto, muitas vezes mais, em menos tempo do que nascerem homens, criarem-se, crescerem, educarem-se, reproduzirem-se, em número suficiente à conquista deste nosso Brasil imenso, disperso, empírico, sem comunicações, até que ele seja um grande país, uma grande e próspera nação.
A Itália já produziu um “Netunia”, um “Oceania”, seus automóveis e máquinas. Dentro em breve fabricá-los-á outra vez, antes que façamos bicicletas. Um dia produziremos tudo isto e muito mais, desde que sejamos mais práticos, mais objetivos, menos teóricos, menos burocráticos.
c) Os brasileiros voltam a encontrar o Brasil...
Os pracinhas só sentiriam a realidade, quando deixassem as terras da Itália; quando a FEB se desligasse do 5o Exército americano; quando eles voltassem outra vez, para a outra conquista, a do pão de cada dia... Não teriam mais aqueles agasalhos. Não teriam mais aqueles alimentos em quantidade e qualidade tais que mantiveram e até superaram as suas reservas físicas, apesar da pressão psicológica a que foram submetidos e do desgaste a que fora entregue a sua Divisão, na guerra contra a pertinácia do tedesco audaz, dominando as alturas em defensiva.
Muitos e muitos teriam de voltar às favelas, aos mocambos, às taperas de taipa, de sopapo, às casas de sapê por estas terras a fora sem água, sem saneamento, sem luz elétrica, sem estradas, sem transportes no domínio das moscas e dos mosquitos, depois daquela abundância de tudo e até dos banhos quentes e frios dos acampamentos americanos...
Aqueles que voltaram, como eu, em navio brasileiro, experimentaram antes de pisar em terra natal, a mudança do trato, do ambiente: vinham deitados pelo chão, nos corredores e convés do vapor.
Os que mandaram o navio daqui, eram completamente “rombudos”, em matéria de assistência e compreensão. Gente do Lóide, gente do Estado. Se fosse uma companhia de particulares não teriam procedido assim. O que custava um simples toca-disco e um alto-falante? Alguns discos de música brasileira, mesmo pelo convés naqueles vinte dias de viagem (o dobro do transporte americano) por vezes expostos à chuva e às intempéries, seriam a recepção musical brasileira, um abraço fraterno e amigo.
Mas não. As marmitas não eram mais nem lavadas direito, quanto mais esterilizadas, como no sistema americano. Faltou água para o banho. A comida má. Em pouco tempo, os desarranjos intestinais tomaram conta da tropa. Os jornais do Recife (primeiro porto nacional) testemunharam os protestos dos soldados, logo ao desembarque. Correu, porém, uma lista de assinaturas (que muitos firmaram sem maiores formalidades, pois eram comuns as tomadas de nomes como recordação dos camaradas), declarando a ótima qualidade dos alimentos. Como sempre, as realizações no papel...
Mas, os soldados deste navio, compreenderam, talvez inconscientemente, a razão de ser do conforto que tiveram na Itália: quando o barco entrava no porto do Recife, quem nos saudou primeiro foi um grande transporte norte-americano. E o fez estridentemente com os ruídos dos seus apitos e os acenos entusiásticos dos seus marujos. Então, os pracinhas, por eles mesmos, de forma imprevista e espontânea começaram a cantar o “Deus Salve a América!”
Ouvi no 6o Regimento de Infantaria, o seguinte fato: - um oficial superior americano fôra visitar, devidamente acompanhado por outro oficial brasileiro, uma posição nossa em Torre de Nerone, de grande importância para todo o 5o Exército. Esta posição era constantemente visada pelo inimigo. O capitão (aliás muito popular no Regimento) aproveitara a presença momentânea de um superior, para se queixar dos reiterados atrasos das provisões, o que deixava os homens de sua companhia em situação difícil.
Este capitão foi punido, mais ou menos sob o fundamento de se portar de forma inconveniente em presença de oficial superior estrangeiro. Entretanto, este mesmo “oficial superior estrangeiro” quando lhe estendeu a mão em despedida, referindo-se à sua reclamação lhe dissera o seguinte:
- “É assim que se comanda, capitão!”
Sim, porque os norte-americanos não desejavam arrastar consigo, uma divisão de subnutridos. E quando não encontram as coisas como eles desejam, dizem-no com aquela franqueza a que nós não estamos acostumados, como os seus médicos diziam com toda a naturalidade, aos comandantes de companhia, quando a situação higiênica não andava de acordo com as suas normas. É sempre aquele princípio: um homem se faz em vinte anos e uma máquina em vinte minutos. Estraguem-se as máquinas, poupem-se os homens.
Sim, a Itália era outra paisagem com outra moldura pra aqueles homens. Outra impressão bem diferente daquela do seu velho e conhecido “Exército de Caxias”.
Na arremetida da Força Expedicionária através da Península, os soldados sentiram de perto o contato de um povo diverso, outros costumes e de uma geografia inédita e surpreendente para eles. Deitaram-se em terras brancas de neve, em campos floridos, pelos trigais. Fizeram, daquelas casas campesinas, quartéis de inverno. Dormiram em suas camas, em seus celeiros. Beberam-lhes o vinho e cantaram-lhes as canções.
Ah! a Itália! Há de suspirar o pracinha em todos os recantos do Brasil. E contará aos filhes e netos, aos amigos e vizinhos, histórias de mil e uma noites.
Muitos dirão:
- Aquele cara é um garganta!
Outros mais “patriotas” dirão:
- Por que ele não volta lá pra Itália?
Mas ele estará ouvindo suas próprias palavras; suas últimas palavras.
- “Doppo domani noi andaremo via de qui”
- A rivederci - Itália!
E os expedicionários recordarão canções como Mamma, La Strada del Bosco, Bambina tu me me piace. Firenze Dorme ou daquela traduzida em todas as línguas inclusive para a italiana: Lili Marlene.
Em Mamma era a recordação das mães distantes; na Strada del Bosco, o passeio romântico e bucólico pelo bosque; em Bambina tu me piace, como o nome diz, a declaração de amor às garotas que lhes agradaram. E como naqueles versos de Firenze Dorme, há de haver sempre em suas recordações, um Arno de prata espelhando um firmamento de estrelas fosforescentes e sorrisos de vida e alegria daquelas signorine, como eternas canções napolitanas. Jamais faltará, também aquela rosa de Lili Marlene, presa nos seus corações “com o fio dos seus cabelos de ouro”...
E, viva la Torre de Pisa
Che pende, che pende
E non va a giù...
Para eles, assim foi a Itália. Assim serão as suas recordações...
DIFERENCIAÇÃO DISCIPLINAR.
a) O brasileiro, um indisciplinado.
Da mesma forma que a uma nação poderosa é fácil montar um exército poderoso, a uma nação disciplinada fácil é manter um exército disciplinado.
Constituímos nós uma nação disciplinada? O brasileiro, é em geral indisciplinado. Acusam-no de preguiça, indisposição para o trabalho, ineficiência, vagabundagem. O que lhe falta, porém, é legalidade, educação positiva especializada e estímulo. Qualquer trabalho de que se não tenha conhecimento fundamental é enfadonho.
Para nós, a obrigatoriedade é, talvez, pior do que o próprio esforço. Existe como que, um complexo de escravidão. É evidente que em toda parte do mundo há pouca vontade pelos trabalhos pesados, trabalhos braçais. É natural. A lei do menor esforço faz flutuar o homem em balões de desejos cômodos. Nós viemos, porém, há bem pouco tempo, de uma época em que os “senhores” mandavam e os “escravos” trabalhavam. E, parece, existe até hoje esta revolta mestiça dentro de nós. Os empreendimentos mais pesados, de amanho da terra, de escavações, de limpeza, qualquer coisa que aproxime da criadagem, são ligados inconscientemente à idéia da servidão e o homem os repele com um pavor de recém-liberto... É como se uma voz, interior relembrasse: - Não sou escravo! Talvez esteja aí o hábito das mãos finas, a aspiração do mando, da autoridade, que atrai o homem aos cargos políticos, às poses administrativas, aos manda-chuvas da terra - (sabe com quem está falando?) etc.
Certa vez, num “engenho de açúcar” em Pernambuco, surpreendi o “Senhor de Engenho” procurando os alfabetizados entre os trabalhadores da sua propriedade para lhes indicar os nomes ao sorteio do Exército. Perguntei-lhe porque não enviava os analfabetos que seriam alfabetizados (neste tempo, eu entendia ainda menos de Exército) ao que o proprietário respondeu:
- Homem alfabetizado é homem perdido. Aprendeu a ler não quer mais trabalhar. Vai tocar viola, cantar modinhas, passar jogo de bicho. Não pára mais. Muda-se para a vila e da vila para a cidade. A enxada para ele é uma desonra. Se esta é a verdade, eu lhes apresso a viagem...
É possível que esteja neste complexo da escravidão, o pavor acentuado que temos por certos trabalhos, a procura dos cargos burocráticos, dos empregos públicos ou de escritório onde o cidadão engravatado e limpo se sujeita a perceber muito menos do que um mestre pedreiro, um pintor, um mecânico. Engenheiros, agrônomos, químicos, até há abem pouco tempo de mãos finas, engomados ante as mesas ministeriais. Os bacharéis verbosos, os “doutores”, como os proprietários de terras - capitães, majores, coronéis.
Recordo-me, agora, do prazer sádico, da vingança daquele sargento em Recife, ao tempo da guerra, dirigindo-se aos soldados:
- Quem sabe inglês aí?
Diversos se apresentaram. Então, o sargento comandou:
- Ótimo. Peguem aquelas vassouras e vamos para as latrinas!
Certa vez, o pelotão ocupava uma granja, no norte de Itália. Usávamos uma privada rústica, situada externamente ao lado da casa dos contadinos (como é comum lá). Dos americanos recebíamos todo o material, inclusive um pó desodorante. Mas, ninguém queria fazer a limpeza à vista dos italianos. Porém, algumas noções sobre a necessidade do asseio e a afirmativa de que a prática da higiene não humilha ninguém, fizeram desaparecer o “complexo”.
A indisciplina nacional salta aos olhos em qualquer parte. No trânsito, está a confusão que “uma semana” de ordem não redime. O atraso dos trens, o das chegadas ao trabalho e às saídas dele, a desobediência das posturas e regulamentos, etc. Quantas vezes tenho visto, por cima do letreiro: - “É proibido conversar com o motorista ou com motorneiro”; o guarda que pegou uma “carona”; “pagar” a gentileza com dois dedos de prosa com o motorista ou o condutor...
Cada cidade tem uma percentagem assombrosa de habitantes abandonados ao seu destino solapando a levíssima camada de educação das minorias instruídas e orientadas. Pelas ruas, os papéis andam soltos. Nos encostos dos bancos de cinema, bondes e ônibus, e até em paredes, as marcas dos pés inquietos. As crianças, fugindo das “camisas-de-força” dos apartamentos para as ruas bater bola e brincar de bandido. E o rádio leva até elas os teatros comerciais, onde na exploração do som, quase que só existem tiros, sadismo, choro e ranger de dentes.
Nos cinemas mais distintos, em meio de cenas artísticas e elevadas, é comum ouvirem-se piadas de mau gosto, gritinhos neuróticos, histéricos, assobios acolhidos pelas gargalhadas de aprovação. As estatísticas de homicídios, assaltos, violências, inclusive de autoridades, falam por si mesmas, do respeito em são tidas as leis e os princípios mais comezinhos de educação social.
Não seria, pois, de admirar, que a disciplina no Exército, sofresse, por um lado, os efeitos do reflexo nacional e tivesse, por outro, a repressão mais violenta, no sentido de conseguir um soldado respeitador, pontual e ordeiro.
Analisaremos, por conseguinte, nesta parte, a diferenciação disciplinar sentida pelos soldados, no Brasil e na Itália.
b) A disciplina rotineira do quartel
A vida do conscrito é constituída por uma série permanente de desfalques na sua vontade e liberdade, em benefício da equipe, do conjunto. É uma fase em que o indivíduo, depois de chegar à idade adulta, tem que regredir em sua vontade já liberta. Em benefício dele próprio, da segurança de sua vida e da vida dos outros, é que se torna necessário que cada um aja em função de um todo.
Em qualquer exército de qualquer parte do mundo, esta iniciação na vida militar é desagradável. Uma porção de princípios, etiquetas, formalidades, simbolismos, teorias, disposições regulamentares, reduz o pobre mortal a uma vontade comandada por outrem.
Só mesmo a contingência de todo um povo ver-se ameaçado pela ferocidade de outro, a necessidade imperiosa de todos defenderem como um só homem as fronteiras nacionais, é que obriga um cidadão a tamanho sacrifício e situa outro em tão honroso quão delicado posto como o de comandante.
Depois de fardar-se e apresentar-se aos de casa todo ufano, vai sofrer a primeira timidez, ao sair à rua. Começa a sentir-se olhado de todas as direções. No quartel, ele entra como um anjo e o sargento o espera como um demônio... O recruta é a melhor distração do ano. É como se o sargento quisesse logo descontar os juros do esforço e do suor que vai derramar no fazer daquele “paisano” um soldado...
Será breve um farrapo. Acorda sempre pela metade do sono. O soldado adaptou ao toque de alvorada, uma letra que é a expressão da sua angústia:
“Ai meu Deus
Que vida apertada
Nem bem eu me deito
Já toca a alvorada...”
Ou então:
“Ai meu Deus
Que vida esta minha
Nem bem eu me deito
O Plantão me aporrinha.”
Desde que acorda até à noite, tem que fazer as coisas às carreiras. A ordem-unida, o manejo das armas, a maneabilidade, a instrução física, as marchas, o serviço na guarda, a limpeza dos armamentos, a instrução geral, toda um invenção diabólica comprimida em um ano de serviço militar, como se fôra mesmo de propósito para não “dar vez” ao soldado... Sua, esfola-se, suja-se na terra ou na lama, lambuza-se de óleo quando não se “perfuma” no cheiro dos muares...
Tem que saber dirigir-se ao superior, perfilar-se, fazer a continência, “cantar” o número, o nome, a subunidade, a unidade... e tudo com a mão esquerda bem colada à coxa, e a direita em continência, sem baixá-la, a não ser que o oficial ordene. E se o braço esquerdo não cai naturalmente, se está arqueado, o superior dirá que ele é uma asa de açucareiro... Se na farda lhe falta um botão, o superior dir-lhe-á: Você está nu, soldado. Vista-se e venha falar comigo!
Na vida civil, a gente só cumprimenta aquele a quem estima. E tanto pode ser um bom dia, um “alô”, um “o que é que há, velhinho” etc. Mas o soldado tem que andar sempre vigilante, em cada rua, em cada esquina, em cada canto. E não adianta sair à paisana, porque soldado só pode andar fardado.
À noite, lá está ele na rua, na praça com a namorada (até à hora de recolher ao quartel) ou aproveitando uma folga que teve por ter feito uma marcha de vinte ou trinta quilômetros. Mas, aqui e ali passam os cabos, os sargentos, os oficiais... O idílio é constantemente desmanchado pelas continências
Às vezes, no ônibus, está ele todo satisfeito, bem sentado junto à vizinha. Entra um superior e lá se foi o lugar...
Teve espírito, portanto, o autor (não sei se anônimo) desta quadrinha que ouvi de soldados do Exército em Pernambuco, com a música do toque de corneta para o banho, em que o soldado se crê indigno de ser amado:
“Mulher que ama soldado
Ama cachorro também
Cachorro ainda tem rabo
Soldado nem rabo tem...”
Ou então este dito bem carioca: - Soldado não tem vez (isto é, oportunidade).
c) Uma herança do Patriarcalismo na Caserna.
Esses princípios comuns a todos os quartéis do mundo, não foram inventados especialmente para martirizar o cidadão que veste a farda e sim para lhe imprimir a vigilância, a presteza, a vivacidade na execução das ordens, mesmo ante o perigo do combate - finalidade precípua da instrução militar.
Entretanto, esta necessidade de moldar primeiro um cidadão que já deveria vir formado pela vida civil, exagera as fronteiras do rigor disciplinar do Exército e acentua muito mais a diferença entre o comandante e o comandado.
Não se trata da simples separação de alojamento, de rancho, de banheiros e privadas, de lugar de recreação, por si mesmos já bem diferenciados. O soldado brasileiro é tratado como um colegial, transição do patriarcalismo já analisado. A este homem que o Exército tem que preparar no quartel não se dá a amplitude da responsabilidade que deve ter. É a mesma coisa que ocorre nas fábricas, nos escritórios, nas empresas particulares: - é preciso a presença do chefe, do fiscal - como os alunos necessitam de um inspetor. Desde que o “mestre” esteja ausente, o “aluno” acende um cigarro, faz uma garatuja no quadro negro, joga uma bola de papel ou ensaia uma palhaçada qualquer... É outro defeito de origem nacional. Partimos do pressuposto de que todo o mundo é desonesto ou inábil: do princípio de desconfiar de tudo; criamos uma série de leis e regulamentos minuciosos; surgem os papéis, os selos, os carimbos. Os recarimbos, os autos, os flagrantes, as inquirições, os julgamentos mais complexos e intermináveis. Todo o mundo fica inibido, peado pelas exigências e pela burocracia. Finalmente, quando se apanha um que falhou, que furtou, que falsificou um cheque ou infringiu algo, não vai sofrer lá grande coisa... A falsa piedade, os arranjos, as provas, as testemunhas, as desistências, tudo favorece. Se há países em que se não pode acreditar muito na fiscalização, o Brasil é um deles. Seria necessário criar o fiscal do fiscal até o infinito. Os americanos, neste ponto, são mais práticos. Partem mais ou menos do princípio de que todos são bons e deixam correr a vida. Mas, uma vez apanhado o faltoso as conseqüências são duras. Doa a quem doer. Desta forma os honestos e bem intencionados não têm os seus passos tolhidos pela minoria desonesta. Tanto na paz como na guerra, o homem representa em produção o que é realmente e não o que poderia ser. O que não cresce espontaneamente, de forma lenta e constante, não adquire consistência.
Um soldado “colegial” é uma preocupação permanente. A sua personalidade não atinge as alturas que lhe podem exigir as circunstâncias.
Este receio do relaxamento disciplinar entre comandante e comandado é que estreita de forma bem acentuada as exigências regulamentares de uns para outros, de maneira por vezes exageradas.
