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Mensagem
por Clermont » Dom Ago 29, 2010 2:18 pm
DESFAZENDO UM HOMEM DA COMPANHIA - Uma educação começa nas sombras do Portão de Brandemburgo.
Por Andrew Bacevich - 27 de agosto de 2010.
Esta é a introdução do novo livro de Andrew Bacevich, Washington Rules: America's Path to Permanent War.
Ambições mundanas inibem o verdadeiro aprendizado. Pode me perguntar. Um jovem com pressa é, quase sempre, deseducado: ele sabe o que quer e para onde está rumando; quando se trata de olhar para trás, ou entreter pensamentos heréticos, ele nem tempo tempo, nem a inclinação. Tudo o que conta é que ele está indo para algum lugar. Apenas quando a ambição se desvanece, a educação se torna uma possibilidade.
Minha própria educação não começou, até eu alcançar a meia-idade. Eu posso fixar esta data com precisão: para mim, a educação começou em Berlim, numa noite de inverno, no Portão de Brandemburgo, não muito depois do o Muro de Berlim cair.
Como um oficial do Exército dos Estados Unidos, eu passei considerável tempo na Alemanha. Até aquele momento, entretanto, minha família e eu nunca tínhamos tido ocasião de visitar as mais famosas cidades alemãs, ainda juncadas com artefatos de uma história profundamente repelente. Ao fim de um longo dia de exploração, nos encontramos no que havia sido, até poucos meses antes, o Leste comunista. Estava tarde e estávamos famintos, mas insisti em caminhar toda a extensão da Unter den Linden, do rio Spree até o próprio portão. Uma chuva fria estava caindo e o pavimento brilhava. Os edifícios alinhados com a aveninda, datando da era dos reis prussianos, eram sombrios, sujos e esburacados. Poucas pessoas estavam por lá. Dificilmente seria noite para passeios turísticos.
Por tanto quanto podia lembrar, o Portão de Brandemburgo tinha sido o símbolo proeminente da era e Berlim, o epicentro da história contemporânea. Porém, na época em que fui para a antiga e futura capital alemã, a história já tinha se movido. A Guerra Fria tinha, abruptamente, acabado. Uma cidade e uma nação divididas tinham se reunido.
Para os americanos que haviam conhecido Berlim, apenas da distância, a cidade existia, primordialmente, como metáfora. Escolha uma data - 1933, 1942, 1945, 1948, 1989 - e Berlim torna-se um símbolo instrutivo de poder, depravação, tragédia, desafio, persistência ou vingança. Para estes inclinados para verem o passado como uma crônica de parábolas, a moderna história de Berlim oferece abundante material. O maior destes paralelos emergiu dos eventos de 1933 a 1945, uma épica história de mal ascendente, combatido tardiamente, então, heroicamente derrubado. Uma segunda narrativa, costurada dos eventos durante o intenso período imediatamente seguindo a Segunda Guerra Mundial, viu esperanças pela paz esmagadas, gerando amargo antagonismo mas, também, grande força de vontade. O impasse que se seguiu - a "longa luta no crepúsculo", na memorável frase de John Kennedy - formou a característica fundamentel da terceira parábola, seu tema central, coragem obstinada em face do perigo iminente. Finalmente, vieram os estimulantes eventos de 1989, com a liberdade prevalecendo, por fim, não só em Berlim, mas por toda a Europa Oriental.
O que, exatamente, eu estava procurando no Portão de Brandemburgo? Talvez, confirmação que estas parábolas, que eu tinha absorvido e aceitado como verdadeiras, eram simplesmente isto. O que fosse que eu esperasse, o que eu, realmente, achei, foi um punhado de homens jovens, de aparência desleixada, não-alemães, fazendo camelotagem de insígnias, medalhões, chapéus, partes de uniformes e outros artefatos do poderoso Exército Vermelho. Era tudo lixo, de manufatura barata e má-qualidade. Por um punhado de deutsche marks, comprei um relógio de pulso, enfeitado com o símbolo do Corpo Blindado soviético. Em alguns dias, deixou de funcionar.
