O domínio do medo

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Slip Junior
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O domínio do medo

#1 Mensagem por Slip Junior » Dom Abr 18, 2004 1:24 pm

O domínio do medo
MARCIO MOREIRA ALVES

Osecretário de Segurança do Rio, Anthony Garotinho, e sua mulher, a governadora Rosinha Matheus, são mestres do humor negro. Enquanto os cidadãos comuns apressavam o passo na volta para casa, rezando para não serem alvejados por uma bala perdida, e os restaurantes, bares e cinemas da Gávea e de São Conrado ficavam às moscas, o ilustre casal desfrutava as belezas de Angra dos Reis. Na volta da Semana Santa se comprazia em fazer ironias com o governo federal ou em teatralizar um interrogatório do assassino do casal de americanos na Barra da Tijuca.

Culpa nossa, de cariocas e fluminenses, que há décadas escolhemos mal nossos governantes. Parece que pesa sobre o Rio uma praga de mãe, que é a praga que babalorixá nenhum desfaz. Mas não precisavam exagerar. Fazer piada com o sofrimento e o pavor da população é uma crueldade indesculpável.

Vivemos sob o domínio do medo, até mesmo dentro de casa. Já nem falo das balas perdidas que entram pelas janelas dos vizinhos de zonas conflagradas. Falo dos assaltantes mesmo, que deram para invadir prédios inteiros, saqueando e fazendo reféns.

Outro dia, foi a vez de o ex-ministro da Fazenda, Marcílio Marques Moreira, ter seu apartamento invadido, às dez da manhã. Conta que pareciam jovens de classe média, falando corretamente, acertando as concordâncias e sem usar as gírias dos marginais. Buscavam dólares e diamantes, que não encontraram, apesar de terem revirado a casa inteira. Marcílio tem uma maravilhosa biblioteca, amealhada ao longo dos anos e das viagens. Qualquer de suas raras edições, como a primeira edição do “Leviatã”, de Hobbes, de 1651, vale alguns milhares de dólares. Felizmente para ele, ainda não produzimos bandidos bibliófilos. Um dos assaltantes, decepcionado com o parco butim, comentou com Maria Luiza, sua mulher:

— Seu marido é bom de livros, mas muito ruim de dólares.

Barricados em nossas casas, como os habitantes de Sarajevo durante a guerra civil, estamos ameaçados por violência ainda maior: é que os Estados Unidos ameaçam o Brasil com represálias ainda não explicitadas caso o país não adira a um protocolo adicional ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e permita a inspeção visual completa das instalações de enriquecimento de urânio através de centrifugadoras aperfeiçoadas pela Marinha, a partir das originais alemãs.

Ontem chegou a Brasília o secretário de Energia dos Estados Unidos, Spencer Abraham, para discutir esse e outros assuntos de sua área com o governo brasileiro. Antes da viagem, os americanos vazaram informações ameaçadoras para os quatro maiores jornais do país sobre a nossa recusa em permitir a inspeção visual das instalações nucleares em Resende. O temor das autoridades brasileiras é que as inspeções sirvam para espionagem industrial.

Roberto Abdenur, nosso embaixador em Washington, apressou-se a dar uma entrevista minimizando a possibilidade de conflito. Lembrou, até, que o Brasil é o único país do mundo a inscrever na sua Constituição o uso exclusivo do nuclear para fins pacíficos. É, ainda, signatário do TNPA e abre nossas instalações a inspeções regulares da Agência Internacional de Energia Atômica.

Não são interesses militares que estão em jogo, mas os do mercado de urânio enriquecido, que movimenta cerca de US$ 30 bilhões por ano. As instalações de Resende enriquecem o urânio 238, transformando parte do minério em urânio 235, que é o combustível das usinas nucleares de Angra dos Reis. Para a fabricação de radioisótopos, como os usados em medicina e na agricultura, é necessária uma concentração mais alta. A fabricação de bombas exige uma concentração de 95% de urânio físsil 235, em instalações muito mais caras, que o Brasil não tem nem pretende ter.

O interesse americano em barrar o processo de enriquecimento do urânio natural brasileiro é puramente comercial. Como temos algumas das maiores reservas minerais do mundo e já produzimos a pasta amarela que mandamos para o processo final de enriquecimento a Almelo, na fronteira da Holanda com a Alemanha, se enriquecermos o urânio aqui, por um processo aqui desenvolvido, que consome menos energia, poderemos ser um importante concorrente internacional, vendendo combustível para a França, que tira 80% da energia que consome de usinas nucleares, para a Bélgica e a Suíça, que dependem do nuclear para 30% de seu consumo, ou para a Alemanha, que tem uma dependência um pouco menor.

Não estar em jogo interesses militares importa pouco. Segundo a Doutrina Bush, os Estados Unidos podem intervir onde quer que seus interesses sejam ameaçados e é o presidente quem define a ameaça.

É pela porta do nuclear que podemos entrar na civilização do medo, que alguns dos principais intelectuais árabes e franceses discutem em Alexandria, conforme nos tem informado o estimado egiptólogo Merval Pereira.

MARCIO MOREIRA ALVES é jornalista.


Fonte: O Globo

Abraços




Editado pela última vez por Slip Junior em Ter Abr 20, 2004 2:04 pm, em um total de 1 vez.
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#2 Mensagem por Slip Junior » Ter Abr 20, 2004 2:03 pm

Pessoal, eu gostaria de sugerir juntamente com o texto acima, o documentário "Tiros em Columbine" (Bowling for Columbine), de Michael Moore, que ganhou um Oscar.

O documentário é ótimo, e reflete muito bem a chamada "cultura do medo" tão presente na mídia norte-americana e brasileira nos dias atuais. Afinal de contas, temos muito mais em comum com os vizinhos do norte do que os seus mais devotosos criticos costumam acreditar...

Abraços




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