O soldado brasileiro saiu deste plano para outro muito mais restrito decorrente da própria convocação para a guerra. A vida de quartel piorou muito. Em primeiro lugar, a certeza de que embarcaria para a Europa onde a guerra o esperava plantou-lhe a angústia instintiva da morte. Ocorre nos homens, nestas situações, como nas plantas ameaçadas; há como que um desejo de vida de reflorir e frutificar. Obrigados a penosos exercícios, submetidos a mais fortes exigências físicas, uma vez em folga, esses homens bebiam, expandiam-se, do que resultavam certos excessos mal compreendidos e maiores depressões físicas.
É preciso observar que esses soldados receberam sobre os ombros, o encargo de, eles - uma minoria incrível - desagravar e representar o Brasil na guerra que este declarara. Não existia uma situação geral de luta em que todo um povo tem que servir em qualquer frente e faz da desgraça geral um estado comum. Deste “élan” nacional que arranca das profundezas da alma, em lampejos de entusiasmo patrióticos, a vontade de combater. É, às vezes, chocante, ter um homem de lutar e talvez tombar longe de sua Pátria, quando sabe que atrás dele ficam dois mil; dos vinte mil que seguem, ficam quarenta e cinco milhões...
Assim, após sofrerem uma compressão tremenda, desde que se tornaram expedicionários, pois a “vida de soldado” piorou, ao embarcarem sentiram o desafogo que analisaremos.
d) Disciplina militar americana.
Desde que sob a organização americana os homens caminharam para o grande navio transporte, outra seria a sua vida, outra a sua personalidade, outras as circunstâncias.
As emoções e saudades já começaram a indiferenciar os homens, comandantes ou comandados. As próprias fardas, feitas para dificultarem o discernimento inimigo, já não distinguiam tanto o superior do inferior. O oficial já não tinha bagageiro que lhe carregasse o saco. Cada um que transportasse o seu e com ele galgasse as escadas do navio.
Ali a alimentação era igual para todos. Quem não prestasse serviço, oficial ou não, só teria direito a duas refeições diárias. Os que trabalhavam, mesmo soldado, recebiam três. Todos, indistintamente, estavam sujeitos aos mesmos perigos, aos mesmos rigores da guerra, pois a morte não tem preferências. Daí por diante as coisas seriam bem diversas...
Até aquele momento, o soldado do Exército tinha dado o seu “murro”, curtido o seus sofrimentos e as suas desigualdades sem que ninguém lhe atribuísse nenhum destaque. Estes, porém, que iam partir com uma interrogação atravessada na garganta, já haviam recebido palmas e flores pelas avenidas. Os jornais proclamavam, em negrito, qualidades que eles nem imaginaram. E dentro em breve, eles que sempre foram chamados, simplesmente, “praças” receberiam o diminutivo carinhoso de “pracinha”...
Quando o grande transporte ganhou o alto mar, esta bela cidade do Rio de Janeiro, já invisível, deixou de ser o torrão natal daqueles brasileiros de todos os recantos e cada um aninhou dentro de si as suas saudades. A imensidão Atlântica fez de cada homem uma enseada tranqüila. Depois, a alma artista e simples do povo começou a falar pelas cordas dos violões e dos cavaquinhos, das cuícas e pandeiros. E o homem cantou músicas sentimentais como “Na Baixa do Sapateiro” e relembrou “a morena mais faceira da Bahia...”.
E veio o cinema americano em filmes novinhos para alegrar o soldo. E vieram as brincadeiras, as lutas de boxe, a presença de Netuno na passagem do equador, as músicas do alto-falante, as notícias, o serviço religioso. Uma vez ou outra os exercícios de salvamento ou o toque de alarme lembravam a presença do inimigo naquelas águas imensas em que só o radar penetrava.
A disciplina não deve partir somente do soldado. Deve estar em tudo que o cerca. E tudo naquele transporte emana disciplina e ordem. Tudo era feito a tempo e à hora. Os marujos em seus postos, juntos das suas armas, nos postos de observação, no trabalho de limpeza ou renovação da tinta, na cozinha, etc. Não se via o comandante. Não se viam oficiais dando ordens, sargentos para lá e para cá. Aqueles americanos pareciam mudos. Era como se cada um fosse comandante de si mesmo. E os brasileiros se adaptaram àquele estado geral como peças de máquina.
É que os americanos traziam da vida civil e mecânica, a sua disciplina natural. Nos Estados Unidos, todos sabem mais ou menos o que seja a atenção à lei e o preço da sua desobediência. Governantes e governados se respeitam e se acatam, porque ambos respeitam e acatam a autoridade maior que é a Lei. As suas forças armadas, parcela daquele todo, não podiam fazer exceção. Não se viu o Congresso dos Estados Unidos punir publicamente um dos mais bravos e valorosos generais - o General Patton - por ter esbofeteado um soldado em crise histérica? A posição não cria imunidade. A falta ou o crime de uma autoridade, por mais alta que seja, não desmoraliza as instituições. E a impunidade daqueles que mais as deveriam respeitar que o faz.
Cada um deve saber quais os seus direitos e quais as suas obrigações. Mas esta mentalidade legal, que sem dúvida existe mais perfeita ainda, em países como a Suécia, Suíça, Inglaterra, etc., não é conseqüência espontânea. É, sim, fruto da vigilância permanente do espírito de ordem e de legalidade, vividos há séculos. O mais é uma simples decorrência destas. Soube que na Suíça, durante a guerra, nas repartições, nos escritórios particulares, no comércio, os civis trabalhavam equipados. A seu lado, estavam as carabinas, a sua máscara, os capacetes de aço. A um toque de alarme, todos estariam prontos e correriam a seus postos para defender a pátria. E cada um sabia o que fazer. Dir-se-ia que o comando americano poderia prescindir da vigilância que mantinha, pois o soldado - um civil que vem de uma vida organizada e legal - por si mesmo saberia manter aquela constância e equilíbrio no cumprimento do dever. Porém, a autoridade, seja qual for, não pode esmorecer na constância da perfeição. A natureza humana é fraca e tende à inércia. Conseguida a ordem, é preciso mantê-la como a uma chama que se não pode apagar.
Vi, naquele transporte, como se conseguiu isto. Cada um é responsável pelos seus atos e obrigações da mesma forma que é senhor dos seus direitos e vantagens. Mas, o comando não espera pelo esmorecimento daquele padrão para remediar. Diariamente, o subcomandante do navio, acompanhado de um taquígrafo sai à inspeção mais rigorosa que eu já vi. É como se fôra a primeira, após um ano de ausência e, entretanto, é o comum de todo dia. De lanterna à mão, vai a toda parte. Entra em banheiros e privadas, camarotes e alojamentos, corredores e recantos, cozinhas e frigoríficos. Nada escapa! De lanterna acesa, agacha-se para ver por baixo dos móveis, esfrega o dedo sobre as coisas em busca de qualquer sujo, abre os armários e gavetas para ver a ordem interna, interroga, observa. Qualquer falta, uma simples torneira que vaza, uma caixa de descarga sem funcionamento uma desobediência regulamentar, ele a proclama e o taquígrafo anota.
Os nossos camarotes de oficiais, eram também visitados. Nós, os oficiais, tínhamos de varrê-los, apanhá-los, passar um pano úmido sobre o encerado, forrar as camas, limpar as pias e os espelhos e deixar à porta a lata do lixo para ser recolhida. Se na inspeção o camarote não estava “very well”, ou pelo menos “well”, a conseqüência era a cadeia.
Por obrigação acompanhei o subcomandante americano nestas inspeções e só não consegui entrar no frigorífico, porque o frio era demais... Da porta vi, porém, a ordem, arrumação notável das caixas de ovos, de frutas, de conservas. Que limpeza! De lá não emanava nenhum odor desagradável, que eu esperei encontrar em tão grande frigorífico, em meio de tão variado sortimento.
Ora, diante de uma inspeção real, assim, permanente, constante, honesta, o homem, qualquer que ele seja, compreende que é inútil deixar de fazer as coisas como devem ser feitas. A ordem, a obrigação, torna-se a rotina. E como o hábito é a repetição de um ato, os homens ao fazerem, todo dia, às mesmas coisas, habituam-se por si mesmos, dispensando que se lhes dêem ordens a cada passo, que se lhes dêem instruções a cada momento, que ocasionariam má vontade, atritos, vexames, gritos, sermões, relaxamento da autoridade, insensibilidade de caráter e confusão.
Em lugar dessa vigilância permanente (não sobre os homens, porém sobre as tarefas), imagine-se uma inspeção assim: um dia a tropa toma conhecimento de que um general ou outro oficial superior, no dia tal visitará o quartel. Um frenesi apodera-se de todos. Os soldados exercitam-se para uma apresentação exemplar. É um corre-corre, um limpa-limpa, um esfrega-esfrega, um lava-lava medonho. Bronze e metais ficam espelhando. O pátio do quartel, as privadas, banheiros e a cozinha são objetos de atenções especiais. Os detritos desaparecem. Os desinfetantes entram em ação. As moscas são apanhadas de surpresa numa guerra mortal. As coisas são arrumadas e o que sobre é empurrado para dentro das gavetas e gavetões. Ao chegar a autoridade, tudo está perfeito! Uma ordem do dia traduzirá a satisfação do general e todos terão uma folga justa e merecida após aquela azáfama terrível.
Mas o dia seguinte é um Deus nos acuda, pois muita coisa não será encontrada. A poeira, volta. As moscas, indecisas e descrentes, também. O mau cheiro... onde haveria de estar o mau cheiro, se não no seu lugar lógico e natural? E a cozinha? Um mercadinho de detritos, folhas, carnes expostas, panos sujos, o diabo!
Uma inspeção dessas é uma escola de ilegalidade, de fraude à lei regulamentar. É a indisciplina comandada porque ensina o soldado a ludibriar o seu superior.
Nós possuímos unidades modelos. Os nossos quartéis são, em geral, bem construídos. É fácil, por conseguinte, manter a limpeza. Onde existe vassoura e água corrente não pode haver mau cheiro. Se não existem detritos e se as latas ou depósitos de lixo estão bem fechadas, não pode haver moscas. É verdade que ao nosso homem falta, infelizmente, os princípios elementares de higiene. Não sabiam forrar as camas direito, o que constituía vexame para as enfermeiras. Presenciei isto no 7o Hospital em Livorno. Entretanto, apesar de ter passado ali alguns dias, as ligeiras palestras que mantive com eles, surtiram o efeito desejado. O elemento humano é bom, amoldável. O que lhe falta é educação. Aulas bem orientadas com utilização do cinema educativo mostrando o certo e o errado, seria o remédio. Alias, nós temos o Instituto Nacional do Cinema Educativo que poderia prestar ótimos serviços. As organizações cinematográficas que fazem filmes medíocres poderiam contribuir para a educação do povo pelo cinema, desde que o Governo incremente a produção de películas desta natureza, concedendo prêmios anuais que as estimulem. Para os cozinheiros, copeiros, ajudantes de cozinha, etc., só mesmo um microscópio... No dia em que se apanhar a água aparentemente limpa, os alimentos, aparentemente bons, e se fizer este pessoal ver pelo microscópio os “bichos” em movimento, neste dia acreditarão no micróbio e terão certeza de que “nem tudo que brilha é ouro”...
A disciplina americana parece diferir da nossa, precisamente porque ela não se exerce sobre os homens, individualmente, acompanhando-os como uma sombra feitora, porém sobre os resultados, os atos, as obrigações que deles se esperam. O regulamento manda que se faça assim. Cada um sabe como deve fazer. Então que se cumpra. Se o resultado não está de acordo com os preceitos regulamentares, com as determinações superiores, pune-se imediatamente. Este processo de dar autonomia ao homem, empolgando-o pela responsabilidade, pode ser exercido em qualquer circunstância e sobre qualquer elemento. Durante as oportunidades que tive de comandar, inclusive centenas de soldados descontentes, retirados de vários pelotões e que ficaram no acampamento em Francolise, fiz experiências que me parecem satisfatórias. Orientar o homem pela doutrinação; deixá-lo livremente e sob sua responsabilidade executar a ordem; puni-lo ou distingui-lo no final, se deixou ou não de cumprir o dever. Depois que a ordem, o asseio e tudo o mais se tornarem verdadeira rotina, o homem adquiriu o bom hábito e dificilmente o perderá.
e) Existe uma disciplina própria da Linha de Frente.
Já vimos acima, mais ou menos, a pressão que a vida de quartel imprime no conscrito, acrescida dos complexos da nossa formação nacional.
Outrora, as elites se dividiam entre os que permaneciam nas profissões liberais e os que seguiam a carreira das armas. Destarte, os seus filhos não se encontravam no quartel porque a tropa era formada pela massa comum e desfavorecida. O civil que ia ter no quartel era o “homem do povo”, que saía do “comando paisano” para o “comando militar”.
Se observarmos bem este aspecto da nossa formação encontraremos conclusões interessantes quando à estrutura mental das chamadas “Classes Armadas” e das “Classes Liberais” - militares e “paisanos”.
A proporção que nos democratizamos, estes sintomas vão desaparecendo. Houve, também, a grande influência da simplicidade e civilismo do Exército dos Estados Unidos. Acontece, todavia, que o militar em contato permanente com a grande proporção de soldados incultos, no esforço de fazer do nada - um homem respeitador da lei do quartel, um disciplinado, absorve grande parte daquela rusticidade. A falta de formação educacional e legal do soldado prejudica bastante a disciplina consciente. O inculto não pode transformar-se de uma hora para outra, senão pelo grito, pelo medo, pelo receio do comandante. A sua mentalidade não pode ter a noção do comportamento pelo dever, pelo direito, o que deveria ser moldado desde o berço no equilíbrio jurídico e legal de toda a nação. Em geral, a força é a condição primária que respeita. Desta forma o comandante, o militar corre o risco de influenciar o espírito pela autoridade, pela indiscutibilidade dos seus princípios, de suas ordens. Se isto ocorrer, pode ele caminhar para a intolerância.
Quando a disciplina não é consciente, o soldado despersonaliza-se, inibe-se, anula-se na inconstância, não adquire um ritmo racional no cumprimento de suas obrigações.
Ao pisarem na Itália ao som das bandas militares americanas, os soldados começariam a perceber cada vez mais a diferenciação disciplinar entre a sua vida no Brasil e na guerra, entre o que ele chamaria o “Exército de Caxias” e o “Exército da FEB”. Haveria de dar o seu “murro”, porém, sentindo o prazer da camaradagem, o valor da sua personalidade, a importância da sua “maioridade militar”.
Ainda sobre a impressão das ordens e contra-ordens, do manda e desmanda, da “última forma”, antes de seguir para a linha de frente ele traduziu em verso, com a música de “Deus Salve a América” o seu desapontamento com o “Saco A”, saco que acompanha o combatente que vai para o front:
Chegou a hora
Da cobra fumar
Saco “A”
Às costas
Ó que murro
Que a gente vai dar!
Pega o saco!
Larga o saco!
No lugar!
Chegou a hora
Da cobra fumar!
É preciso notar, entretanto, que a rigidez disciplinar decresce, naturalmente do quartel para os acampamentos de paz ou retaguarda da guerra, e desta para a frente de combate.
- Clermont
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3a PARTE
f) A disciplina na Frente, é mais humana.
Na guerra, os expedicionários encontraram, por entre múltiplos fatores, ambientes para a expansão da personalidade. Aquele rigor do quartel deixou de ser necessário. Em plena campanha a disciplina afrouxou as rédeas. Certas exigências - necessárias no quartel - perderam a razão de ser. Esta diferenciação disciplinar era flagrante.
Em combate, cada um está entregue ao seu destino, quanto aos deveres que deve cumprir. Um simples erro pode ser a morte. No oficial desaparece o “professor”; no soldado, acabou-se o “aluno”. Ambos eram combatentes e a teoria dava lugar à prática.
O instinto de conservação passaria a ser o disciplinador comum. Se um soldado procedesse de forma imprudente, seus próprios colegas reprová-lo-iam. Ninguém está disposto a sofrer as conseqüências de atos alheios, com sacrifício da vida.
Meditei sobre isto no deslocamento através do lindo e fértil Vale do Pó. Parecíamos perdidos. Os alemães desapareceram e nós precisávamos tomar contato com eles. Montamos os caminhões ainda com o sol bem alto. Corremos estrada afora num ambiente de desolação. Não há nada tão triste e silencioso como as ruínas recentes de um combate. Tudo o que antes representava vida palpitante de uma civilização transformava-se na figura mais completa da morte. Pelos campos, animais inertes. Galhos retorcidos, cortados, perfurados. Árvores prostradas nos rios. Ali, viadutos arqueados em destroços sobre a estrada. Barreiras derramando-se pelas estradas. Estradas desequilibrando-se em despenhadeiros. Vilarejos transformados em diabólicos e confusos depósitos de materiais de construção. Uma parede em pé guarda ainda um quadro. Por entre os montões das ruínas, estranha exteriorização de uma cozinha como uma natureza morta. As aves fugiram. Nem um cão vagabundo. Só o silêncio e uma poeira tênue e estática amortalham o espaço como se fosse, realmente, um vale de pó. De intervalo a intervalo, os agachados tanques tedescos apontam ainda os seus canhões inúteis e ostentam nas chapas de aço camufladas as queimaduras e os efeitos dos certeiros impactos. Desceu a noite e continuamos a correr atrás do que parecia um fantasma.
Tive a impressão de que estávamos passando pelo mesmo lugar. Os dez pneumáticos do meu caminhão gemiam sobre a terra revolvida das estradas carroçáveis. (Por que não íamos pelas auto-estradas? Estariam minadas? ) Aqui e ali letreiros alemães indicavam campos de minas: - MINEN. - Tê-los-iam abandonado na pressa ou as plantaram de propósito em terreno limpo para nos confundir? Depois, uma noite lívida, transparecia numa claridade de velório. Um frio penetrante e seco veio juntar-se ao da nossa inquietude. (O nosso avanço pelo Vale fôra tão rápido que constituiu um problema para a artilharia e para a aviação. Lugares tidos como ocupados pelo inimigo já estavam em nosso poder. Foi por isto, talvez, que um avião aliado bombardeou Zocca quando esta cidade já havia sido tomada por nós.)