Amontoados por entre colunas danificadas, estes pedintes - quase certamente soldados russos fora de serviço, aguardando redesdobramento para casa - constituiam uma presença subversiva. Eles eram pontas soltas de uma história que, supostamente, tinha terminado, perfeitamente, quando o Muro de Berlim veio abaixo. Enquanto nos apressávamos para achar calor e uma refeição, este desconcertante encontro ficou comigo, e eu comecei a entreter esta possibilidade: que as verdade que eu havia acumulado pelos vinte anos anteriores como soldado profissional - especialmente, verdades sobre a Guerra Fria e a política externa americana - podiam não serem, inteiramente, verdades.
Por temperamento e formação, eu semprei achei conforto na ortodoxia. Numa vida passada sujeita à autoridade, deferência tornou-se um hábito, profundamente entranhado. Eu encontrei segurança na sabedoria convencional. Agora, começava, ainda de forma hesitante, a suspeitar que a ortodoxia podia ser uma fraude. Eu começei a apreciar que a autêntica verdade nunca é simples e que qualquer versão da verdade vinda de cima para baixo - seja dos presidentes, primeiros-ministros ou arcebispos - é, inerentemente, suspeita. Os poderosos, passei a enxergar, revelam a verdade, somente na extensão que se adequa a eles. Mesmo então, as verdades que eles testemunham vêm envoltas em quase invisíveis filamentos de ocultação, dissimulação e duplicidade. O exercício do poder, necessariamente, envolve a manipulação e é a antítese da franqueza.
Eu cheguei a estes pontos óbvios, embaraçosamente tarde na vida. "Nada é tão impressionante na educação," uma vez escreveu o historiador Henry Adams, "quanto o montante de ignorância que ela acumula na forma de fatos inertes." Até aquele momento, eu tinha, com freqüência, confundido educação com o acúmulo e catalogação de fatos. Em Berlim, ao pé do Portão de Brandemburgo, eu comecei a compreender que eu tinha sido um ingênuo. E, assim, na idade de 41 anos, rumei, de forma descontínua e confusa, para adquirir uma genuína educação.
Vinte anos mais tarde, eu fiz, somente, progressos modestos. O que segue é um relato do que eu aprendi, desde então.
Visitando uma versão de terceiro mundo da Alemanha.
Em outubro de 1990, eu recebi uma dica preliminar de que algo poderia ter sido perdido em minha prévia educação. Em 3 de outubro, a Alemanha Oriental comunista - formalmente, a República Democrática Alemã (RDA) - deixou de existir e a reunificação alemã foi, oficialmente, assegurada. Nesta mesma semana, eu acompanhei um grupo de oficiais americanos para a cidade de Jena, no que antes era a RDA. Nosso propósito era educacional - estudar a famosa batalha de Jena-Auerstädt, na qual Napoleão Bonaparte e seus marechais infligiram uma épica derrota sobre as forças prussianas comandadas pelo Duque de Brunswick. (O resultado desta batalha de 1806, inspirou o filósofo Hegel, então residindo em Jena, a declarar que o "fim da história" estava à vista. A conclusão da Guerra Fria tinha, apenas recentemente, gerado um julgamento, similarmente exuberante, do acadêmico americano Francis Fukuyama.)
Nesta viagem, aprendemos um bocado sobre a conduta daquela batalha, embora, fatos, principalmente inertes, possuam pouco valor educacional real. Inadvertidamente, também ganhamos compreensão da realidade da vida no lado de lá do que os americanos, habitualmente, chamavam a Cortina de Ferro, conhecida no vernáculo dos militares americanos, como "o Traço". A este respeito, a viagem se mostrou nada menos do que reveladora. O conteúdo educacional desta excursão seria - para mim - difícil de exagerar.
Tão logo o ônibus atravessou a velha Fronteira Interna Alemã, entramos num túnel do tempo. Para as tropas americanas aquarteladas por toda a Bavária e Hesse, a Alemanha Ocidental tinha, por décadas, servido com uma espécie de parque temático - cheio de aldeias singulares, cenários atordoantes e soberbas autoestradas, junto com amplos suprimentos de comida decente, excelente cerveja e convidativas mulheres. Agora, estávamos frente-a-frente com uma Alemanha, completamente diferente. Embora, comumente retratada como a mais avançada e bem-sucedida componente do Império Soviético, a Alemanha Oriental, mais parecia componente do mundo subdesenvolvido.