(Neste deslocamento, escapei de um desastre, exclusivamente por ter cumprido o que julguei ser o meu dever. Na corrida um dos três caminhões do meu pelotão passou à frente. Numa rápida parada, tendo verificado este fato, desejoso de ter sempre à mão a minha tropa e como seria difícil manobrar naquela estrada carroçável, deixei o carro onde vinha e me transferi para o da frente. Alguns momentos depois, aquele caminhão que eu deixei virou desastrosamente num precipício. Morreram o motorista e os sargenteante da companhia. Os soldados ficaram todos feridos e com várias fraturas e só foram encontrados, parece-me, pelas tropas do 11o Regimento, no dia seguinte. Só o meu sargento auxiliar escapou ileso por ter saltado do caminhão, no momento exato da virada.)
Os caminhões corriam e corriam perseguindo uns aos outros como se ninguém quisesse ficar para trás. Numa encruzilhada não vi mais ninguém à minha frente. Para que lado teriam ido? Saltei e decidi a direção a tomar, observando pelo tato as marcas dos pneus na poeira da estrada.
O inimigo poderia estar oculto. As vilas emergiam de repente como cemitérios abandonados. Disparávamos as nossas metralhadoras, jogávamos granadas. Só as detonações ecoavam ao longe.
Corríamos há bastante tempo por entre parreiras erguidos como caramanchões sem fim. De repente, uma decisão superior nos faz parar. Então, o silêncio caiu sobre nós como um ruído imprudente. Vi como os soldados permaneciam quietos, embuçados em seus capotes. Ninguém ousou minorar a frieza com um cigarro. Nenhuma palavra...
Não me agradava aquela parada. Estávamos entre bosques, expostos na claridade branca da estrada. Se o inimigo estivesse oculto ali? Bastaria destruir os caminhões das extremidades e nos varar com as suas “lurdinhas” (a metralhadora alemã MG 42) antes que, atônitos, pudéssemos tomar posição.
De repente, um lindo canto de pássaro, de dentro do bosque cortou o silêncio que nos envolvia. Os alemães tinham o costume de fazer comunicações, imitando pios de aves noturnas. Do outro lado do bosque, bem perto de nós, outra ave lançou ao ar o seu gorjeio estridente, como resposta. O sargento ao meu lado perguntou-me:
- Ouviu, tenente?
- Ouvi.
Os soldados, apesar da fadiga, mesmo parados os carros não se levantaram dos seus lugares nem fizeram ruído. Evitaram descer até para verter água, fazendo-o de cima dos caminhões, com a natural precaução das minas traiçoeiras.
É interessante observar que os combatentes, usando capacetes e field-jacquets americanos, não traziam distintivos. Mas os sentidos se multiplicavam para ver e ouvir. Nestes momentos, os homens adquirem “olhos de jeep”...
Na frente, o perigo irmana a todos. Do soldado ao sargento, do comandante do pelotão ao da companhia, a identificação é em geral completa. O instinto, polariza os homens, reunindo-os. O exemplo é decisivo.
Conta-se que a um aspirante recém-chegado ao front fôra entregue o comando de uma posição avançada e perigosa. As provisões só podiam chegar até lá, em mulas e assim mesmo à noite, por causa da interceptação do inimigo. (Entregar um comando destes a um aspirante, sem antes promovê-lo à tenente, parece-me um erro de efeito psicológico desastroso para os comandados veteranos. A uma tropa é aborrecido a chegada de outro tenente. Todos desejam saber quem será. E se vem logo um aspirante...) Mas, como ia dizendo, logo na primeira ou segunda noite, os tedescos deram um “golpe de mão” vigoroso sobre aquele posto avançado. O pobre aspirante não pôde conter a sua tropa e, com ela, bateu em retirada. Entretanto, um cabo que estava em um dos flancos comandando um grupo, aferrou-se ao terreno e repeliu o ataque. Foi um sucesso! Já lhe haviam destinado uma condecoração. Quando o cabo chegou à companhia receberam-no chamando-o de herói.
- “Herói coisa alguma”, replicou o cabo, “se eu soubesse que estava sozinho, eu tinha é caído fora, também!...”
Ante esta declaração, não levaram mais em conta a realidade e desistiram da condecoração ao cabo...
Quando chega a hora decisiva, não se escolhem lugares especiais.
É conhecido o fato de um coronel, homem de coragem notória, que antes do bombardeio destruidor de Montese, estimulara os seus comandados, considerando-os afiados, dizendo-lhes:
- O meu batalhão está uma navalha!
No momento do combate, ele fôra examinar a situação realmente perigosa dos seus homens ante o bombardeio inimigo e tivera de repente que mergulhar na terra, é lógico. E o interessante é que, no meio daquela confusão, um soldado teve a presença de espírito de gritar:
- Aí, navalha!...
Mas, voltando à disciplina instintiva, imposta pelo medo, ante aqueles soldados quietos, silenciosos, sentados nos caminhões depois de mais de dez horas de viagem, recordei as nossas manobras no Brasil.
Nos combates simulados, o soldado sabe que o inimigo é uma ficção. Sabe também que os tiros e as explosões não têm outra conseqüência a não ser o ruído. Não há minas escondidas, nem perigo de vida. A disciplina neste caso, é muito mais difícil. O soldado cava um abrigo, sem entusiasmo. Não se protege devidamente. Expõe-se, escolhe lugares pouco apropriados para se deitar, etc.
Nas marchas de aproximação ou nas patrulhas noturnas, fazem-se ruídos incríveis, acendem-se as lanternas, quebram-se galhos de árvores. Era comum, ouvir-se bem longe, diálogos como este:
- João! Ó João!? Onde está você!?
- Tô aqui!
- Espera por mim!!
E era aquele zunzum, aquela conversa, uma praga, um palavrão...
Na guerra, porém, o perigo real é um disciplinador que está presente e vigilante. O homem não precisa que se lhe recomende silêncio. Ele mesmo gostaria de ter os pés tão leves, que nem tocassem o chão. Já não digo para evitar a explosão de uma mina oculta, mas para não estalar uma folha. O soldado que no Brasil, durante os exercícios, usava a sua picareta sem o menor entusiasmo, sob um bombardeio gostaria que a sua cabeça fosse uma perfuratriz que fizesse o seu corpo penetrar na terra como um arado... Ele cava com ardor desconhecido. Será capaz de cavar até com os dedos e as unhas, se não tiver ferramenta.
O tenente e o sargento, neste ponto, sentem um grande alívio. E os soldados mais autonomia. Por eles mesmos, terão mais cuidado com as armas automáticas, com os fuzis, funcionamentos e lubrificação. Não se esquecem das suas rações alimentares, da ferramenta de sapa, acompanham com maior vivacidade os movimentos dos seus comandantes.
Dão e recebem igual consideração.
Em compensação, os comandantes (cabos, sargentos, tenentes e capitães) vêem aumentar outras responsabilidades, surgir outras preocupações. Sim, porque o mesmo medo que disciplina e coordena, o mesmo instinto de conservação desenvolvendo a vivacidade do homem, pode criar, também, inibições e recalques, variando de pessoa, de conformidade com seu temperamento.
Conheci um soldado que se apegara à religião. Homem respeitador e querido pelas senhoras italianas que dele se despediam quase com lágrimas nos olhos e não se acanhavam de beijar maternalmente as suas faces de “mouro”. De uma feita, ao ouvir um ruído intermitente de avião, de aparência tedesca, corri ao celeiro para ordenar que se apagasse uma luz tênue que transparecia. Ao chegar ali, encontrei uma vela acesa e este soldado de joelhos, tirando o terço que outros também de joelhos, respondiam religiosamente.
Qual não foi a porém, a minha surpresa, ao terminar a guerra, ao verificar que este mesmo soldado, devoto e sério, transformara-se num verdadeiro mulherengo, e vivia desfiando um rosário de safadezas...
Outros podem dar-se às perversões de caráter, ao saque, à brutalidade e à embriaguez ou mesmo à covardia absoluta e incapacidade para o combate. Felizmente, estes casos mais graves, constituíam exceção, pois em geral somos um povo de boa índole, mormente se tivermos em conta, o abandono educacional em que vivem os nossos patrícios.
Durante os avanços, ao chegar a um determinado ponto, têm a tendência natural para se espalharem, por curiosidade de ouvir dos habitantes locais informações sobre os inimigo, de ver e observar os costumes, as coisas que os cercam. Se o estacionamento é mais prolongado, surgem as namoradas, as amantes...
Houve um soldado no meu pelotão, que por duas vezes desapareceu por uma das casas que pontilham os campos italianos, sem comunicar previamente ao sargento. Era um sertanejo nordestino, contador de histórias, que fazia todo o mundo rir nos momentos mais sérios. Por duas vezes, na hora de deslocar, faltava-me este soldado. Adverti-o seriamente de que o abandonaria desarmado onde estivesse, se repetisse a falta. Precisamente, quando do cerco da 148a Divisão de Granadeiros alemã, quando íamos deslocar em marcha, ele não estava presente. Por causa de um homem, não poderia retardar o deslocamento do pelotão. Só na madrugada seguinte, este homem me apareceu. Quando foi levado à minha presença, disse com uma espontaneidade que lhe revelava o estado de espírito:
- “Virge Maria, seu Tenente!”
Embora fingisse indiferença pela sua chegada e o incumbisse de uma missão, sem levar em conta seu cansaço, senti um grande alívio ao vê-lo de volta. Não sei como nos encontrou. Penso que não f6ora ele um sertanejo, ter-se-ia perdido. Mas era necessário dar o exemplo que, aliás, o corrigiu. Após a guerra, jamais repetiu a falta. Nos momentos de deslocar, vi-o sempre equipado e pronto. Era o primeiro...
Em geral, porém, o pelotão, a companhia, vive como família. Depois dos combates, como o de Montese, vi-os em repouso, reunidos, irradiando toda aquele pressão psicológica de um dos maiores bombardeios já vistos na Itália. Ora riam nervosamente comentando um fato, uma passagem perigosa, o aperto de um camarada:
- Puxa, fulano passou como uma listra!
Às vezes, reproduziam a aproximação das granadas em onomatopéias que mais pareciam a buzina de um Ford primitivo: fon-fon, fon-fon... É só pena que voa...
Falavam sem parar. Riam a valer. A pretexto de recordar um camarada que não voltou, que morreu (o próprio Capitão que fôra ferido por uma chuva de estilhaços) comentavam os fatos com sentimento, fisionomias abatidas e caíam num silêncio de pedra, angustiante. Nós todos estávamos sentados ali. O Capitão subcomandante da companhia, que assumira o comando em pleno combate, também. Os soldados interrogavam-no, nas conversas, pedindo o testemunho deste ou daquela comentário. Jamais tinha eu visto tamanha simplicidade, tamanha camaradagem. Aquilo era um desabafo. Segundo me contaram houve quem vomitasse sangue com o deslocamento de ar provocado pelas explosões. Realmente, o ruído era um só. O bombardeio extraordinário da nossa artilharia e se não me engano dos norte-americanos e ingleses juntavam-se ao do alemão, transformando aquela zona num verdadeiro inferno. (Eu vi no meio do campo, como que abandonada, uma bateria de poderosos holofotes aparentemente antiaéreos, colocados por trás de um monte e visando o lado inimigo. Pelo que me disseram, tinham por objetivo clarear as cristas dos morros ocupados pelos tedescos.)
Aquela vida em comum, vinculada pela ansiedade, sobrepôs-se às emoções humanas, às posições sociais, aos postos hierárquicos e proporcionou ao soldado brasileiro as balizas de um grande diferenciação entre a vida militar na paz e na guerra, entre o quartel e a campanha, fazendo-os distinguir o Exército Nacional, o Exército de Caxias, da FEB.
g) A falsa disciplina afasta a compreensão dos soldados.
Uma das coisas por que os praças em geral tinham antipatia, era o rigor disciplinar que os divorciava dos oficiais. Já não me refiro à diversificação dos ranchos, alojamentos, dos chamados “círculos”, mas à maneira de falar, à rigidez das atitudes e principalmente à continência em toda parte, a cada canto, a todo o momento, mesmo na rua. A obrigação de ceder o lugar no bonde, no ônibus, no cinema, o que constrange, principalmente quando o soldado, cabo ou sargento vai acompanhado de sua esposa. Observei, aqui no Brasil, que muitas vezes o praça se humilha mais fingindo que não vê o superior hierárquico, parando para ver uma vitrina, tomando direção diferente, por exemplo, do que se cumprisse logo seu dever fazendo a continência. Na Itália, começaram todos a imitar o norte-americano, em cujo Exército não existem estas exigências, pelo menos na prática. Na rua, vi cruzarem-se oficiais e soldados cada um para seu lado, sem se saudarem a todo o momento. Na fila do teatro ou cinema, a vez era do primeiro que chegasse. Nos ônibus e transportes, o lugar era de quem o encontrasse vazio. Isto, a princípio, me deu a impressão de que os norte-americanos eram “apaisanados”. Mas é um engano. Quando o soldado, sargento ou oficial tem que se dirigir a um oficial superior ou se é por este interpelado para um consulta, uma informação qualquer, em plena rua, perfila-se, faz a continência com vigor militar, numa atitude correta e respeitosa como um cidadão educado trata em público um desconhecido. Eu os vi, também, nos quartéis, quando se dirigem a um superior. Em serviço, o soldado norte-americano é “mil por cento” soldado. Recordo que tive que ir certa vez a um quartel americano em Florença. Quando para lá caminhava observei a atitude da sentinela, que em passadas marciais ia e vinha na calçada do quartel. Todos os seus movimentos se repetiam com precisão matemática. Chegava até à extremidade, parava, olhava de um lado e outro, fazia meia-volta (diferente da nossa) e assim de um lado para o outro, sempre na mesma atitude, sempre do mesmo jeito, como determinava o seu regulamento. Quando cheguei à altura da entrada do quartel, encontrei-me com ele. Parou, fez um movimento para mim desconhecido e só quando percebi que ele me apresentava armas e respondi à continência, foi que ele fez “ombro-arma” e prosseguiu impassível a sua caminhada...
Tive a oportunidade de verificar em fotografias e noticiários cinematográficos de expedições científicas e civis que o sistema é o mesmo: cientistas e mecânicos, ajudantes, auxiliares, entram na mesma fila pra a “bóia”, sentam-se nos mesmos bancos. É o resultado de uma nação organizada, disciplinada em que cada um sabe quais as suas obrigações, os seus deveres, sem que a camaradagem quebre o respeito que todos devem ter reciprocamente. Contaram-me, também, que nas fábricas e oficinas norte-americanas, operários, gerentes, mestres, técnicos andam de macacão ou em maga de camisa, sendo difícil para o visitante distinguir, à primeira vista, o mestre artífice, o técnico, o engenheiro ou químico do operário comum. À noite, numa “boate”, num “night-club” metido em seu “smoking” pode estar o engenheiro ao lado da mesa do simples operário, jantando, rindo, divertindo-se... Esta educação e esta disciplina da vida civil de padrão elevado não poderiam sofrer, dentro dos limites da organização militar, solução de continuidade.
No front, assim vivia o praça brasileiro com os seus oficiais, por força das circunstâncias da guerra, já analisadas acima. Já haviam observado o sistema norte-americano e, naturalmente, tomaram aquela modificação como sendo própria à FEB, e não como uma conseqüência do combate da guerra.
Tudo isto distanciava muito a Força Expedicionária do sistema disciplinar vivido no Brasil, acentuando cada vez mais os traços diferenciais daquilo que o pracinha chamava o “Exército de Caxias” e a FEB.
h) A rotina, mal aplicada.
Lá mesmo na Itália existia o Depósito do Pessoal, que relembrava ao soldado da frente a vida militar no Brasil. É que o Depósito, como retaguarda, tinha que manter maior disciplina, como se fosse um acampamento de paz onde os efeitos da guerra, o medo, o instinto de conservação e a camaradagem não criaram o clima mais solidário da frente.
E o homem do front sentiu isto de tal forma que consideraria um castigo se o enviassem para o Depósito. Por sua vez, os veteranos não eram bem vistos ali... A nós - oficiais recém-chegados, em aulas cheias de teorias (uma das quais afirmava que “o soldado alemão em defensiva não vestia a pela do inimigo” - princípio clássico que havíamos aprendido e que averiguei não ter caído em desuso) nos foi recomendado muitas vezes:
- Não dêem ouvidos às “histórias do front”.
O soldado da frente que batesse ali, estava frito. Não poderia sair, a não ser fugindo; tinha que ficar naquela favela feita de pinheiros abatidos, sem contato com mulheres, sem distração, deslocado do ambiente dos seus camaradas do front. Acordava com a alvorada. Tinha que entrar em forma para os exercícios de ordem unida e combates simulados... E se quisesse sair por ali apenas com o elegante e confortável gorrinho de lã ao invés do capacete de aço, caiam-lhe em cima como vespas. Não fizesse continência aos duzentos oficiais que por ali viviam para ver uma coisa! O seu descanso era o ruído das metralhadoras e das explosões das “bazookas”. Entretanto, parece-me que somente um ou outro ia bater lá. A frente precisava de soldados. Aliás, até hoje não compreendi porque as companhias viviam desfalcadas no front enquanto o Depósito mantinha milhares de soldados. No front, soldados ocupavam postos de cabo, cabos de sargento, sargentos de tenente e lá no Depósito aquele pessoal todo...
O Depósito era para os veteranos da frente a lembrança mais viva do Brasil, do quartel, no que ele tivesse de desagradável.
Quando terminou a guerra, um sargento meu foi até lá, conseguir um meio de receber os seus vencimentos. (Eu também passei três meses sem receber.) Quando o sargento voltou eu perguntei:
- Como vai o Depósito?
- Ah! Tenente, lá, a guerra não terminou ainda! Eu ia entrando calmamente e de repente quase me atiro no chão. Foi um tiroteio tão forte que eu pensei que os tedescos tinham voltado à guerra outra vez....
CONCLUSÕES.
a) problema da assistência psicológica.
É meu desejo chamar a atenção dos oficiais da ativa estudiosos e de visão larga, para este ponto, visto que apenas contribuo com o meu depoimento despretensioso, enquanto eles muito poderão fazer com os seus conhecimentos especializados em prol de um assunto de alta relevância no campo da disciplina e bem-estar do homem durante a guerra - de efeito psicológico imprevisível na formação e sustentáculo do moral da tropa.
A pressão de cima para baixo numa guerra é enorme. Toda a tropa da frente recebe o impacto de duas forças contrárias: a do inimigo que procura barrá-la por todos os meios materiais e a do Comando que a arremete contra o inimigo, usando de todos os meios materiais e psicológicos.
O homem do front tem assim o seu consciente terrivelmente comprimido pelo instinto de conservação e pelo cumprimento do dever, do que podem advir recalques e complexos incalculáveis, capazes de provocar profundos desequilíbrios físicos e mentais. Seria de mister, por conseguinte, a bem da saúde do homem que voltará à vida civilizada e da própria sociedade, que esses recalques fossem de momento em momento, sublimados por um repouso longe do front, onde o homem pudesse tomar contato com a vida civilizada de cujos hábitos e ambientes, a servidão do combate o afastara. Este é um ponto conhecido. Preciso é, pois, que seja levado em consideração como uma das teses mais importantes no planejamento da vitória sobre o inimigo.
A pressão exercida pelo Comando brasileiro foi bem acentuada. Pareceu-me, todavia, que esta rigidez decorreu da grande responsabilidade dos nossos comandantes que, apenas com uma divisão, representavam o Brasil na Segunda Guerra Mundial. Os brasileiros não podiam falhar, custasse o que custasse. Naturalmente, se se deixasse uma tropa à vontade, quase não haveria avanços... Mas, nós éramos apenas uma divisão. Se fracassássemos, seria o descrédito para a Força Expedicionária Brasileira. Daí a pressão ter sido tremenda e por vezes exaltada.
Isto criou uma mentalidade de indiferença e até de desestima pelo Alto Comando.
Surgiu um fatalismo displicente e irônico na Frente de Combate, que poderia ser traduzido nestas expressões: “Já vai tarde”, “O azar é seu”, etc. Sim, quem morresse ali, já ia tarde, envolto no saco branco dos mortos...
A FEB foi uma das divisões mais “sugadas” e uma das que mais produziram no âmbito do 5o Exército americano. Isto já passou. É preciso, entretanto, aprender para o futuro.
O soldado brasileiro, apesar dos pesares, não teve uma assistência psicológica e mesmo material como a dos norte-americanos. (Basta observar que até oficiais feridos, quando tiveram alta do hospital, estavam sem farda brasileira, sem dinheiro, etc. Houve quem tivesse que sair com farda americana e quem se viu sujeito à contribuição de colegas e soldados numa “vaquinha”.)
Os homens saíam da frente numa proporção que talvez atinja a metade da tropa em combate. Destarte, a metade ou quase a metade não soube o que era um descanso num hotel, em cidade da retaguarda onde se distraísse e sublimasse as emoções recalcadas pelas duas pressões opostas.
Na Itália, depois de vários dias de acampamento, passei a noite numa vila às escuras e tive um deseja súbito de bater à porta de uma das casas. Parecia um absurdo. Não fui porque o italiano não iria compreender o meu gesto. Há dias, porém, que eu não via uma simples cadeira, um objeto familiar, um prato de louça ou um copo de vidro. Tive vontade de estar numa sala de visitas, sentir as quatro paredes de uma casa e todo um ambiente doméstico, enfim um recanto familiar
É realmente duro para um homem civilizado, passar dias e meses dentro do mato, comendo em marmitas, sentando-se em bancos de madeira, sem encosto ou no chão, comendo com as mãos sujas ou as lavando muito mal no capacete de aço, longe de uma infinidade de coisas a que nos acostumamos desde crianças... É quando sentimos quando valem objetos de que nos utilizávamos sem lhes dar maior importância.
b) A displicência dos serviços da retaguarda.
Os chamados serviços de retaguarda organizam-se em vilas e cidades, pela maior facilidade de instalações. Aí é que começam os perigos do que chamarei - instalação doméstica da retaguarda. O homem procura familiarizar-se com o ambiente, instalar-se domesticamente.
Ora, numa guerra, a população local sofre as conseqüências mais variadas. Na Itália, grande parte dos homens ausentes, deslocados, prisioneiros, aumentou ainda mais a desproporção entre o número de pessoas do sexo feminino geralmente maior e o do sexo masculino, acentuadamente entre os vinte e trinta e cinco anos. Havia falta de certos gêneros essenciais como gorduras, chocolates, doces, etc., sabão, açúcar, café couros e sapatos, tecidos, gasolina e outros produtos não virtuais, mas de que os povos civilizados sentem a falta no conforto cotidiano, principalmente as mulheres, como perfumarias (batom, pós, sabonetes, talco, etc.). O combatente começa por se aproximar das casas, pela curiosidade humana de conhecer aquela gente, saber o que houve, como agiu o inimigo, quais os seus hábitos, etc. Conversa com os velhos mais acessíveis, alisa a cabeça das crianças (o combatente torna-se sentimental. Hajam vista as fotografias que leva consigo. Os prisioneiros alemães, tinham em seus bolsos inúmeras fotografias de suas famílias. O mesmo acontecia com os americanos e em ponto menor com os brasileiros). Oferece caramelos e chocolates ou conservas de suas rações. Surge, então, a mulher desejada. Daí por diante, as visitas se repetem, desanuviam-se as dúvidas, nasce a intimidade, e familiaridade. O combatente torna-se amável, dá presentes: caramelos, doces, chocolates, gêneros outros mais desejados. Entra-se, assim, na fase da “escatolagem” (quanto maior o posto, maior a generosidade, principalmente se é o pessoal que lida com os provimentos) e aí começa a história. Era uma vez...
Ora, enquanto o combatente do front está empenhado em salvar a pele e sustentar o terreno conquistado, o militar da retaguarda é tentado a uma vida doméstica, principalmente quando o inimigo não conta com superioridade aérea, como aconteceu na Itália. (Mesmo com a superioridade aérea do inimigo, é preciso notar que os ataques à retaguarda visam, em última análise, a frente de combate. A área desta é incomparavelmente inferior à daquela; esta é quem vai suportar o peso dos impactos inimigos, agravados pela irregularidade dos suprimentos pela perturbação ou desorganização da retaguarda.)
A vaidade tem mil formas. A concupiscência duas mil. O combatente da retaguarda vai amolecendo o espírito e o corpo e o resultado só pode ser prejudicial para a frente de combate, seja pela desídia, pela indiferença egoísta, seja pela utilização desonesta (sexual ou venal) dos provimentos para o regalo, volúpias e bem-estar da instalação doméstica da retaguarda. No mesmo local onde esteve o Depósito do Pessoal, instalaram-se antes os alemães, que deixaram uma cantina, aliás muito bem acabada (de madeira, pré-fabricada, e que servia para nós como Sala de Instrução), pois bem: soube que naquele mesmo local, fôra preso e fuzilado um oficial alemão por estar vendendo gasolina no câmbio negro. Quem conhece o rigor e a disciplina germânicas, pode imaginar o quanto fôra tentado este militar em vender um produto precioso de que tanto careciam os tedescos... Nada há a acrescentar, pois...
Estas considerações não têm, é óbvio, intuitos de generalizar. Nem todo combatente da retaguarda é assim. Mas o ambiente é propício ao desfalecimento moral, à quebra, pelo egoísmo, da solidariedade aos camaradas da frente, operando-se até, um movimento inconsciente de despeito e inveja àqueles que, na verdade são os verdadeiros combatentes. O aparecimento na retaguarda do combatente do front, eclipsa, naturalmente, qualquer militar não combatente, porque o fato de enfrentar o perigo e andar ileso pelas veredas da morte, dá ao homem um traço de masculinidade, uma auréola de respeito, que vêm desde os tempos mais remotos, pois os caciques, os chefes, sempre foram os mais fortes, os que lutavam e destruíam os inimigos com mais denodo e maiores riscos. Este mesmo mecanismo psicológico emergente das profundezas do inconsciente humano, operou-se em proporções muito maiores, no Brasil, quando há se havia apagado o ruído das palmas e das ovações com que o povo recebeu os expedicionários. Antes da partida, muitos se consideraram felizes em não seguir. Depois, estes homens que voltaram com uma história a contar, ostentando o mais relevante serviço que um cidadão pode prestar à Pátria, constituem sempre uma pedra no sapato de quem não foi. E um movimento surdo, talvez inconsciente, de tantos que não foram, contra tão poucos que seguiram, dissimula-se na mais velada ironia, na mais fingida indiferença e despeito. Este fato, foi agravado pelas histórias entusiásticas que os combatentes trouxeram da Itália. Fato natural, porque, passados os perigos e vicissitudes, o homem que deles emergiu os transforma em momentos de gratas recordações, acentuando sempre os mais favoráveis, mais alegres, mais agradáveis. Por isto, muitos no Brasil, consideram a ida da Força Expedicionária Brasileira, simples viagem de turismo pela Itália... e com isto, fazem o jogo inconsciente de despeito e da ironia.
O perigo maior está no aparecimento de uma casta da retaguarda. Verdade é que, para o bom andamento e desempenho da frente, faz-se mister elementos especializados na retaguarda. Pessoas que se tornam tão aplicáveis, tão práticas que substituí-las seria um transtorno prejudicial. Porém, a certeza de não ir para o front é mais um estímulo à domesticidade.
Numa guerra, por ser justamente um delírio, um surto de barbárie da civilização, devem prepondera os elevados padrões. Na retaguarda os princípios de honradez devem ser invioláveis, sob pena de desmoronar-se a estrutura combativa do povo e dos soldados.
c) A Campanha da Itália não foi um teste perfeito.
Nós, brasileiros, não podemos contar com o exemplo da campanha italiana. Nossas vitórias foram legítimas, indiscutíveis e honrariam qualquer força armada de qualquer parte do mundo. Não as tomemos, porém, como perfeita organização e eficiência nossa. A Itália não foi um teste perfeito, completo para o nosso espírito de organização e sob este prisma, para o Alto Comando, se bem que o tenha sido para os conhecimentos militares dos nossos oficiais e para o valor combativo e audaz dos nossos cidadãos. Incorreremos em grave erro e até em perigo para o nosso futuro, se pensarmos de forma diferente. Lá tínhamos excelentes vias de comunicações, os extraordinários meios do poderio industrial dos Estados Unidos, e uma quantidade de suprimentos de toda ordem, jamais vista por nenhum outro exército do mundo, em tempo algum. Soldado algum jamais combateu com tamanho conforto como o soldado americano. O Comando Brasileiro, sob este prisma material, agiu encaixado dentro dos quadros do IV Corpo do 5o Exército dos Estados Unidos, esquadrinhado pela sua organização e serviços. E apesar disto, o soldado brasileiro não gozou do mesmo conforto do soldado americano. E onde estaria, então, a eficiência? É que o homem brasileiro sofre privações permanentes. O homem, quando mais rústico, mais suporta os contratempos de uma guerra que é por natureza rastejante, primitiva e brutal. Demais disto, acostumados à frugalidade, à carência e à deficiência que a nossa pobreza reflete no Exército, o expedicionário experimentou uma sensação de melhoria tal, com os provimentos e organizações americanos que chegou até a diferenciar o “Exército de Caxias” da FEB.
Numa guerra que por desgraça tivesse como palco a nossa querida América do Sul, numa vastidão destas (basta imaginar que a Itália é comparável, em superfície ao Estado de Santa Catarina), sem vias de comunicações terrestres, com estes aranhóis ziguezagueantes em plena terra, sem asfalto ou cimento, sem transportes, sem aquelas catadupas de material de uma indústria portentosa, e que teríamos, à medida da nossa organização, veríamos quanto somos primários na intensidade da vida atual, quanto os soldados haveriam de sofrer e quanto se faria necessário uma retaguarda sólida, honesta, rígida, capaz de suportar e suprir os impactos sofridos na frente.
Somos um país pobre. Uma nação reduzida, carregando, como um caracol, uma concha tão grande que nos imobiliza. Não poderíamos nos dar ao luxo dos desperdícios. Basta considerar quanto nos custam as nossas manobras, em locais preestabelecidos, acessíveis por estradas regulares e num terreno por demais identificados pelos oficiais e sargentos. Após as manobras, os nossos homens estão ressentidos, abatidos, pelos contratempos naturais de um simples combate simulado.
d) A Importância dos Serviços Especiais.
E quanto mais pobres e mais carentes somos, mais teremos necessidade de assistir o combatente, confortá-lo pelo carinho de toda a nação. E por esse motivo é preciso que as forças armadas em seus estudos, em suas observações, analisem este ponto - o dos Serviços Especiais - da Assistência Psicológica, experimentando-os desde já como um assunto tão importante como os que servem de tese nas manobras.
Os americanos levavam isto muito a sério. Nas grandes cidades italianas, requisitaram grandes hotéis e restaurantes, destinando-os aos oficiais e soldados. Havia estações de cura e campos de repouso. Os dias que o homem passava na retaguarda, eram de felicidades. Estava só como um viajante. O preço da estada, no hotel, era apenas “pro forma”, tal a modicidade da quantia. O combatente podia levar uma companheira para as refeições, pagando um pouco mais. O Hotel Excelsior, um dos mais importantes de Roma, era um deles, variando apenas a qualidade dos hóspedes. É possível que o Excelsior não tivesse conhecido dantes tamanha animação, pois as danças americanas enchiam o ambiente de uma alegria incontida. As refeições eram feitas ao som de boas orquestras. Havia flores nas mesas. E enquanto os casais se serviam como gente civilizada, um violinista vinha para junto, passeando pelo amplo salão e arrancando das cordas do seu violino acordes plangentes de belas canções.
Os restaurantes, destinados apenas aos que passavam pela cidade, tinham, também, flores e músicas regionais. Não faltavam locais para divertimento dos homens. Night-clubs (musical box), cinemas, estádios esportivos onde lutadores se exibiam, cantinas onde se vendia de tudo e do melhor pelo preço de custo, além das distrações naturais da própria cidade.
Contaram-me que os norte-americanos, transferiram do front uma divisão completa para Monte Cattini, a fim de que repousasse nesta estação de cura.
Estas distrações e comodidades distribuídas religiosamente aos combatentes, destinavam-se a todos. É verdade que se mantinha a separação entre pretos e brancos. (Vi unidade completa constituída exclusivamente de nipo-americanos que, aliás lutaram bravamente na Itália.) (NC: O Regimento de Infantaria 442) Todos, entretanto, eram tratados com o mesmo desvelo, as mesmas atenções, da mesma forma que não havia diferenças entre o tecido, as peças de roupa e as botinas de combate, os alimentos e os cigarros dos oficiais e dos soldados. Cada um, por uma necessidade disciplinar, tinha os seus lugares: hotel dos sargentos, dos oficiais e dos soldados. O conforto e os meios, eram praticamente os mesmos.
Vi em Roma, enormes caminhões cheios de soldados, percorrendo os pontos mais importantes da cidade. Por um alto-falante, o guia dava explicações interessantes sobre os locais visitados, os fatos históricos, os monumentos, as obras de arte, etc.
Penetramos muitas vezes nestes ambientes americanos e fomos sempre muito bem acolhidos por eles. Só não podíamos dormir nos hotéis, porque não tínhamos autorização especial do nosso comando. Dormíamos nas casas dos italianos onde pagávamos um preço extraordinário. Nestas condições, uma simples refeição da manhã, custava muito mais do que a hospedagem e as refeições nos excelentes hotéis dos americanos. Os que trabalhavam em serviços na retaguarda, não estavam sujeitos à pressão do perigo do combate a cada passo. Localizados perto de boas cidades, podiam visitá-las constantemente.
À par da pressão do Comando que por si criou uma mentalidade de indiferença e ironia na frente, como já acentuei acima, havia esta má distribuição nos descansos, quando o soldado não fosse bater no Depósito do Pessoal, também mencionado supra.
Em revide, o soldado do front apelidou o soldado da retaguarda, se “Saco B”, saco guardado na retaguarda, enquanto o “A” seguia com o combatente.
Diversas modinhas, surgiram, então, traduzindo humoristicamente esta diferença psicológica entre o front e uma retaguarda, em grande parte “instalada domesticamente”.
Recordo-me, por exemplo, desta: (Música de Vida Apertada):
“Ai, ai, meu Deus
Como é bom viver
Na retaguarda
Como um saco B
... (Descrevia as comodidades da retaguarda para terminar dizendo que ela vivia...)
Sem tedesco ver...”
Vi certa vez um boletim reservado em que se punia um capitão muito popular em sua tropa e que suportara pesados bombardeios e andara até em duelos de pistola com o tedesco, por ser encontrada a sua companhia “alongada perigosamente” na estrada e os soldados carregando sacos às costas.
Eu já havia observado isto e procurara por todos os meios evitar este fato no meu pelotão. A causa, porém, estava em que o soldado não tinha confiança. O infante conduzia objetos adquiridos, coisas sem valor real, porém de valor de estimação, recordações que desejava levar para a Pátria. Era comum desaparecerem essas coisas, rasgando-se os sacos, ou pelo extravio dos mesmos, durante os transportes. (Eu mesmo sofri isto.) O homem era obrigado a separar o que julgava mais valioso e carregá-lo consigo. De quem a culpa? Como resultado a nossa tropa não tinha boa apresentação. As fardas bem sujas, eram lavadas pelas italianas nos estacionamentos. Até na retaguarda as lavadeiras entravam, muitas em suas bicicletas, nos acampamentos para apanharem as roupas dos soldados. (Mesmo quando, como em Francolise, os americanos puseram uma lavanderia com capacidade para cinco mil peças, à nossa disposição.)
E se não fossem os field-jacquets americanos, a nossa apresentação seria ainda pior. Depois os soldados não andavam rigorosamente equipados como julguei que acontecesse, talvez por falta de resistência física dos nossos homens.
Quando se rendeu a 148a Divisão de Granadeiros, cercada por nós, e que eu vi passarem ante os meus olhos milhares de soldados alemães, foi que eu observei como estavam eles equipados, bem fardados e apresentáveis.
Contava-se, não sei se por pilhéria, que um dos oficiais prisioneiros solicitara receoso que não lhe entregassem “àquele partigiano”, dirigindo-se a um nosso camarada. (os partigiani eram os maquis ou patriotas italianos, homens da resistência subterrânea., vestidos com blusões que os americanos jogaram de pára-quedas nas montanhas. Traziam um lenço em geral colorido amarrado no pescoço, e pareciam mais bandoleiros. No final da guerra, entravam nas cidades em caminhões e fizeram uma bruta confusão. Muitas vezes tive receio, porque não sabia se eram mesmo “partigiani” ou simples alemães disfarçados em fuga.)