As estradas - mesmo as principais autoestradas - eram estreita e visivelmente em deterioração. O tráfego representava pouco problema. Além de uns poucos e lerdos "Trabants" e "Wartburgs" - automóveis leste-alemães que tendiam ao primitivismo - e um ocasional caminhão cuspindo fumaça, o caminho estava aberto. As aldeias pelas quais passamos estavam abandonadas e as pequenas fazendas eram miseráveis. Para lanchar, paramos numa barraca à beira da estrada. O proprietário aceitou, feliz, nossos D-Marks, oferecendo-nos, em troca, salsichas indigeríveis. Embora todos os sinais nos assegurassem que permanecíamos numa terra de língua alemã, era um país que ainda não havia se recuperado da Segunda Guerra Mundial.
Após a chegada em Jena, examinamos o Hotel Scwarzer Bär, identificado por nosso grupo avançado como o melhor da cidade. Ele mostrou ser um saco de pulgas decrépito. Como o oficial superior presente, eu fui privilegiado com a ocupação de um quarto no qual o encanamento funcionava. Os outros não foram tão felizes.
A própria Jena era uma cidade universitária mediana, com seu principal complexo acadêmico, imediatamente oposto ao nosso hotel. Uma busto muito grande de Karl Marx, montado num pedestal de granito, e muito necessitado de limpeza, permanecia na orla do campus. Briquetes de carvão macio, utilizados para aquecimento doméstico, tornavam o ar, quase irrespirável e manchavam tudo com fuligem. Nas cidades alemãs que conhecíamos, tons pastéis predominavam - casas e blocos de apartamentos pintados em verde pálido, salmão e amarelo suave. Aqui, tudo era marrom e cinza.
Nesta noite, fomos atrás do jantar. Os restaurantes dentro de distância de caminhada, eram poucos e sem atrativos. Escolhemos mal, um pardieiro no qual vegetais frescos estavam indisponíveis e o Wurst (salsichão alemão) era inferior. A adequabilidade da cerveja local fornecia o único consolo.
Na manhã seguinte, no caminho para o campo de batalha, observamos uma significativa presença militar soviética, na maioria na forma de caminhões em trânsito - julgando pela aparência deles, desenhos que datavam dos anos 1950. Para nossa surpresa, descobrimos que os soviéticos tinham estabelecido uma pequena área de treinamento adjacente a onde Napoleão tinha batido os prussianos. Embora tivéssemos ordens para evitar contato com quaisquer russos, a presença de suas tropas blindadas capturou nossa atenção. Eis aqui, algo de muito maior urgência do que Bonaparte e o Duque de Brunswick: "o outro", sobre o qual, por tanto tempo, tínhamos ouvido, mas sabíamos tão pouco. Através de binóculos, observamos uma coluna de viaturas blindadas russas, BMPs no jargão da OTAN - passando pelo que parecia ser um curso de treinamento de motoristas. Repentinamente, uma delas começou a vomitar fumaça. Logo depois, explodiu em chamas.
Aqui estava educação, embora, neste tempo, eu tivesse, somente, o mais vago dos sentidos sua signficação.
Um ambicioso jogador de equipe assolado por dúvidas.
Estas visitas à Jena e Berlim ofereceram vislumbres de uma realidade, radicalmente em oposição com minhas mais fundamentais pressuposições. Sem convite e inesperadamente, forças subversivas tinham começado a infiltrar-se em minha consciência. Ponto por ponto, minha visão de mundo começava a desabar.
Esta visão de mundo derivava desta convicção: que o poder americano manifestava um empenho para a liderança global, e que os dois, juntos, expressavam e afirmavam a duradoura devoção da nação para com seus ideais fundadores. Que o poder, política e propósito, estavam atados juntos, num pacote perfeito, consistente, cada elemento tirando sua força e reforçando os outros, era algo que eu tomava como fato dado. Que, durante toda minha vida adulta, uma inclinação pelo intervencionismo, tivesse tornado-se a assinatura da política dos Estados Unidos, não constituia-se, de forma nenhuma - pelo menos, para mim -, em contradição com as aspirações da América pela paz. Ao invés, a disposição para consumir vidas e dinheiro em lugares distantes, testemunhava a seriedade de tais aspirações. Que, durante este mesmo período, os Estados Unidos emassassem um arsenal de mais de 31 mil ogivas nucleares, pequeno número destas, designadas para unidades nas quais servi, não estava em contradição com nossa crença no inalienável direito à vida e à liberdade; antes, ameaças para a vida e a liberdade tinham compelido os Estados Unidos a adquirir um tal arsenal e mantê-lo, em prontidão, para uso instantâneo.