Mas os soldados brasileiros não sentiram esta diferença de tratamento entre a retaguarda e o front, esta falta de descanso decente, daquelas distrações e que naturalmente teriam direito como participantes de um exército americano. Não sentiram, porque, vinham do desconforto e da pobreza brasileiros, e souberam defender-se de uma forma que os comandantes toleraram, mas que não deixava de ser uma burla necessária à disciplina de uma tropa.
As provisões, os agasalhos, os transportes americanos, como foi dito, por si mesmos já lhes davam um tratamento que eles jamais experimentaram no Exército brasileiro. E além disto, estavam na Itália, país pontilhado de cidades e vilas pitorescas onde a gente encontra a cada passo um marco histórico e pisa a terra com receio de topar com o crânio de algum César...
Depois da guerra, surgiram as “tochas” que eram passeios não autorizados e simplesmente tolerados pelos comandantes imediatos, no âmbito da companhia, batalhão, etc.
Se fossem pegos pelo pessoal da retaguarda, o azar seria deles... Assim, de acordo com o posto, as viagens eram mais longas. Oficiais, e às vezes sargentos, saíam de jeeps. Economizava-se a gasolina da cozinha e dos dois jeeps da companhia, e com ela um dos jeeps poderia sair estrada afora por uma semana ou menos, de acordo com as circunstâncias. Os soldados se arranjavam pedindo carona aos milhares de automóveis americanos e brasileiros que cruzavam as extraordinárias autovias italianas. Assim, “acendia-se a tocha”, expressão cuja origem não sei. Houve quem fosse até Paris.
Não é de admirar que assim se tivesse procedido. Se muitos e muitos da retaguarda inclusive do Depósito do Pessoal, foram autorizadamente à Paris? Se eles iam à Roma e à Florença e outros lugares onde eram hospedados em hotéis americanos, e mesmo andavam acima e abaixo bem apresentáveis e bem servidos, bem transportados, por que haveriam os comandantes do front de negar àqueles homens que arriscaram a pele e lutaram tão bravamente, um passeio e uma folga? A “tocha” foi uma justiça irregular, mas, foi uma justiça. Quando os homens descrêem da justiça, fazem-na pelas próprias mãos. O cuidado está, em que ela não falte, e em que os homens não percam as esperanças de que ela se fará.
Esta foi a razão por que os combatentes do front não estranharam. Visitaram as cidades e os pitorescos vilarejos peninsulares, alimentando-se das bem empacotadas e até camufladas rações de combate ou pagando altos preços nas “tratórias”. Penetravam nas distrações americanas ou nos bailes e saraus familiares improvisados pelos italianos, gozaram, enfim, do que lhes ofereceram.
e) E o Comando?
Apesar do respeito que devo ao Marechal, seria fantasia dizer que tenha havido afeição pelo nosso Comandante-Chefe. O Alto Comando não podia ser bem visto na frente. Nem na retaguarda. Os comentários, os apelidos, as críticas que se faziam, eram uma demonstração do que afirmo. Reconheço, como já disse acima, que esses comentários em grande parte, resultavam da pressão que todo o comando exerce sobre a linha de frente. A FEB deu um “murro” medonho. Era a primeira vez em que o Exército Nacional atravessava o Atlântico para lutar em terras da Europa. Constituíamos, apenas, uma divisão e sobre ela, sobre os Comandantes pesavam grandes responsabilidades. Embora encaixada no 5o Exército americano, tivera de adaptar-se ao complexo mecanismo militar, ianque. Os Comandantes, por amor próprio e por patriotismo, quiseram mostrar suas habilidades, a capacidade militar, e o espírito combativo dos brasileiros, ao apresentar o melhor rendimento possível e o menor incômodo aos americanos. E “vamos pras cabeceiras!”... De forma que a pressão foi grande. Na própria FEB, o pessoal do 6o Regimento se queixava de ter sido o mais “sugado”, o menos condecorado, o menos falado... Vemos, por conseguinte, que nestas condições espinhosas, o nome do Marechal Mascarenhas não seria utilizado por afeição, por estima dos soldados.
Pelo que pude observar e pelo que escutei, a estima real dos combatentes vai decrescendo da companhia até o Comandante do Regimento. Eles prezam realmente os oficiais e o comandante da companhia com quem vivem, com quem lutam, com quem sofrem. Depois, em grau menor, os comandantes dos batalhões. E assim, até o do Regimento.
Distanciados do Alto Comando, os combatentes não têm conhecimento das altas indagações e dos planejamentos dele. O que sabem é que a pressão é séria, que o Alto Comando não quer conversa, que eles, inclusive o seu Capitão, estão arriscados a ser considerados covardes por “dá cá aquela palha”... Que a missão tem de ser cumprida, custe o que custar.
Entretanto, se o pessoal do Alto comando participou de um banquete, se foi condecorado, se fez isto ou aquilo, aí sim, todos sabem logo. E os comentários são insopitáveis, incontroláveis. Mas, como o inimigo está no outro lado, e não pode “dar sopa”, o combatente descarrega a sua insatisfação no inimigo e faz blague da retaguarda... Ouvi muitos comentários, por exemplo, sobre um oficial do Estado-Maior, que surpreendera um major da Tropa prestando informações na terminologia do front, ao dizer que “as bombas estão caindo muito”. E como não perdoasse aquela falta de precisão terminológica, aparteou com ar técnico: “Bombas que o senhor quer dizer, são granadas, não é?...”
O nome mais usado na frente, pelo que ouvi, era o do General Zenóbio. Porém, a impressão não era de simpatia, pois o General Zenóbio era considerado como intratável. Ouvi contar, que o tedesco tinha conhecimento de sua visita ao front, porque, nessas ocasiões, era sempre provocado por nossos elementos. O azar, porém, é que só quando o General saía, era que a “pena voava...”
Muito conhecida foi esta modinha cantada com o samba “Atire a primeira pedra”:
Covarde sei que me podem chamar
Mas, eu em Castello não hei de voltar...
Atire a primeira “bomba” tedesco
Que eu quer ver Zenóbio avançar...
Daí as minhas conclusões ao encontrar na Diferenciação Técnica, na Diferenciação Geográfica e na Diferenciação Disciplinar entre a vida de paz, de quartel no Brasil e a vida de guerra na Itália, o motivos materiais e psicológicos pelos quais os pracinhas distinguiram o Exército Territorial do Exército Expedicionário; o Exército de Caxias, como sempre ouviram denominar o Exército no Brasil, distinguia-se daquele “Exército” diferente em técnica, sistemas, transportes, provisões, etc., vivendo em outros ambientes geográficos e lutando dentro de princípios disciplinares bem outros que os do quartel.
Na realidade, a FEB era o próprio Exército de Caxias (como não poderia deixar de ser) usando os field-jacquets, os capacetes, os agasalhos, os cigarros, as comidas, a gasolina, os transportes e as comodidades americanas, e avançando pelas terras da Itália unido pela confraternização dos filhos de uma mesma Pátria, aproximados pela solidariedade do sofrimento, da luta e do perigo comuns. Cobertos pela mesma bandeira - “Auri-verde pendão da minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança.”
Estas são as minhas impressões.
f) Considerações finais.
As conclusões que poderemos recolher do que foi exposto, são as de que a maior garantia de uma nação repousa no bem-estar, na educação, na capacidade de produzir riquezas, no desenvolvimento industrial e agrícola dos seus filhos. Quem não tem saúde nem educação nem disciplina civil, nem é capaz de produzir alimentos e utensílios para viver dignamente em tempos de paz, está vinculado ao fracasso e à derrota ao sobrevir uma guerra.
Veja-se o exemplo dos EUA: em menos de três anos, a poderosa nação do norte transformou-se no “Arsenal das Democracias” enviando mantimentos, armas de todos os tipos, máquinas leves e pesadas a dezenas de povos e mobilizou, instruiu equipou milhões de soldados que combateram bravamente em todas as frentes do conflito. Observe-se que foi precisamente nesta época de trabalhos hercúleos e responsabilidades tremendas que os Estados Unidos construíram para nós a poderosa usina siderúrgica de Volta Redonda.
Por que conseguiram isto? Porque os Estados Unidos eram o maior parque industrial do mundo. As terras habitadas, os homens educados na visão prática do trabalho metódico, racional, padronizado; fábricas e organizações gigantescas levantadas pelo espírito empreendedor dos seus cidadãos; comunicações de todas as espécies, rápidas, confortáveis.
Estas considerações, eu as faço com o pensamento voltado para a América Latina e especialmente para o Brasil.
Atualmente, atravessamos um período sem ameaças de invasão ou de guerra de conquista. O único país que, se quisesse, poderia conquistar-nos, seriam os Estados Unidos. Mesmo sem falar na “bomba atômica”, eles desbaratariam todos os exércitos sul-americanos reunidos, antes de podermos tomar fôlego. Felizmente, o povo americano do norte não tem idéias de conquistas territoriais, pois como todo povo amante da liberdade, respeita a liberdade alheia. O exemplo das Filipinas a quem os Estados Unidos concederam a independência é decisivo.
Entretanto, o mundo é cada vez menor e não somente as populações crescem como necessitam um padrão de vida mais elevado. Hoje, ninguém cobiça as nossas terras imensas, que nós não conseguimos, ainda, habitar, aproveitar, desenvolver e civilizar. Quem pode prever as reviravoltas do mundo dentro de um século? Mesmo que não haja nenhum perigo de agressão futura, precisamos agir em benefício desses milhões de patrícios que vivem a era do barro em pleno século atômico e prover o essencialmente necessário afim de que os nossos filhos e netos possam manter uma vida realmente civilizada.
A América Latina está com um atraso de mais de cem anos e precisa correr para apanhar em tempo o comboio da civilização e do progresso, que já passou, que já se perde de vista, lá adiante...
Pois bem: em lugar de nos unirmos em prol dos nossos povos, gastamos uma fortuna colossal em armamentos de guerra. Ora, se o Chile compra armas, a Argentina não pensará que ele se prepara para combater o Japão. Se a Argentina emprega milhões e milhões, adquiridos durante o regime democrático, em tanques, canhões e aviões a jato, o Brasil não pode imaginar que os nossos irmão do sul estejam em preparativos para atacar seres de Marte... E toda a América do Sul se atira numa corrida armazenista, na qual se esgotam as nossas enfraquecidas economias e disponibilidades.
As grandes divergências que separam o mundo oriental do ocidental, serão solucionadas pela paz ou pelo conflito armado entre os grandes. Teremos pela frente grandes dificuldades a resolver. Não será com a nossa fraqueza, com a nossa mortalidade infantil, com esta falta de gêneros de primeira necessidade, com esta carestia, com o pauperismo, enfim, que haveremos de influir nos problemas de paz ou de guerra que agitam o mundo.
Os Estados Unidos só se envolveram em questões internacionais na Grande Guerra de 1914. Até então, preocupavam-se com os problemas internos, montando o extraordinário poderio econômico que ostentam hoje. Em 1914, eles eram, já, um peso respeitável na balança internacional. Não porque possuíssem grandes exércitos, o que não ocorria, e sim porque já haviam edificado uma indústria colossal, uma agricultura racional e sólida num país cortado por vias de comunicações de primeira ordem. Sua marinha mercante era das primeiras. Eram eles capazes de construir desde a bicicleta até o couraçado, os altos fornos siderúrgicos, as máquinas que fazem máquinas.
È o que somos nos nesta era atômica? Não fabricamos bicicletas. As máquinas que usamos, desde o ventilador elétrico, são importadas. A base da nossa agricultura é a enxada, o processo rotineiro e a fome, aliada às moléstias, espreita o nosso povo.
Penso, portanto, que seria este um interessante trabalho para os homens de prestígio e inteligência das Américas: lançar as bases de um planejamento para a América Latina, a fim de que possamos desviar grande parte dos nossos recursos em obras de real contribuição ao desenvolvimento dos nossos povos. Em lugar de tanques - tratores, niveladoras de estradas, escavadeiras. Em lugar de canhões e metralhadoras - arados e utensílios agrícolas e industriais.
Se fosse absolutamente impossível reduzir o exército territorial, talvez fosse viável uma organização em que, substituindo outras tropas, surgissem mais unidades de engenharia, inclusive engenharia sanitária, de forma que se pudesse empregar grandes contingentes no trabalho de construções de estradas, pontes, saneamento dos campos e de cidades do interior, etc...
Dir-se-á que a função do Exército é bem outra. Direi, todavia, que a situação do Brasil é de emergência e o problema do povoamento do campo e da fixação do agricultor deve ser atacado de rijo, sem perda de tempo. Um serviço desta ordem prestado pelo cidadão convocado seria mais valioso à segurança e fortalecimento nacional do que a simples instrução militar.
Porque é preciso deslocar o eixo de equilíbrio do litoral para o interior. Todo o mundo o afirma, todo o mundo o proclama. Mas não é com palavras e discursos, que os agricultores ficarão nos campos e os habitantes do litoral deixarão as cidades.
Esses problemas que vêm de longa data não se resolvem com decretos, carimbos e portarias.
Os Estados Unidos têm, também, os seus problemas. Roosevelt, ao se referir às quinhentas mil pessoas de vida incerta, fazia graves advertências, embora este número fosse insignificante para a população dos Estados Unidos, de cerca de cento e trinta milhões de habitantes. Dizia o grande estadista:
“As famílias migratórias, a situação de suas crianças, crianças que não têm lar e famílias que não podem deitar raízes, que não podem viver numa comunidade... Isso exige uma consideração especial. Mas estou tentando achar um lugar para elas. Isto significa, nos termos mais simples, um programa para o repovoamento permanente de pelo menos um milhão de pessoas na bacia de Colúmbia e numa porção de outros lugares. E lembrai-vos que o dinheiro gasto com isso, depois de um projeto cuidadoso, será devolvido ao governo dos Estados Unidos em somas muitas vezes maiores, num tempo relativamente curto”.
“Não há dúvida de que nosso futuro está em perigo quando aproximadamente um milhão de crianças em idade de freqüentar um colégio elementar não estão na escola, quando centenas de distritos escolares e mesmo alguns Estados inteiros não tem verbas para boas escolas. O que quero dizer realmente é isto: gostaria de imprimir na primeira página de todos os jornais dos Estados Unidos uma lista dos mais atrasados distritos escolares e dos Estados mais atrasados em matéria de instrução nos Estados Unidos. Este tratamento seria rude, mas toda gente nos Estados Unidos poderia ficar sabendo onde havia as piores condições de saúde e de educação.”
E mais estas palavras lapidares que deveriam pesar nas consciências de todos os brasileiros:
“Pelos olhos da criança é que devemos olhar a nossa civilização. Se pudermos apresentar em linguagem simples algumas das necessidades básicas da infância, veremos mais claramente as questões que desafiam a nossa inteligência.”
“Supomos que, para ser feliz, uma criança tem de viver num lar em que encontre calor, alimento e afeição, que seus pais cuidem dela quando ela adoeça; que encontre na escola os professores e os elementos necessários a uma educação, que quando cresça haja para ela um emprego e que um belo dia possa estabelecer seu próprio lar.”
“Quando considerarmos estes elementos essenciais para uma infância feliz, sentimo-nos entristecidos por saber que há muitas crianças que não podem ter o que acabamos de supor.”
“Preocupa-nos o futuro da nossa democracia quando as crianças não podem ter as coisas que se reconhece significarem segurança e felicidade.”
A Segurança Nacional está em povoarmos a terra imensa deste país. Não somente povoá-la, porém, dar ao povo os meios educacionais e técnicos indispensáveis ao trabalho compensador de extrair da terra e das máquinas os meios de uma subsistência decente, compatível com a civilização que o mundo já conquistou. Pois, se no presente, não paira sobre nós a ameaça de invasão e conquista deste patrimônio colossal que os nossos antepassados nos legaram, devemos aproveitar a oportunidade de alcançar o comboio do progresso e preparar o corpo e o espírito para as surpresas do porvir.
Roosevelt ao definir os deveres da democracia, apontava, com felicidade, os rumos que o futuro nos reserva:
“A democracia deve inculcar em seus filhos a capacidade para viver e assegurar as oportunidades para o exercício dessa capacidade. O êxito das instituições democráticas não é medido pela extensão do território, pelo poder financeiro, máquinas ou armamentos, mas pelos desejos, esperanças e satisfações profundas dos indivíduos, homens, mulheres e crianças, que formam a sua cidadania.”
“Nossa segurança não é unicamente uma questão de armas. Forte tem de ser o braço que as brandir, clara a visão que as guie; insubjugável a vontade que as comande.”
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Extraído de “Depoimento de Oficiais da Reserva Sobre a FEB”. 2a Ed. 1950
f) A disciplina na Frente, é mais humana.
Na guerra, os expedicionários encontraram, por entre múltiplos fatores, ambientes para a expansão da personalidade. Aquele rigor do quartel deixou de ser necessário. Em plena campanha a disciplina afrouxou as rédeas. Certas exigências - necessárias no quartel - perderam a razão de ser. Esta diferenciação disciplinar era flagrante.
Em combate, cada um está entregue ao seu destino, quanto aos deveres que deve cumprir. Um simples erro pode ser a morte. No oficial desaparece o “professor”; no soldado, acabou-se o “aluno”. Ambos eram combatentes e a teoria dava lugar à prática.
O instinto de conservação passaria a ser o disciplinador comum. Se um soldado procedesse de forma imprudente, seus próprios colegas reprová-lo-iam. Ninguém está disposto a sofrer as conseqüências de atos alheios, com sacrifício da vida.
Meditei sobre isto no deslocamento através do lindo e fértil Vale do Pó. Parecíamos perdidos. Os alemães desapareceram e nós precisávamos tomar contato com eles. Montamos os caminhões ainda com o sol bem alto. Corremos estrada afora num ambiente de desolação. Não há nada tão triste e silencioso como as ruínas recentes de um combate. Tudo o que antes representava vida palpitante de uma civilização transformava-se na figura mais completa da morte. Pelos campos, animais inertes. Galhos retorcidos, cortados, perfurados. Árvores prostradas nos rios. Ali, viadutos arqueados em destroços sobre a estrada. Barreiras derramando-se pelas estradas. Estradas desequilibrando-se em despenhadeiros. Vilarejos transformados em diabólicos e confusos depósitos de materiais de construção. Uma parede em pé guarda ainda um quadro. Por entre os montões das ruínas, estranha exteriorização de uma cozinha como uma natureza morta. As aves fugiram. Nem um cão vagabundo. Só o silêncio e uma poeira tênue e estática amortalham o espaço como se fosse, realmente, um vale de pó. De intervalo a intervalo, os agachados tanques tedescos apontam ainda os seus canhões inúteis e ostentam nas chapas de aço camufladas as queimaduras e os efeitos dos certeiros impactos. Desceu a noite e continuamos a correr atrás do que parecia um fantasma.
Tive a impressão de que estávamos passando pelo mesmo lugar. Os dez pneumáticos do meu caminhão gemiam sobre a terra revolvida das estradas carroçáveis. (Por que não íamos pelas auto-estradas? Estariam minadas? ) Aqui e ali letreiros alemães indicavam campos de minas: - MINEN. - Tê-los-iam abandonado na pressa ou as plantaram de propósito em terreno limpo para nos confundir? Depois, uma noite lívida, transparecia numa claridade de velório. Um frio penetrante e seco veio juntar-se ao da nossa inquietude. (O nosso avanço pelo Vale fôra tão rápido que constituiu um problema para a artilharia e para a aviação. Lugares tidos como ocupados pelo inimigo já estavam em nosso poder. Foi por isto, talvez, que um avião aliado bombardeou Zocca quando esta cidade já havia sido tomada por nós.)
(Neste deslocamento, escapei de um desastre, exclusivamente por ter cumprido o que julguei ser o meu dever. Na corrida um dos três caminhões do meu pelotão passou à frente. Numa rápida parada, tendo verificado este fato, desejoso de ter sempre à mão a minha tropa e como seria difícil manobrar naquela estrada carroçável, deixei o carro onde vinha e me transferi para o da frente. Alguns momentos depois, aquele caminhão que eu deixei virou desastrosamente num precipício. Morreram o motorista e os sargenteante da companhia. Os soldados ficaram todos feridos e com várias fraturas e só foram encontrados, parece-me, pelas tropas do 11o Regimento, no dia seguinte. Só o meu sargento auxiliar escapou ileso por ter saltado do caminhão, no momento exato da virada.)
Os caminhões corriam e corriam perseguindo uns aos outros como se ninguém quisesse ficar para trás. Numa encruzilhada não vi mais ninguém à minha frente. Para que lado teriam ido? Saltei e decidi a direção a tomar, observando pelo tato as marcas dos pneus na poeira da estrada.
O inimigo poderia estar oculto. As vilas emergiam de repente como cemitérios abandonados. Disparávamos as nossas metralhadoras, jogávamos granadas. Só as detonações ecoavam ao longe.
Corríamos há bastante tempo por entre parreiras erguidos como caramanchões sem fim. De repente, uma decisão superior nos faz parar. Então, o silêncio caiu sobre nós como um ruído imprudente. Vi como os soldados permaneciam quietos, embuçados em seus capotes. Ninguém ousou minorar a frieza com um cigarro. Nenhuma palavra...
Não me agradava aquela parada. Estávamos entre bosques, expostos na claridade branca da estrada. Se o inimigo estivesse oculto ali? Bastaria destruir os caminhões das extremidades e nos varar com as suas “lurdinhas” (a metralhadora alemã MG 42) antes que, atônitos, pudéssemos tomar posição.
De repente, um lindo canto de pássaro, de dentro do bosque cortou o silêncio que nos envolvia. Os alemães tinham o costume de fazer comunicações, imitando pios de aves noturnas. Do outro lado do bosque, bem perto de nós, outra ave lançou ao ar o seu gorjeio estridente, como resposta. O sargento ao meu lado perguntou-me:
- Ouviu, tenente?
- Ouvi.
Os soldados, apesar da fadiga, mesmo parados os carros não se levantaram dos seus lugares nem fizeram ruído. Evitaram descer até para verter água, fazendo-o de cima dos caminhões, com a natural precaução das minas traiçoeiras.
É interessante observar que os combatentes, usando capacetes e field-jacquets americanos, não traziam distintivos. Mas os sentidos se multiplicavam para ver e ouvir. Nestes momentos, os homens adquirem “olhos de jeep”...
Na frente, o perigo irmana a todos. Do soldado ao sargento, do comandante do pelotão ao da companhia, a identificação é em geral completa. O instinto, polariza os homens, reunindo-os. O exemplo é decisivo.
Conta-se que a um aspirante recém-chegado ao front fôra entregue o comando de uma posição avançada e perigosa. As provisões só podiam chegar até lá, em mulas e assim mesmo à noite, por causa da interceptação do inimigo. (Entregar um comando destes a um aspirante, sem antes promovê-lo à tenente, parece-me um erro de efeito psicológico desastroso para os comandados veteranos. A uma tropa é aborrecido a chegada de outro tenente. Todos desejam saber quem será. E se vem logo um aspirante...) Mas, como ia dizendo, logo na primeira ou segunda noite, os tedescos deram um “golpe de mão” vigoroso sobre aquele posto avançado. O pobre aspirante não pôde conter a sua tropa e, com ela, bateu em retirada. Entretanto, um cabo que estava em um dos flancos comandando um grupo, aferrou-se ao terreno e repeliu o ataque. Foi um sucesso! Já lhe haviam destinado uma condecoração. Quando o cabo chegou à companhia receberam-no chamando-o de herói.
- “Herói coisa alguma”, replicou o cabo, “se eu soubesse que estava sozinho, eu tinha é caído fora, também!...”
Ante esta declaração, não levaram mais em conta a realidade e desistiram da condecoração ao cabo...
Quando chega a hora decisiva, não se escolhem lugares especiais.
É conhecido o fato de um coronel, homem de coragem notória, que antes do bombardeio destruidor de Montese, estimulara os seus comandados, considerando-os afiados, dizendo-lhes:
- O meu batalhão está uma navalha!
No momento do combate, ele fôra examinar a situação realmente perigosa dos seus homens ante o bombardeio inimigo e tivera de repente que mergulhar na terra, é lógico. E o interessante é que, no meio daquela confusão, um soldado teve a presença de espírito de gritar:
- Aí, navalha!...
Mas, voltando à disciplina instintiva, imposta pelo medo, ante aqueles soldados quietos, silenciosos, sentados nos caminhões depois de mais de dez horas de viagem, recordei as nossas manobras no Brasil.
Nos combates simulados, o soldado sabe que o inimigo é uma ficção. Sabe também que os tiros e as explosões não têm outra conseqüência a não ser o ruído. Não há minas escondidas, nem perigo de vida. A disciplina neste caso, é muito mais difícil. O soldado cava um abrigo, sem entusiasmo. Não se protege devidamente. Expõe-se, escolhe lugares pouco apropriados para se deitar, etc.
Nas marchas de aproximação ou nas patrulhas noturnas, fazem-se ruídos incríveis, acendem-se as lanternas, quebram-se galhos de árvores. Era comum, ouvir-se bem longe, diálogos como este:
- João! Ó João!? Onde está você!?
- Tô aqui!
- Espera por mim!!
E era aquele zunzum, aquela conversa, uma praga, um palavrão...
Na guerra, porém, o perigo real é um disciplinador que está presente e vigilante. O homem não precisa que se lhe recomende silêncio. Ele mesmo gostaria de ter os pés tão leves, que nem tocassem o chão. Já não digo para evitar a explosão de uma mina oculta, mas para não estalar uma folha. O soldado que no Brasil, durante os exercícios, usava a sua picareta sem o menor entusiasmo, sob um bombardeio gostaria que a sua cabeça fosse uma perfuratriz que fizesse o seu corpo penetrar na terra como um arado... Ele cava com ardor desconhecido. Será capaz de cavar até com os dedos e as unhas, se não tiver ferramenta.
O tenente e o sargento, neste ponto, sentem um grande alívio. E os soldados mais autonomia. Por eles mesmos, terão mais cuidado com as armas automáticas, com os fuzis, funcionamentos e lubrificação. Não se esquecem das suas rações alimentares, da ferramenta de sapa, acompanham com maior vivacidade os movimentos dos seus comandantes.
Dão e recebem igual consideração.
Em compensação, os comandantes (cabos, sargentos, tenentes e capitães) vêem aumentar outras responsabilidades, surgir outras preocupações. Sim, porque o mesmo medo que disciplina e coordena, o mesmo instinto de conservação desenvolvendo a vivacidade do homem, pode criar, também, inibições e recalques, variando de pessoa, de conformidade com seu temperamento.
Conheci um soldado que se apegara à religião. Homem respeitador e querido pelas senhoras italianas que dele se despediam quase com lágrimas nos olhos e não se acanhavam de beijar maternalmente as suas faces de “mouro”. De uma feita, ao ouvir um ruído intermitente de avião, de aparência tedesca, corri ao celeiro para ordenar que se apagasse uma luz tênue que transparecia. Ao chegar ali, encontrei uma vela acesa e este soldado de joelhos, tirando o terço que outros também de joelhos, respondiam religiosamente.
Qual não foi a porém, a minha surpresa, ao terminar a guerra, ao verificar que este mesmo soldado, devoto e sério, transformara-se num verdadeiro mulherengo, e vivia desfiando um rosário de safadezas...
Outros podem dar-se às perversões de caráter, ao saque, à brutalidade e à embriaguez ou mesmo à covardia absoluta e incapacidade para o combate. Felizmente, estes casos mais graves, constituíam exceção, pois em geral somos um povo de boa índole, mormente se tivermos em conta, o abandono educacional em que vivem os nossos patrícios.
Durante os avanços, ao chegar a um determinado ponto, têm a tendência natural para se espalharem, por curiosidade de ouvir dos habitantes locais informações sobre os inimigo, de ver e observar os costumes, as coisas que os cercam. Se o estacionamento é mais prolongado, surgem as namoradas, as amantes...
Houve um soldado no meu pelotão, que por duas vezes desapareceu por uma das casas que pontilham os campos italianos, sem comunicar previamente ao sargento. Era um sertanejo nordestino, contador de histórias, que fazia todo o mundo rir nos momentos mais sérios. Por duas vezes, na hora de deslocar, faltava-me este soldado. Adverti-o seriamente de que o abandonaria desarmado onde estivesse, se repetisse a falta. Precisamente, quando do cerco da 148a Divisão de Granadeiros alemã, quando íamos deslocar em marcha, ele não estava presente. Por causa de um homem, não poderia retardar o deslocamento do pelotão. Só na madrugada seguinte, este homem me apareceu. Quando foi levado à minha presença, disse com uma espontaneidade que lhe revelava o estado de espírito:
- “Virge Maria, seu Tenente!”
Embora fingisse indiferença pela sua chegada e o incumbisse de uma missão, sem levar em conta seu cansaço, senti um grande alívio ao vê-lo de volta. Não sei como nos encontrou. Penso que não f6ora ele um sertanejo, ter-se-ia perdido. Mas era necessário dar o exemplo que, aliás, o corrigiu. Após a guerra, jamais repetiu a falta. Nos momentos de deslocar, vi-o sempre equipado e pronto. Era o primeiro...
Em geral, porém, o pelotão, a companhia, vive como família. Depois dos combates, como o de Montese, vi-os em repouso, reunidos, irradiando toda aquele pressão psicológica de um dos maiores bombardeios já vistos na Itália. Ora riam nervosamente comentando um fato, uma passagem perigosa, o aperto de um camarada:
- Puxa, fulano passou como uma listra!
Às vezes, reproduziam a aproximação das granadas em onomatopéias que mais pareciam a buzina de um Ford primitivo: fon-fon, fon-fon... É só pena que voa...
Falavam sem parar. Riam a valer. A pretexto de recordar um camarada que não voltou, que morreu (o próprio Capitão que fôra ferido por uma chuva de estilhaços) comentavam os fatos com sentimento, fisionomias abatidas e caíam num silêncio de pedra, angustiante. Nós todos estávamos sentados ali. O Capitão subcomandante da companhia, que assumira o comando em pleno combate, também. Os soldados interrogavam-no, nas conversas, pedindo o testemunho deste ou daquela comentário. Jamais tinha eu visto tamanha simplicidade, tamanha camaradagem. Aquilo era um desabafo. Segundo me contaram houve quem vomitasse sangue com o deslocamento de ar provocado pelas explosões. Realmente, o ruído era um só. O bombardeio extraordinário da nossa artilharia e se não me engano dos norte-americanos e ingleses juntavam-se ao do alemão, transformando aquela zona num verdadeiro inferno. (Eu vi no meio do campo, como que abandonada, uma bateria de poderosos holofotes aparentemente antiaéreos, colocados por trás de um monte e visando o lado inimigo. Pelo que me disseram, tinham por objetivo clarear as cristas dos morros ocupados pelos tedescos.)
Aquela vida em comum, vinculada pela ansiedade, sobrepôs-se às emoções humanas, às posições sociais, aos postos hierárquicos e proporcionou ao soldado brasileiro as balizas de um grande diferenciação entre a vida militar na paz e na guerra, entre o quartel e a campanha, fazendo-os distinguir o Exército Nacional, o Exército de Caxias, da FEB.
g) A falsa disciplina afasta a compreensão dos soldados.
Uma das coisas por que os praças em geral tinham antipatia, era o rigor disciplinar que os divorciava dos oficiais. Já não me refiro à diversificação dos ranchos, alojamentos, dos chamados “círculos”, mas à maneira de falar, à rigidez das atitudes e principalmente à continência em toda parte, a cada canto, a todo o momento, mesmo na rua. A obrigação de ceder o lugar no bonde, no ônibus, no cinema, o que constrange, principalmente quando o soldado, cabo ou sargento vai acompanhado de sua esposa. Observei, aqui no Brasil, que muitas vezes o praça se humilha mais fingindo que não vê o superior hierárquico, parando para ver uma vitrina, tomando direção diferente, por exemplo, do que se cumprisse logo seu dever fazendo a continência. Na Itália, começaram todos a imitar o norte-americano, em cujo Exército não existem estas exigências, pelo menos na prática. Na rua, vi cruzarem-se oficiais e soldados cada um para seu lado, sem se saudarem a todo o momento. Na fila do teatro ou cinema, a vez era do primeiro que chegasse. Nos ônibus e transportes, o lugar era de quem o encontrasse vazio. Isto, a princípio, me deu a impressão de que os norte-americanos eram “apaisanados”. Mas é um engano. Quando o soldado, sargento ou oficial tem que se dirigir a um oficial superior ou se é por este interpelado para um consulta, uma informação qualquer, em plena rua, perfila-se, faz a continência com vigor militar, numa atitude correta e respeitosa como um cidadão educado trata em público um desconhecido. Eu os vi, também, nos quartéis, quando se dirigem a um superior. Em serviço, o soldado norte-americano é “mil por cento” soldado. Recordo que tive que ir certa vez a um quartel americano em Florença. Quando para lá caminhava observei a atitude da sentinela, que em passadas marciais ia e vinha na calçada do quartel. Todos os seus movimentos se repetiam com precisão matemática. Chegava até à extremidade, parava, olhava de um lado e outro, fazia meia-volta (diferente da nossa) e assim de um lado para o outro, sempre na mesma atitude, sempre do mesmo jeito, como determinava o seu regulamento. Quando cheguei à altura da entrada do quartel, encontrei-me com ele. Parou, fez um movimento para mim desconhecido e só quando percebi que ele me apresentava armas e respondi à continência, foi que ele fez “ombro-arma” e prosseguiu impassível a sua caminhada...
Tive a oportunidade de verificar em fotografias e noticiários cinematográficos de expedições científicas e civis que o sistema é o mesmo: cientistas e mecânicos, ajudantes, auxiliares, entram na mesma fila pra a “bóia”, sentam-se nos mesmos bancos. É o resultado de uma nação organizada, disciplinada em que cada um sabe quais as suas obrigações, os seus deveres, sem que a camaradagem quebre o respeito que todos devem ter reciprocamente. Contaram-me, também, que nas fábricas e oficinas norte-americanas, operários, gerentes, mestres, técnicos andam de macacão ou em maga de camisa, sendo difícil para o visitante distinguir, à primeira vista, o mestre artífice, o técnico, o engenheiro ou químico do operário comum. À noite, numa “boate”, num “night-club” metido em seu “smoking” pode estar o engenheiro ao lado da mesa do simples operário, jantando, rindo, divertindo-se... Esta educação e esta disciplina da vida civil de padrão elevado não poderiam sofrer, dentro dos limites da organização militar, solução de continuidade.
No front, assim vivia o praça brasileiro com os seus oficiais, por força das circunstâncias da guerra, já analisadas acima. Já haviam observado o sistema norte-americano e, naturalmente, tomaram aquela modificação como sendo própria à FEB, e não como uma conseqüência do combate da guerra.
Tudo isto distanciava muito a Força Expedicionária do sistema disciplinar vivido no Brasil, acentuando cada vez mais os traços diferenciais daquilo que o pracinha chamava o “Exército de Caxias” e a FEB.
h) A rotina, mal aplicada.
Lá mesmo na Itália existia o Depósito do Pessoal, que relembrava ao soldado da frente a vida militar no Brasil. É que o Depósito, como retaguarda, tinha que manter maior disciplina, como se fosse um acampamento de paz onde os efeitos da guerra, o medo, o instinto de conservação e a camaradagem não criaram o clima mais solidário da frente.
E o homem do front sentiu isto de tal forma que consideraria um castigo se o enviassem para o Depósito. Por sua vez, os veteranos não eram bem vistos ali... A nós - oficiais recém-chegados, em aulas cheias de teorias (uma das quais afirmava que “o soldado alemão em defensiva não vestia a pela do inimigo” - princípio clássico que havíamos aprendido e que averiguei não ter caído em desuso) nos foi recomendado muitas vezes:
- Não dêem ouvidos às “histórias do front”.
O soldado da frente que batesse ali, estava frito. Não poderia sair, a não ser fugindo; tinha que ficar naquela favela feita de pinheiros abatidos, sem contato com mulheres, sem distração, deslocado do ambiente dos seus camaradas do front. Acordava com a alvorada. Tinha que entrar em forma para os exercícios de ordem unida e combates simulados... E se quisesse sair por ali apenas com o elegante e confortável gorrinho de lã ao invés do capacete de aço, caiam-lhe em cima como vespas. Não fizesse continência aos duzentos oficiais que por ali viviam para ver uma coisa! O seu descanso era o ruído das metralhadoras e das explosões das “bazookas”. Entretanto, parece-me que somente um ou outro ia bater lá. A frente precisava de soldados. Aliás, até hoje não compreendi porque as companhias viviam desfalcadas no front enquanto o Depósito mantinha milhares de soldados. No front, soldados ocupavam postos de cabo, cabos de sargento, sargentos de tenente e lá no Depósito aquele pessoal todo...