Eu não era tão ingênuo para acreditar que o registro americano era sem falhas. Porém eu garantia a mim mesmo que quaisquer erros ou maus julgamentos tinham sido cometidos de boa fé. E mais, as circunstâncias permitiam pouca escolha real. No Sudeste Asiático, como na Europa Ocidental, no Golfo Pérsico como no Hemisfério Ocidental, os Estados Unidos, simplesmente, tinham feito o que precisava ser feito. Alternativas viáveis não existiam. Consentir na diluição do poder americano seria abrir mão da liderança global, em decorrência, colocando em risco a segurança, prosperidade e liberdade, não somente nossas, mas também de nossos amigos e aliados.
As escolhas pareciam claras, o suficiente. De um lado estava o status quo: os comprometimentos e hábitos que definiam o globalismo americano, implementados pelo aparato de segurança nacional, dentro do qual eu funcionava como uma pequena engrenagem. De outro lado estava a perspectiva do apaziguamento, isolacionismo e catástrofe. O único curso responsável era aquele ao qual todo presidente, desde Harry Truman, aderiu.
Para mim, a Guerra Fria tinha desempenhado um papel crucial em sustentar esta visão de mundo. Dadas a minha idade, formação e fundo profissional, dificilmente poderia ter sido diferente. Embora a grande rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética tivesse contido momentos de considerável ansiedade - eu lembro de meu pai, durante a Crise dos Mísseis Cubanos, armazenando água e alimentos enlatados no nosso porão - isto serviu, primordialmente, para clarificar, não para assustar. A Guerra Fria forneceu o quadro que organizou e deu sentido à história contemporânea. Ela oferecia um esquema de jogo. Que existiam alemães maus e alemães bons; os alemães deles e os nossos alemães; alemães totalitaristas e alemães que, igual aos americanos, amavam de paixão a liberdade era, por exemplo, uma proposição que eu aceitava como dogma. Ver a Guerra Fria como uma luta entre o bem e o mal, respondia muitas questões, remetia outras para a periferia e tornava, ainda outras, irrelevantes.
De volta nos anos 1960, durante a Guerra do Vietnam, mais do que uns poucos membros da minha geração tinham rejeitado a concepção da Guerra Fria como uma luta maniqueísta. Aqui, reconhecidamente, também fui um lento aprendiz. Ainda que mantendo a fé, muito depois de outros terem perdido a sua, as dúvidas que, eventualmente, assolaram-me, foram, ainda mais desorientadoras.
É fato, suspeitas ocasionais tinham aparecido, muito antes de Jena e Berlim. Minha própria experiência no Vietnam tinha gerado sua parcela, que eu fiz o melhor para suprimir. Eu era, afinal de contas, um soldado em serviço. Exceto nos mais estreitos dos termos, a profissão militar, naqueles dias pelo menos, não olhava com condescendência, o não-conformismo. Subir a escada do sucesso na carreira exigia o controle de tendências dissidentes. Para ir em frente, você precisavar jogar para a equipe. Mais tarde, ao estudar a história das relações externas dos EUA, na faculdade, eu fui confrontado com desafios à ortodoxia, que eu, vigorosamente, rechaçei. Quando se trata da educação, a faculdade mostrou-se um completo desperdício de tempo - um período de intenso estudo devotado a mais acúmulo de fatos, enquanto eu me esforçava para garantir que eles permanecessem inertes.
Agora, entretanto, minhas circunstâncias pessoas estavam mudando. Logo após a passagem da Guerra Fria, minha carreira militar terminou. A educação, assim, tornando-se, não só uma possibilidade, mas também uma necessidade.
Em doses mensuradas, a mortificação purifica a alma. É o antídoto perfeito para o excesso de amor-próprio. Após 23 anos passados dentro do Exército dos Estados Unidos, aparentemente, indo para algum lugar, agora, achava-me do lado de fora, indo para lugar nenhum, em particular. No autosuficiente e enclausurado universo da vida arregimentada, eu tinha, brevemente, ascendido ao estatuto de ator fazendo ponta. No instante em que despi a farda, este estatuto desvaneceu-se. Logo cheguei a compreensão da minha própria insignificância, uma salutar lição que eu deveria ter absorvido muitos anos antes.
Enquanto iniciava o que, eventualmente, tornou-se uma lenta jornada rumo a uma nova vocação, como professor e escritor - um certo tipo de peregrinação - a ambição, no significado comumente aceito do termo, declinou. Isto não aconteceu de uma vez. Mas sim, gradualmente, deixando de ser uma grande preocupação. Riqueza, poder e celebridade tornaram-se, não aspirações, e sim matérias para análise crítica. História - especialmente, a narrativa familiar da Guerra Fria - não mais oferecia respostas; ao invés, ela apresentava enigmas desconcertantes. Facilmente, o mais instigante era este: como pude analisar tão incorretamente a realidade que se encontrava no lado de lá da Cortina de Ferro?
Teria sido eu, insuficientemente atento? Ou era possível que eu tivesse sido tapeado, o tempo todo? Contemplando tais questões, enquanto, simultaneamente, presenciava o desenrolar dos "longos anos 1990" - o período delimitado por duas guerras contra o Iraque quando a presunção americana alcançou impressionantes novos auges - levou a compreensão de que eu tinha, grosseiramente, interpretado mal a ameaça representada pelos adversários da América. Ainda assim, esta era a parte menor do problema. De longe pior que não perceber bem, a "eles", foi o fato de que eu tinha percebido mal, a "nós". O que eu pensava saber mais, eu realmente sabia menos. Aqui, a necessidade por educação aparecia, especialmente aguda.
A decisão de George W. Bush de desfechar a Operação IRAQI FREEDOM, em 2003, empurrou-me, totalmente, para a oposição. Afirmativas que, uma vez pareceram elementares - acima de tudo, afirmativas relacionadas com os propósitos, essencialmente benignos do poder americano - agora pareciam absurdas. As contradições que achei numa nação, ostensivamente amante da paz, empenhando-se numa doutrina de guerra preventiva, tornaram-se grandes demais para ignorar. A tolice e vaidade dos fazedores de política que, fazendo tão pouco caso lançaram a nação numa indefinida e sem fim "guerra global ao terrorismo" - sem a mais vaga noção sobre o que seria a vitória, como poderia ser conquistada e por qual custo - poderia rivalizar com os, apenas um pouco menos loucos, senhores da guerra alemães. Durante a era da conteção, os Estados Unidos tinham, ao menos, mantido a aparência de uma estratégia com princípios; agora, os últimos vestígios de princípios abriram caminho para fantasia e oportunismo. Com isto, a visão de mundo a qual eu havia aderido, como um adulto jovem e carregado para a meia-idade, dissoveram-se, completamente.
Credo e Trindade.
O que deveria ficar no lugar de tais convicções descartadas? Simplesmente, invertendo a sabedoria convencional, trocando um novo paradigma maniqueísta pela velha versão desacreditada - os Estados Unidos tomando o lugar da União Soviética como a fonte do mal do mundo - não seria suficiente. E mais, até mesmo para chegar a uma aproximação da verdade, implicaria sujeitar a sabedoria convencional, tanto presente quanto passada, a sustentado e meticuloso escrutínio. Cautelosamente, à princípio, mas com crescente confiança, foi isto que votei fazer.
Fazer isto significava descartar hábitos de conformismo adquiridos por décadas. Toda minha vida adulta eu tinha sido um homem da companhia, apenas, levemente consciente da extensão na qual as lealdades institucionais induzem à miopia. Garantir a independência exige, primeiramente, reconhecer a extensão na qual eu tinha sido socializado para aceitar certas coisas como inquestionáveis. Eis aqui os primeiros passos essenciais para tornar acessível a educação. Por um período de anos, um considerável depósito de detritos tinha sido empilhado. Agora, tudo tinha de sair. Tarde, aprendi que, mais freqüentemente do que não, aquilo que passa por sabedoria convencinal é, simplesmente, errôneo. Adotar atitudes da moda para demonstrar a confiabilidade de alguém - o mundo da política está repleto de pessoas assim, esperando, por conseguinte, se qualificar para a inclusão em algum círculo interno - é semelhante a se prostituir em troca de notas promissórias. Não apenas é degradante mas, francamente temerário.