O Depósito era para os veteranos da frente a lembrança mais viva do Brasil, do quartel, no que ele tivesse de desagradável.
Quando terminou a guerra, um sargento meu foi até lá, conseguir um meio de receber os seus vencimentos. (Eu também passei três meses sem receber.) Quando o sargento voltou eu perguntei:
- Como vai o Depósito?
- Ah! Tenente, lá, a guerra não terminou ainda! Eu ia entrando calmamente e de repente quase me atiro no chão. Foi um tiroteio tão forte que eu pensei que os tedescos tinham voltado à guerra outra vez....
CONCLUSÕES.
a) problema da assistência psicológica.
É meu desejo chamar a atenção dos oficiais da ativa estudiosos e de visão larga, para este ponto, visto que apenas contribuo com o meu depoimento despretensioso, enquanto eles muito poderão fazer com os seus conhecimentos especializados em prol de um assunto de alta relevância no campo da disciplina e bem-estar do homem durante a guerra - de efeito psicológico imprevisível na formação e sustentáculo do moral da tropa.
A pressão de cima para baixo numa guerra é enorme. Toda a tropa da frente recebe o impacto de duas forças contrárias: a do inimigo que procura barrá-la por todos os meios materiais e a do Comando que a arremete contra o inimigo, usando de todos os meios materiais e psicológicos.
O homem do front tem assim o seu consciente terrivelmente comprimido pelo instinto de conservação e pelo cumprimento do dever, do que podem advir recalques e complexos incalculáveis, capazes de provocar profundos desequilíbrios físicos e mentais. Seria de mister, por conseguinte, a bem da saúde do homem que voltará à vida civilizada e da própria sociedade, que esses recalques fossem de momento em momento, sublimados por um repouso longe do front, onde o homem pudesse tomar contato com a vida civilizada de cujos hábitos e ambientes, a servidão do combate o afastara. Este é um ponto conhecido. Preciso é, pois, que seja levado em consideração como uma das teses mais importantes no planejamento da vitória sobre o inimigo.
A pressão exercida pelo Comando brasileiro foi bem acentuada. Pareceu-me, todavia, que esta rigidez decorreu da grande responsabilidade dos nossos comandantes que, apenas com uma divisão, representavam o Brasil na Segunda Guerra Mundial. Os brasileiros não podiam falhar, custasse o que custasse. Naturalmente, se se deixasse uma tropa à vontade, quase não haveria avanços... Mas, nós éramos apenas uma divisão. Se fracassássemos, seria o descrédito para a Força Expedicionária Brasileira. Daí a pressão ter sido tremenda e por vezes exaltada.
Isto criou uma mentalidade de indiferença e até de desestima pelo Alto Comando.
Surgiu um fatalismo displicente e irônico na Frente de Combate, que poderia ser traduzido nestas expressões: “Já vai tarde”, “O azar é seu”, etc. Sim, quem morresse ali, já ia tarde, envolto no saco branco dos mortos...
A FEB foi uma das divisões mais “sugadas” e uma das que mais produziram no âmbito do 5o Exército americano. Isto já passou. É preciso, entretanto, aprender para o futuro.
O soldado brasileiro, apesar dos pesares, não teve uma assistência psicológica e mesmo material como a dos norte-americanos. (Basta observar que até oficiais feridos, quando tiveram alta do hospital, estavam sem farda brasileira, sem dinheiro, etc. Houve quem tivesse que sair com farda americana e quem se viu sujeito à contribuição de colegas e soldados numa “vaquinha”.)
Os homens saíam da frente numa proporção que talvez atinja a metade da tropa em combate. Destarte, a metade ou quase a metade não soube o que era um descanso num hotel, em cidade da retaguarda onde se distraísse e sublimasse as emoções recalcadas pelas duas pressões opostas.
Na Itália, depois de vários dias de acampamento, passei a noite numa vila às escuras e tive um deseja súbito de bater à porta de uma das casas. Parecia um absurdo. Não fui porque o italiano não iria compreender o meu gesto. Há dias, porém, que eu não via uma simples cadeira, um objeto familiar, um prato de louça ou um copo de vidro. Tive vontade de estar numa sala de visitas, sentir as quatro paredes de uma casa e todo um ambiente doméstico, enfim um recanto familiar
É realmente duro para um homem civilizado, passar dias e meses dentro do mato, comendo em marmitas, sentando-se em bancos de madeira, sem encosto ou no chão, comendo com as mãos sujas ou as lavando muito mal no capacete de aço, longe de uma infinidade de coisas a que nos acostumamos desde crianças... É quando sentimos quando valem objetos de que nos utilizávamos sem lhes dar maior importância.
b) A displicência dos serviços da retaguarda.
Os chamados serviços de retaguarda organizam-se em vilas e cidades, pela maior facilidade de instalações. Aí é que começam os perigos do que chamarei - instalação doméstica da retaguarda. O homem procura familiarizar-se com o ambiente, instalar-se domesticamente.
Ora, numa guerra, a população local sofre as conseqüências mais variadas. Na Itália, grande parte dos homens ausentes, deslocados, prisioneiros, aumentou ainda mais a desproporção entre o número de pessoas do sexo feminino geralmente maior e o do sexo masculino, acentuadamente entre os vinte e trinta e cinco anos. Havia falta de certos gêneros essenciais como gorduras, chocolates, doces, etc., sabão, açúcar, café couros e sapatos, tecidos, gasolina e outros produtos não virtuais, mas de que os povos civilizados sentem a falta no conforto cotidiano, principalmente as mulheres, como perfumarias (batom, pós, sabonetes, talco, etc.). O combatente começa por se aproximar das casas, pela curiosidade humana de conhecer aquela gente, saber o que houve, como agiu o inimigo, quais os seus hábitos, etc. Conversa com os velhos mais acessíveis, alisa a cabeça das crianças (o combatente torna-se sentimental. Hajam vista as fotografias que leva consigo. Os prisioneiros alemães, tinham em seus bolsos inúmeras fotografias de suas famílias. O mesmo acontecia com os americanos e em ponto menor com os brasileiros). Oferece caramelos e chocolates ou conservas de suas rações. Surge, então, a mulher desejada. Daí por diante, as visitas se repetem, desanuviam-se as dúvidas, nasce a intimidade, e familiaridade. O combatente torna-se amável, dá presentes: caramelos, doces, chocolates, gêneros outros mais desejados. Entra-se, assim, na fase da “escatolagem” (quanto maior o posto, maior a generosidade, principalmente se é o pessoal que lida com os provimentos) e aí começa a história. Era uma vez...
Ora, enquanto o combatente do front está empenhado em salvar a pele e sustentar o terreno conquistado, o militar da retaguarda é tentado a uma vida doméstica, principalmente quando o inimigo não conta com superioridade aérea, como aconteceu na Itália. (Mesmo com a superioridade aérea do inimigo, é preciso notar que os ataques à retaguarda visam, em última análise, a frente de combate. A área desta é incomparavelmente inferior à daquela; esta é quem vai suportar o peso dos impactos inimigos, agravados pela irregularidade dos suprimentos pela perturbação ou desorganização da retaguarda.)
A vaidade tem mil formas. A concupiscência duas mil. O combatente da retaguarda vai amolecendo o espírito e o corpo e o resultado só pode ser prejudicial para a frente de combate, seja pela desídia, pela indiferença egoísta, seja pela utilização desonesta (sexual ou venal) dos provimentos para o regalo, volúpias e bem-estar da instalação doméstica da retaguarda. No mesmo local onde esteve o Depósito do Pessoal, instalaram-se antes os alemães, que deixaram uma cantina, aliás muito bem acabada (de madeira, pré-fabricada, e que servia para nós como Sala de Instrução), pois bem: soube que naquele mesmo local, fôra preso e fuzilado um oficial alemão por estar vendendo gasolina no câmbio negro. Quem conhece o rigor e a disciplina germânicas, pode imaginar o quanto fôra tentado este militar em vender um produto precioso de que tanto careciam os tedescos... Nada há a acrescentar, pois...
Estas considerações não têm, é óbvio, intuitos de generalizar. Nem todo combatente da retaguarda é assim. Mas o ambiente é propício ao desfalecimento moral, à quebra, pelo egoísmo, da solidariedade aos camaradas da frente, operando-se até, um movimento inconsciente de despeito e inveja àqueles que, na verdade são os verdadeiros combatentes. O aparecimento na retaguarda do combatente do front, eclipsa, naturalmente, qualquer militar não combatente, porque o fato de enfrentar o perigo e andar ileso pelas veredas da morte, dá ao homem um traço de masculinidade, uma auréola de respeito, que vêm desde os tempos mais remotos, pois os caciques, os chefes, sempre foram os mais fortes, os que lutavam e destruíam os inimigos com mais denodo e maiores riscos. Este mesmo mecanismo psicológico emergente das profundezas do inconsciente humano, operou-se em proporções muito maiores, no Brasil, quando há se havia apagado o ruído das palmas e das ovações com que o povo recebeu os expedicionários. Antes da partida, muitos se consideraram felizes em não seguir. Depois, estes homens que voltaram com uma história a contar, ostentando o mais relevante serviço que um cidadão pode prestar à Pátria, constituem sempre uma pedra no sapato de quem não foi. E um movimento surdo, talvez inconsciente, de tantos que não foram, contra tão poucos que seguiram, dissimula-se na mais velada ironia, na mais fingida indiferença e despeito. Este fato, foi agravado pelas histórias entusiásticas que os combatentes trouxeram da Itália. Fato natural, porque, passados os perigos e vicissitudes, o homem que deles emergiu os transforma em momentos de gratas recordações, acentuando sempre os mais favoráveis, mais alegres, mais agradáveis. Por isto, muitos no Brasil, consideram a ida da Força Expedicionária Brasileira, simples viagem de turismo pela Itália... e com isto, fazem o jogo inconsciente de despeito e da ironia.
O perigo maior está no aparecimento de uma casta da retaguarda. Verdade é que, para o bom andamento e desempenho da frente, faz-se mister elementos especializados na retaguarda. Pessoas que se tornam tão aplicáveis, tão práticas que substituí-las seria um transtorno prejudicial. Porém, a certeza de não ir para o front é mais um estímulo à domesticidade.
Numa guerra, por ser justamente um delírio, um surto de barbárie da civilização, devem prepondera os elevados padrões. Na retaguarda os princípios de honradez devem ser invioláveis, sob pena de desmoronar-se a estrutura combativa do povo e dos soldados.
c) A Campanha da Itália não foi um teste perfeito.
Nós, brasileiros, não podemos contar com o exemplo da campanha italiana. Nossas vitórias foram legítimas, indiscutíveis e honrariam qualquer força armada de qualquer parte do mundo. Não as tomemos, porém, como perfeita organização e eficiência nossa. A Itália não foi um teste perfeito, completo para o nosso espírito de organização e sob este prisma, para o Alto Comando, se bem que o tenha sido para os conhecimentos militares dos nossos oficiais e para o valor combativo e audaz dos nossos cidadãos. Incorreremos em grave erro e até em perigo para o nosso futuro, se pensarmos de forma diferente. Lá tínhamos excelentes vias de comunicações, os extraordinários meios do poderio industrial dos Estados Unidos, e uma quantidade de suprimentos de toda ordem, jamais vista por nenhum outro exército do mundo, em tempo algum. Soldado algum jamais combateu com tamanho conforto como o soldado americano. O Comando Brasileiro, sob este prisma material, agiu encaixado dentro dos quadros do IV Corpo do 5o Exército dos Estados Unidos, esquadrinhado pela sua organização e serviços. E apesar disto, o soldado brasileiro não gozou do mesmo conforto do soldado americano. E onde estaria, então, a eficiência? É que o homem brasileiro sofre privações permanentes. O homem, quando mais rústico, mais suporta os contratempos de uma guerra que é por natureza rastejante, primitiva e brutal. Demais disto, acostumados à frugalidade, à carência e à deficiência que a nossa pobreza reflete no Exército, o expedicionário experimentou uma sensação de melhoria tal, com os provimentos e organizações americanos que chegou até a diferenciar o “Exército de Caxias” da FEB.
Numa guerra que por desgraça tivesse como palco a nossa querida América do Sul, numa vastidão destas (basta imaginar que a Itália é comparável, em superfície ao Estado de Santa Catarina), sem vias de comunicações terrestres, com estes aranhóis ziguezagueantes em plena terra, sem asfalto ou cimento, sem transportes, sem aquelas catadupas de material de uma indústria portentosa, e que teríamos, à medida da nossa organização, veríamos quanto somos primários na intensidade da vida atual, quanto os soldados haveriam de sofrer e quanto se faria necessário uma retaguarda sólida, honesta, rígida, capaz de suportar e suprir os impactos sofridos na frente.
Somos um país pobre. Uma nação reduzida, carregando, como um caracol, uma concha tão grande que nos imobiliza. Não poderíamos nos dar ao luxo dos desperdícios. Basta considerar quanto nos custam as nossas manobras, em locais preestabelecidos, acessíveis por estradas regulares e num terreno por demais identificados pelos oficiais e sargentos. Após as manobras, os nossos homens estão ressentidos, abatidos, pelos contratempos naturais de um simples combate simulado.
d) A Importância dos Serviços Especiais.
E quanto mais pobres e mais carentes somos, mais teremos necessidade de assistir o combatente, confortá-lo pelo carinho de toda a nação. E por esse motivo é preciso que as forças armadas em seus estudos, em suas observações, analisem este ponto - o dos Serviços Especiais - da Assistência Psicológica, experimentando-os desde já como um assunto tão importante como os que servem de tese nas manobras.
Os americanos levavam isto muito a sério. Nas grandes cidades italianas, requisitaram grandes hotéis e restaurantes, destinando-os aos oficiais e soldados. Havia estações de cura e campos de repouso. Os dias que o homem passava na retaguarda, eram de felicidades. Estava só como um viajante. O preço da estada, no hotel, era apenas “pro forma”, tal a modicidade da quantia. O combatente podia levar uma companheira para as refeições, pagando um pouco mais. O Hotel Excelsior, um dos mais importantes de Roma, era um deles, variando apenas a qualidade dos hóspedes. É possível que o Excelsior não tivesse conhecido dantes tamanha animação, pois as danças americanas enchiam o ambiente de uma alegria incontida. As refeições eram feitas ao som de boas orquestras. Havia flores nas mesas. E enquanto os casais se serviam como gente civilizada, um violinista vinha para junto, passeando pelo amplo salão e arrancando das cordas do seu violino acordes plangentes de belas canções.
Os restaurantes, destinados apenas aos que passavam pela cidade, tinham, também, flores e músicas regionais. Não faltavam locais para divertimento dos homens. Night-clubs (musical box), cinemas, estádios esportivos onde lutadores se exibiam, cantinas onde se vendia de tudo e do melhor pelo preço de custo, além das distrações naturais da própria cidade.
Contaram-me que os norte-americanos, transferiram do front uma divisão completa para Monte Cattini, a fim de que repousasse nesta estação de cura.
Estas distrações e comodidades distribuídas religiosamente aos combatentes, destinavam-se a todos. É verdade que se mantinha a separação entre pretos e brancos. (Vi unidade completa constituída exclusivamente de nipo-americanos que, aliás lutaram bravamente na Itália.) (NC: O Regimento de Infantaria 442) Todos, entretanto, eram tratados com o mesmo desvelo, as mesmas atenções, da mesma forma que não havia diferenças entre o tecido, as peças de roupa e as botinas de combate, os alimentos e os cigarros dos oficiais e dos soldados. Cada um, por uma necessidade disciplinar, tinha os seus lugares: hotel dos sargentos, dos oficiais e dos soldados. O conforto e os meios, eram praticamente os mesmos.
Vi em Roma, enormes caminhões cheios de soldados, percorrendo os pontos mais importantes da cidade. Por um alto-falante, o guia dava explicações interessantes sobre os locais visitados, os fatos históricos, os monumentos, as obras de arte, etc.
Penetramos muitas vezes nestes ambientes americanos e fomos sempre muito bem acolhidos por eles. Só não podíamos dormir nos hotéis, porque não tínhamos autorização especial do nosso comando. Dormíamos nas casas dos italianos onde pagávamos um preço extraordinário. Nestas condições, uma simples refeição da manhã, custava muito mais do que a hospedagem e as refeições nos excelentes hotéis dos americanos. Os que trabalhavam em serviços na retaguarda, não estavam sujeitos à pressão do perigo do combate a cada passo. Localizados perto de boas cidades, podiam visitá-las constantemente.
À par da pressão do Comando que por si criou uma mentalidade de indiferença e ironia na frente, como já acentuei acima, havia esta má distribuição nos descansos, quando o soldado não fosse bater no Depósito do Pessoal, também mencionado supra.
Em revide, o soldado do front apelidou o soldado da retaguarda, se “Saco B”, saco guardado na retaguarda, enquanto o “A” seguia com o combatente.
Diversas modinhas, surgiram, então, traduzindo humoristicamente esta diferença psicológica entre o front e uma retaguarda, em grande parte “instalada domesticamente”.
Recordo-me, por exemplo, desta: (Música de Vida Apertada):
“Ai, ai, meu Deus
Como é bom viver
Na retaguarda
Como um saco B
... (Descrevia as comodidades da retaguarda para terminar dizendo que ela vivia...)
Sem tedesco ver...”
Vi certa vez um boletim reservado em que se punia um capitão muito popular em sua tropa e que suportara pesados bombardeios e andara até em duelos de pistola com o tedesco, por ser encontrada a sua companhia “alongada perigosamente” na estrada e os soldados carregando sacos às costas.
Eu já havia observado isto e procurara por todos os meios evitar este fato no meu pelotão. A causa, porém, estava em que o soldado não tinha confiança. O infante conduzia objetos adquiridos, coisas sem valor real, porém de valor de estimação, recordações que desejava levar para a Pátria. Era comum desaparecerem essas coisas, rasgando-se os sacos, ou pelo extravio dos mesmos, durante os transportes. (Eu mesmo sofri isto.) O homem era obrigado a separar o que julgava mais valioso e carregá-lo consigo. De quem a culpa? Como resultado a nossa tropa não tinha boa apresentação. As fardas bem sujas, eram lavadas pelas italianas nos estacionamentos. Até na retaguarda as lavadeiras entravam, muitas em suas bicicletas, nos acampamentos para apanharem as roupas dos soldados. (Mesmo quando, como em Francolise, os americanos puseram uma lavanderia com capacidade para cinco mil peças, à nossa disposição.)