Washington Rules visa colocar sob avaliação a sabedoria convencional em sua mais influente e duradoura forma, nomeadamente, o conjunto de pressuposições, hábitos e preceitos que tem definido a a tradição de estadística a qual os Estados Unidos aderiram, desde o fim da Segunda Guerra Mundial - a era da dominação global, agora, chegando ao fim. Esta tradição pós-guerra combina dois componentes, cada um entranhando-se tão profundamente na consciência coletiva americana, que quase chegaram a desparecer da vista.
O primeiro componente especifica normas de acordo com as quais a ordem internacional devia funcionar e encarrega os Estados Unidos da responsabilidade de impor tais normas. Chamem isto o credo americano. Em seus termos mais simples, o credo convoca os Estados Unidos - e somente os Estados Unidos - para liderar, salvar, libertar e, no fim, transformar o mundo. Num célebre manifesto emitido no alvorecer do que ele denominou "O Século Americano", Henry R. Luce, apresentou esta ampla concepção de liderança global. Escrevendo na Life Magazine, no início de 1941, o influente publicista exortou seus camaradas cidadãos a "aceitarem, de todo o coração, nosso dever de exercer sobre o mundo, o pleno impacto de nossa influência para tais propósitos, e por tais meios, que considerarmos adequados." Luce, portanto, apreendeu o que permanece, ainda hoje, a essência do credo.
O conceito de Luce de um Século Americano, uma era de inquestionável primazia global americana, ressoou, especialmente, em Washington. Sua frase evocativa encontrou um lugar permanente no léxico da política nacional. (Relembre que os neoconservadores, nos anos 1990, fizeram campanha por políticas americanas mais militantes, denominando seu empreendimento de Projeto para um Novo Século Americano). E assim, também, fez a ampla proclamação de Luce por prerrogativas a serem exercidas pelos Estados Unidos. Mesmo hoje, sempre que figuras públicas aludem a responsabilidade da América para liderar, elas assinalam sua fidelidade a este credo; Juntamente com respeitosas alusões à Deus e "aos soldados", a adesão ao credo de Luce tornou-se, de fato, pré-requisito para os altos-cargos. Questione suas proclamações e suas perspepctivas de ser ouvido no burburinho da política nacional se tornam zero.
Entretanto, note que o dever que Luce prescreve aos americanos tem duas componentes. Não apenas cabe aos americanos, escreveu ele, escolher os propósitos para os quais eles imporão sua influência, mas escolher, também, os meios. Aqui, confrontamos o segundo componente da tradição de estadística americana do pós-guerra.
Em relação aos meios, esta tradição enfatiza o ativismo sobre o exemplo, poder duro sobre o suave, e coerção (com freqüência, rotulada "negociar de uma posição de força") sobre o convencimento. Acima de tudo, o exercício da liderança global como prescrito pelo credo obriga os Estados Unidos a manterem capacidades militares, estarrecedoramente, acima daquelas exigidas para a autodefesa. Antes da Segunda Guerra Mundial, os americanos, de longe por maioria, contemplavam o poder e as instituições militares com ceticismo, se não, aberta hostilidade. Na onda da guerra, isto mudou. Uma afinidade pelo poder militar emergiu como central para a identidade americana.
Por meados do século XX, "o Pentágono" tinha deixado de ser, meramente, uma gigantesca construção de cinco lados. Igualmenta a "Wall Street", no fim do século XIX, ele tornou-se Leviatã, suas ações, envoltas em segredo, seu alcance estendendo-se por todo o mundo. E mais, enquanto a concentração de poder em Wall Street tinha, certa feita, evocado profundo temor e suspeita, os americanos, em sua maioria, viam a concentração de poder no Pentágono como benigna. A maioria a achava reconfortante.
Um povo que, de há muito, via os exércitos permanentes como ameaça para a liberdade, agora passava a acreditar que a preservação da liberdade exigia que ele esbanjasse recursos com as forças armadas. Durante a Guerra Fria, os americanos preocupavam-se, incessantemente, sobre ficarem para trás dos russos, mesmo embora o Pentágono, consistentemente, mantivesse uma posição de completa primazia. Uma vez que a ameaça soviética desapareceu, a mera primazia não era mais suficiente. Com um debate nacional reduzido a um sussurro inaudível, a supremacia militar global, perpétua e sem ambigüidades, emergiu como predicado essencial para a liderança global.
Toda grande potência militar teve sua assinatura distintiva. Para a França Napoleônica, foi a levée en masse - o povo em armas, inspirado pelos ideais da Revolução. Para a Grã-Bretanha, no auge do seu império, foi o comando dos mares, sustentado por uma esquadra dominante e uma rede de postos avançados distantes, de Gibraltar e o Cabo da Boa Esperança, até Singapura e Hong Kong. A Alemanha dos anos 1860 até os anos 1940 (e Israel, de 1948 até 1973) seguiu outro método, confiando numa potente mistura de flexibilidade tática e audácia operacional, para conquistar a superioridade no campo de batalha.
A pródiga assinatura do poder militar da América, desde a Segunda Guerra Mundial tem sido de uma ordem, totalmente diferente. Os Estados Unidos não se especializaram em qualquer tipo particular de guerra. Eles não aderiram a um estilo tático fixo. Nenhuma força armada individual, nem armamento, tem gozado de consistente favorecimento. Em certos tempos, as forças armadas se basearam em cidadãos-soldados para preencher suas fileiras; em outros tempos, profissionais de longo tempo de serviço. E mais, um exame dos últimos sessenta anos, da política e práticas militares americanas, revelam importantes elementos de continuidade. Chamem-nos a sagrada trindade: uma pródiga convicção de que a essência mínima da paz e ordem internacionais exige que os Estados Unidos mantenham uma presença militar global, que configurem suas forças para a projeção de poder global, e que contenham as ameaças, existentes ou possíveis, baseando-se numa política de intervencionismo global.
Juntos, credo e trindade - um definindo os propósitos, o outro as práticas - constituem a essência da forma pela qual Washington tem tentado governar e policiar o Século Americano. O relacionamento entre os dois é simbiótico. A trindade fornece a credibilidade para as vastas pretensões do credo. Por sua parte, o credo justifica as vastas exigências e esforços. Juntos, eles fornecem a base para um permanente consenso que fornece consistência para a política externa dos Estados Unidos, independentemente de qual partido político possa estar com a vantagem ou de quem possa estar ocupando a Casa Branca. Da era de Harry Truman, aos tempos de Barack Obama, este consenso tem permanecido intacto. Ele define as regras às quais Washington adere; ele determina os preceitos pelos quais Washington predomina.
Como utilizado aqui, Washington é menos uma expressão geográfica do que um conjunto de instituições interligadas, encabeçadas pelas pessoas que, seja por ação oficial ou não-oficial, são capazes de conduzir o leme do estado. Washington, neste sentido, inclui os altos escalões dos ramos executivo, legislativo e judiciário do governo federal. Emcampa os principais componentes do estado de segurança nacional - os departamentos de defesa, estado e, mais recentemente, o de segurança interna, juntamente com várias agências compreendendo as comunidades de informações e de imposição da lei federais. Suas fileiras estendem-se para selecionar grupos de interesse e centros de pensamento. Advogados, lobistas, manipuladores, ex-autoridades, e oficiais militares reformados, que ainda gozam de acesso são membros de boa posição. E mais, Washington também vai além da Beltway para incluir grandes bancos e outras instituições financeiras, contratados da defesa e grandes corporações, redes de televisão e publicações de elite, como o New York Times, mesmo entidades quase-acadêmicas, como o Conselho sobre Relações Externas e a Escola de Governo Kennedy da Harvard. Com raras exceções, a aceitação das regras de Washington formam um pré-requisito para a entrada neste mundo.