E se não fossem os field-jacquets americanos, a nossa apresentação seria ainda pior. Depois os soldados não andavam rigorosamente equipados como julguei que acontecesse, talvez por falta de resistência física dos nossos homens.
Quando se rendeu a 148a Divisão de Granadeiros, cercada por nós, e que eu vi passarem ante os meus olhos milhares de soldados alemães, foi que eu observei como estavam eles equipados, bem fardados e apresentáveis.
Contava-se, não sei se por pilhéria, que um dos oficiais prisioneiros solicitara receoso que não lhe entregassem “àquele partigiano”, dirigindo-se a um nosso camarada. (os partigiani eram os maquis ou patriotas italianos, homens da resistência subterrânea., vestidos com blusões que os americanos jogaram de pára-quedas nas montanhas. Traziam um lenço em geral colorido amarrado no pescoço, e pareciam mais bandoleiros. No final da guerra, entravam nas cidades em caminhões e fizeram uma bruta confusão. Muitas vezes tive receio, porque não sabia se eram mesmo “partigiani” ou simples alemães disfarçados em fuga.)
Mas os soldados brasileiros não sentiram esta diferença de tratamento entre a retaguarda e o front, esta falta de descanso decente, daquelas distrações e que naturalmente teriam direito como participantes de um exército americano. Não sentiram, porque, vinham do desconforto e da pobreza brasileiros, e souberam defender-se de uma forma que os comandantes toleraram, mas que não deixava de ser uma burla necessária à disciplina de uma tropa.
As provisões, os agasalhos, os transportes americanos, como foi dito, por si mesmos já lhes davam um tratamento que eles jamais experimentaram no Exército brasileiro. E além disto, estavam na Itália, país pontilhado de cidades e vilas pitorescas onde a gente encontra a cada passo um marco histórico e pisa a terra com receio de topar com o crânio de algum César...
Depois da guerra, surgiram as “tochas” que eram passeios não autorizados e simplesmente tolerados pelos comandantes imediatos, no âmbito da companhia, batalhão, etc.
Se fossem pegos pelo pessoal da retaguarda, o azar seria deles... Assim, de acordo com o posto, as viagens eram mais longas. Oficiais, e às vezes sargentos, saíam de jeeps. Economizava-se a gasolina da cozinha e dos dois jeeps da companhia, e com ela um dos jeeps poderia sair estrada afora por uma semana ou menos, de acordo com as circunstâncias. Os soldados se arranjavam pedindo carona aos milhares de automóveis americanos e brasileiros que cruzavam as extraordinárias autovias italianas. Assim, “acendia-se a tocha”, expressão cuja origem não sei. Houve quem fosse até Paris.
Não é de admirar que assim se tivesse procedido. Se muitos e muitos da retaguarda inclusive do Depósito do Pessoal, foram autorizadamente à Paris? Se eles iam à Roma e à Florença e outros lugares onde eram hospedados em hotéis americanos, e mesmo andavam acima e abaixo bem apresentáveis e bem servidos, bem transportados, por que haveriam os comandantes do front de negar àqueles homens que arriscaram a pele e lutaram tão bravamente, um passeio e uma folga? A “tocha” foi uma justiça irregular, mas, foi uma justiça. Quando os homens descrêem da justiça, fazem-na pelas próprias mãos. O cuidado está, em que ela não falte, e em que os homens não percam as esperanças de que ela se fará.
Esta foi a razão por que os combatentes do front não estranharam. Visitaram as cidades e os pitorescos vilarejos peninsulares, alimentando-se das bem empacotadas e até camufladas rações de combate ou pagando altos preços nas “tratórias”. Penetravam nas distrações americanas ou nos bailes e saraus familiares improvisados pelos italianos, gozaram, enfim, do que lhes ofereceram.
e) E o Comando?
Apesar do respeito que devo ao Marechal, seria fantasia dizer que tenha havido afeição pelo nosso Comandante-Chefe. O Alto Comando não podia ser bem visto na frente. Nem na retaguarda. Os comentários, os apelidos, as críticas que se faziam, eram uma demonstração do que afirmo. Reconheço, como já disse acima, que esses comentários em grande parte, resultavam da pressão que todo o comando exerce sobre a linha de frente. A FEB deu um “murro” medonho. Era a primeira vez em que o Exército Nacional atravessava o Atlântico para lutar em terras da Europa. Constituíamos, apenas, uma divisão e sobre ela, sobre os Comandantes pesavam grandes responsabilidades. Embora encaixada no 5o Exército americano, tivera de adaptar-se ao complexo mecanismo militar, ianque. Os Comandantes, por amor próprio e por patriotismo, quiseram mostrar suas habilidades, a capacidade militar, e o espírito combativo dos brasileiros, ao apresentar o melhor rendimento possível e o menor incômodo aos americanos. E “vamos pras cabeceiras!”... De forma que a pressão foi grande. Na própria FEB, o pessoal do 6o Regimento se queixava de ter sido o mais “sugado”, o menos condecorado, o menos falado... Vemos, por conseguinte, que nestas condições espinhosas, o nome do Marechal Mascarenhas não seria utilizado por afeição, por estima dos soldados.
Pelo que pude observar e pelo que escutei, a estima real dos combatentes vai decrescendo da companhia até o Comandante do Regimento. Eles prezam realmente os oficiais e o comandante da companhia com quem vivem, com quem lutam, com quem sofrem. Depois, em grau menor, os comandantes dos batalhões. E assim, até o do Regimento.
Distanciados do Alto Comando, os combatentes não têm conhecimento das altas indagações e dos planejamentos dele. O que sabem é que a pressão é séria, que o Alto Comando não quer conversa, que eles, inclusive o seu Capitão, estão arriscados a ser considerados covardes por “dá cá aquela palha”... Que a missão tem de ser cumprida, custe o que custar.
Entretanto, se o pessoal do Alto comando participou de um banquete, se foi condecorado, se fez isto ou aquilo, aí sim, todos sabem logo. E os comentários são insopitáveis, incontroláveis. Mas, como o inimigo está no outro lado, e não pode “dar sopa”, o combatente descarrega a sua insatisfação no inimigo e faz blague da retaguarda... Ouvi muitos comentários, por exemplo, sobre um oficial do Estado-Maior, que surpreendera um major da Tropa prestando informações na terminologia do front, ao dizer que “as bombas estão caindo muito”. E como não perdoasse aquela falta de precisão terminológica, aparteou com ar técnico: “Bombas que o senhor quer dizer, são granadas, não é?...”
O nome mais usado na frente, pelo que ouvi, era o do General Zenóbio. Porém, a impressão não era de simpatia, pois o General Zenóbio era considerado como intratável. Ouvi contar, que o tedesco tinha conhecimento de sua visita ao front, porque, nessas ocasiões, era sempre provocado por nossos elementos. O azar, porém, é que só quando o General saía, era que a “pena voava...”
Muito conhecida foi esta modinha cantada com o samba “Atire a primeira pedra”:
Covarde sei que me podem chamar
Mas, eu em Castello não hei de voltar...
Atire a primeira “bomba” tedesco
Que eu quer ver Zenóbio avançar...
Daí as minhas conclusões ao encontrar na Diferenciação Técnica, na Diferenciação Geográfica e na Diferenciação Disciplinar entre a vida de paz, de quartel no Brasil e a vida de guerra na Itália, o motivos materiais e psicológicos pelos quais os pracinhas distinguiram o Exército Territorial do Exército Expedicionário; o Exército de Caxias, como sempre ouviram denominar o Exército no Brasil, distinguia-se daquele “Exército” diferente em técnica, sistemas, transportes, provisões, etc., vivendo em outros ambientes geográficos e lutando dentro de princípios disciplinares bem outros que os do quartel.
Na realidade, a FEB era o próprio Exército de Caxias (como não poderia deixar de ser) usando os field-jacquets, os capacetes, os agasalhos, os cigarros, as comidas, a gasolina, os transportes e as comodidades americanas, e avançando pelas terras da Itália unido pela confraternização dos filhos de uma mesma Pátria, aproximados pela solidariedade do sofrimento, da luta e do perigo comuns. Cobertos pela mesma bandeira - “Auri-verde pendão da minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança.”
Estas são as minhas impressões.
f) Considerações finais.
As conclusões que poderemos recolher do que foi exposto, são as de que a maior garantia de uma nação repousa no bem-estar, na educação, na capacidade de produzir riquezas, no desenvolvimento industrial e agrícola dos seus filhos. Quem não tem saúde nem educação nem disciplina civil, nem é capaz de produzir alimentos e utensílios para viver dignamente em tempos de paz, está vinculado ao fracasso e à derrota ao sobrevir uma guerra.
Veja-se o exemplo dos EUA: em menos de três anos, a poderosa nação do norte transformou-se no “Arsenal das Democracias” enviando mantimentos, armas de todos os tipos, máquinas leves e pesadas a dezenas de povos e mobilizou, instruiu equipou milhões de soldados que combateram bravamente em todas as frentes do conflito. Observe-se que foi precisamente nesta época de trabalhos hercúleos e responsabilidades tremendas que os Estados Unidos construíram para nós a poderosa usina siderúrgica de Volta Redonda.
Por que conseguiram isto? Porque os Estados Unidos eram o maior parque industrial do mundo. As terras habitadas, os homens educados na visão prática do trabalho metódico, racional, padronizado; fábricas e organizações gigantescas levantadas pelo espírito empreendedor dos seus cidadãos; comunicações de todas as espécies, rápidas, confortáveis.
Estas considerações, eu as faço com o pensamento voltado para a América Latina e especialmente para o Brasil.
Atualmente, atravessamos um período sem ameaças de invasão ou de guerra de conquista. O único país que, se quisesse, poderia conquistar-nos, seriam os Estados Unidos. Mesmo sem falar na “bomba atômica”, eles desbaratariam todos os exércitos sul-americanos reunidos, antes de podermos tomar fôlego. Felizmente, o povo americano do norte não tem idéias de conquistas territoriais, pois como todo povo amante da liberdade, respeita a liberdade alheia. O exemplo das Filipinas a quem os Estados Unidos concederam a independência é decisivo.
Entretanto, o mundo é cada vez menor e não somente as populações crescem como necessitam um padrão de vida mais elevado. Hoje, ninguém cobiça as nossas terras imensas, que nós não conseguimos, ainda, habitar, aproveitar, desenvolver e civilizar. Quem pode prever as reviravoltas do mundo dentro de um século? Mesmo que não haja nenhum perigo de agressão futura, precisamos agir em benefício desses milhões de patrícios que vivem a era do barro em pleno século atômico e prover o essencialmente necessário afim de que os nossos filhos e netos possam manter uma vida realmente civilizada.
A América Latina está com um atraso de mais de cem anos e precisa correr para apanhar em tempo o comboio da civilização e do progresso, que já passou, que já se perde de vista, lá adiante...
Pois bem: em lugar de nos unirmos em prol dos nossos povos, gastamos uma fortuna colossal em armamentos de guerra. Ora, se o Chile compra armas, a Argentina não pensará que ele se prepara para combater o Japão. Se a Argentina emprega milhões e milhões, adquiridos durante o regime democrático, em tanques, canhões e aviões a jato, o Brasil não pode imaginar que os nossos irmão do sul estejam em preparativos para atacar seres de Marte... E toda a América do Sul se atira numa corrida armazenista, na qual se esgotam as nossas enfraquecidas economias e disponibilidades.
As grandes divergências que separam o mundo oriental do ocidental, serão solucionadas pela paz ou pelo conflito armado entre os grandes. Teremos pela frente grandes dificuldades a resolver. Não será com a nossa fraqueza, com a nossa mortalidade infantil, com esta falta de gêneros de primeira necessidade, com esta carestia, com o pauperismo, enfim, que haveremos de influir nos problemas de paz ou de guerra que agitam o mundo.
Os Estados Unidos só se envolveram em questões internacionais na Grande Guerra de 1914. Até então, preocupavam-se com os problemas internos, montando o extraordinário poderio econômico que ostentam hoje. Em 1914, eles eram, já, um peso respeitável na balança internacional. Não porque possuíssem grandes exércitos, o que não ocorria, e sim porque já haviam edificado uma indústria colossal, uma agricultura racional e sólida num país cortado por vias de comunicações de primeira ordem. Sua marinha mercante era das primeiras. Eram eles capazes de construir desde a bicicleta até o couraçado, os altos fornos siderúrgicos, as máquinas que fazem máquinas.
È o que somos nos nesta era atômica? Não fabricamos bicicletas. As máquinas que usamos, desde o ventilador elétrico, são importadas. A base da nossa agricultura é a enxada, o processo rotineiro e a fome, aliada às moléstias, espreita o nosso povo.
Penso, portanto, que seria este um interessante trabalho para os homens de prestígio e inteligência das Américas: lançar as bases de um planejamento para a América Latina, a fim de que possamos desviar grande parte dos nossos recursos em obras de real contribuição ao desenvolvimento dos nossos povos. Em lugar de tanques - tratores, niveladoras de estradas, escavadeiras. Em lugar de canhões e metralhadoras - arados e utensílios agrícolas e industriais.
Se fosse absolutamente impossível reduzir o exército territorial, talvez fosse viável uma organização em que, substituindo outras tropas, surgissem mais unidades de engenharia, inclusive engenharia sanitária, de forma que se pudesse empregar grandes contingentes no trabalho de construções de estradas, pontes, saneamento dos campos e de cidades do interior, etc...
Dir-se-á que a função do Exército é bem outra. Direi, todavia, que a situação do Brasil é de emergência e o problema do povoamento do campo e da fixação do agricultor deve ser atacado de rijo, sem perda de tempo. Um serviço desta ordem prestado pelo cidadão convocado seria mais valioso à segurança e fortalecimento nacional do que a simples instrução militar.
Porque é preciso deslocar o eixo de equilíbrio do litoral para o interior. Todo o mundo o afirma, todo o mundo o proclama. Mas não é com palavras e discursos, que os agricultores ficarão nos campos e os habitantes do litoral deixarão as cidades.
Esses problemas que vêm de longa data não se resolvem com decretos, carimbos e portarias.
Os Estados Unidos têm, também, os seus problemas. Roosevelt, ao se referir às quinhentas mil pessoas de vida incerta, fazia graves advertências, embora este número fosse insignificante para a população dos Estados Unidos, de cerca de cento e trinta milhões de habitantes. Dizia o grande estadista:
“As famílias migratórias, a situação de suas crianças, crianças que não têm lar e famílias que não podem deitar raízes, que não podem viver numa comunidade... Isso exige uma consideração especial. Mas estou tentando achar um lugar para elas. Isto significa, nos termos mais simples, um programa para o repovoamento permanente de pelo menos um milhão de pessoas na bacia de Colúmbia e numa porção de outros lugares. E lembrai-vos que o dinheiro gasto com isso, depois de um projeto cuidadoso, será devolvido ao governo dos Estados Unidos em somas muitas vezes maiores, num tempo relativamente curto”.
“Não há dúvida de que nosso futuro está em perigo quando aproximadamente um milhão de crianças em idade de freqüentar um colégio elementar não estão na escola, quando centenas de distritos escolares e mesmo alguns Estados inteiros não tem verbas para boas escolas. O que quero dizer realmente é isto: gostaria de imprimir na primeira página de todos os jornais dos Estados Unidos uma lista dos mais atrasados distritos escolares e dos Estados mais atrasados em matéria de instrução nos Estados Unidos. Este tratamento seria rude, mas toda gente nos Estados Unidos poderia ficar sabendo onde havia as piores condições de saúde e de educação.”
E mais estas palavras lapidares que deveriam pesar nas consciências de todos os brasileiros:
“Pelos olhos da criança é que devemos olhar a nossa civilização. Se pudermos apresentar em linguagem simples algumas das necessidades básicas da infância, veremos mais claramente as questões que desafiam a nossa inteligência.”
“Supomos que, para ser feliz, uma criança tem de viver num lar em que encontre calor, alimento e afeição, que seus pais cuidem dela quando ela adoeça; que encontre na escola os professores e os elementos necessários a uma educação, que quando cresça haja para ela um emprego e que um belo dia possa estabelecer seu próprio lar.”
“Quando considerarmos estes elementos essenciais para uma infância feliz, sentimo-nos entristecidos por saber que há muitas crianças que não podem ter o que acabamos de supor.”
“Preocupa-nos o futuro da nossa democracia quando as crianças não podem ter as coisas que se reconhece significarem segurança e felicidade.”
A Segurança Nacional está em povoarmos a terra imensa deste país. Não somente povoá-la, porém, dar ao povo os meios educacionais e técnicos indispensáveis ao trabalho compensador de extrair da terra e das máquinas os meios de uma subsistência decente, compatível com a civilização que o mundo já conquistou. Pois, se no presente, não paira sobre nós a ameaça de invasão e conquista deste patrimônio colossal que os nossos antepassados nos legaram, devemos aproveitar a oportunidade de alcançar o comboio do progresso e preparar o corpo e o espírito para as surpresas do porvir.
Roosevelt ao definir os deveres da democracia, apontava, com felicidade, os rumos que o futuro nos reserva:
“A democracia deve inculcar em seus filhos a capacidade para viver e assegurar as oportunidades para o exercício dessa capacidade. O êxito das instituições democráticas não é medido pela extensão do território, pelo poder financeiro, máquinas ou armamentos, mas pelos desejos, esperanças e satisfações profundas dos indivíduos, homens, mulheres e crianças, que formam a sua cidadania.”
“Nossa segurança não é unicamente uma questão de armas. Forte tem de ser o braço que as brandir, clara a visão que as guie; insubjugável a vontade que as comande.”
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Extraído de “Depoimento de Oficiais da Reserva Sobre a FEB”. 2a Ed. 1950
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Clermont escreveu:Ae moderadores e administradores! 8)
Se eu tiver exagerado no tamanho da mensagem, foi mal, viu?
Mas eu não resisti...
Está excelente Clermont!
Admito que ainda não li nem 1/5 do texto, mas é um relato bem interessante.
Abraço!
César
"- Tú julgarás a ti mesmo- respondeu-lhe o rei - É o mais difícil. É bem mais difícil julgar a si mesmo que julgar os outros. Se consegues fazer um bom julgamento de ti, és um verdadeiro sábio."
Antoine de Saint-Exupéry
Antoine de Saint-Exupéry