Meu propósito ao escrever Washington Rules tem cinco itens: primeiro, traçar as origens e evolução das regras de Washington - tanto o credo que inspira o consenso, quanto a trindade pelo qual ele encontra expressão; segundo, sujeitar o resultante consenso à inspeção crítica, mostrando quem ganha e quem perde e, também, quem paga a conta; terceiro, explicar como as regras de Washington são perpetuadas, com certas visões privilegiadas enquanto outras são consideradas como vergonhosas; quarto, demonstrar que as regras, em si, perderam qualquer utilidade que, por ventura, pudessem ter tido, com suas implicações, cada vez mais perniciosas, e seus custos, crescentemente, inaceitáveis; e, por fim, argumentar pela readmissão de visões, ditas repreensíveis (ou "radicais") para nosso debate de segurança nacional, para a apresentação de alternativas ao status quo. Com efeito, meu objetivo é convidar os leitores a compartilhar o processo de educação no qual embarquei, duas décadas atrás, em Berlim.
As regras de Washington foram forjadas, num momento quando a influência e poder americanos estavam aproximando-se do seu ápice. Este momento, agora, já passou. Os Estados Unidos esvaziaram o estoque de autoridade e boa-vontade que haviam adquirido em 1945. As palavras pronunciadas em Washington provocam menos respeito do que já foi o caso. Os americanos, dificilmente, poderão se permitir, por mais tempo, os sonhos de salvar o mundo, muito menos, remoldá-lo à sua própria imagem. A cortina, agora, está caindo sobre o Século Americano.
Similarmente, os Estados Unidos não mais possuem os meios para sustentar uma estratégia de segurança nacional que se baseia em presença militar global e projeção de poder global para sublinhar uma política de intervencionismo global. Anunciada como essencial para a paz, adesão a esta estratégia propeliu os Estados Unidos para uma condição que se aproxima da guerra perpétua, como os infortúnios militares da década passada tem demonstrado.
Para qualquer um com olhos para ver, as deficiências inerentes às regras de Washington tornaram-se, totalmente evidentes. Emboras estes mais profundamente envolvidos na perpetuação do atual estado de coisas, insistirão de outra forma, a tradição a qual Washington permanece devotada já começou a ser desmontada. Tentar prolongar sua existência pode servir aos interesses de Washington, mas não servirá aos interesses do povo americano.
Divisar uma alternativa para a paradigma reinante da segurança nacional, representará um desafio assustador - especialmente, se os americanos olharem para "Washington" em busca de pensamento renovador. Porém, fazer isto tornou-se essencial.
Num sentido, as políticas de segurança nacional, às quais Washington, de modo tão insistente, adere, expressam o que, de há muito, tem sido o método preferido dos americanos para se envolverem com o mundo além de suas fronteiras. Este método adequa-se ao presumido ponto-forte da América - desde a Segunda Guerra Mundial, e, especialmente, desde o fim da Guerra Fria, considerado como sendo o seu poder militar. Em outro sentido, esta confiança no poder militar pode criar as desculpas para os Estados Unidos evitarem um envolvimento sério: a confiança nas armas americanas tem tornado desnecessário atender ao que os outros possam pensar ou levar em consideração como as aspirações deles possam diferir das nossas próprias. Deste modo, as regras de Washington reforçam o provincianismo americano - um traço nacional pelo qual os Estados Unidos continuam a pagar caro.
A persistência destas regras, também tem fornecido uma desculpa para evitar um sério olhar para si mesmo. Desta perspectiva, a confiança de que o credo e a trindade obrigarão os outros a se acomodarem às necessidades ou desejos da América - seja por petróleo barato, crédito barato ou bens de consumo baratos - tem permitido a Washington adiar ou ignorar problemas exigindo atenção, aqui em casa. Consertar o Iraque ou o Afeganistão acaba tendo procedência sobre consertar Cleveland ou Detroit. Com a desculpa de apoiar os soldados em sua cruzada para libertar o mundo, evita-se qualquer obrigação para avaliar as implicações de como os próprios americanos escolhem exercer a liberdade.
Quando os americanos demonstraram disposição para se relacionarem, seriamente, com os outros, combinada com a coragem para se relacionarem, seriamente, com si mesmos, então, a verdadeira educação poderá começar.