O coração das Forças Armadas
Enviado: Qui Out 27, 2005 1:32 pm
O coração das Forças Armadas
("In praise of the noncoms", artigo publicado no Los Angeles Times)
Oficiais podem dar as ordens, mas na guerra, são os de baixo salários,
os sargentos e os cabos que fazem as coisas acontecer.
Robert D. Kaplan
Tradução de Celso M. Paciornik
Seja em New Orleans ou Bagdá, no país ou no exterior, os verdadeiros operadores de nossas forças militares após o 11/9 não saíram do grupo dos generais e coronéis, nem mesmo entre os capitães e tenentes, mas das fileiras alistadas de sargentos e cabos.
Como qualquer oficial formado em West Point (a Academia Militar do Exército) ou educado em Annapolis (a Academia Naval) lhe dirá, esses militares de escalão inferior - NCO, de "non-commissioned" ou "noncom", no jargão militar americano - são o coração e a alma das forças militares americanas, o repositório de sua cultura e suas tradições.
Eles formam um corpo de trabalhadores mal remunerados, muitos dos quais têm apenas o curso ginasial completo. Dois terços de todos os Marine (fuzileiros navais) são dessa categoria e estão em seu primeiro alistamento de quatro anos. Quase 90% dos soldados das Forças Especiais do Exército, os Boinas Verdes, são sargentos.
O americano médio não veste um uniforme desde que o serviço militar obrigatório acabou há mais de três décadas, por isso, talvez possamos ser perdoados por nos aferrar ao estereótipo do sargento vociferante inclinado sobre o recruta fazendo flexões de braço, como nas séries cômicas de TV.
Mas a verdade é que o sargento de hoje (ou suboficial na Marinha) é geralmente um especialista técnico e um gerente ao estilo corporativo que pode falar várias línguas exóticas.
Um primeiro sargento das Forças Especiais com quem viajei recentemente à Argélia, que se criou numa família rural em New Hampshire, enfrentou emergências militares e humanitárias em 73 países numa carreira de 17 anos no Exército.
Nunca antes na história militar esses militares não oficiais - que operam no nível tático mais baixo, onde se decide o sucesso ou fracasso operacional - foram tão decisivos. Isso se deve à mudança da natureza dos conflitos.
À medida que chega ao fim a era da guerra de infantaria de massa - e o campo de batalha se dispersa e rarefaz por vastos desertos, selvas e cidades pobres e espalhadas - os exércitos operam de maneira cada vez menos convencional em pequenas unidades autônomas, em nível do pelotão ou inferior, onde os sargentos reinam supremos.
Foi o barão prussiano Fredrich von Steuben que, no inverno de 1777-78, em Valley Forge, assentou as bases dos corpos de NCOs hoje existentes.
Assim, ele criou o espírito das forças militares americanas: a descentralização radical de comando de modo que a diretriz geral é subdividida em etapas práticas por sargentos e cabos até a borda mais extrema do campo de batalha.
Os oficiais superiores dão ordens, mas são os NCOs que fazem as coisas andar. Como o mundo dos NCOs é tático, eles não emitem opiniões sobre coisas como "nós deveríamos ou não ter intervindo", e com isso, geralmente ficam invisíveis para a mídia.
O capitão ou tenente idealista se tornou o principal esteio de boa parte das reportagens militares, inclusive da minha. Os NCOs, ao contrário, geralmente ficam de boca fechada, exceto quando se lhes pergunta sobre a tarefa técnica em sua mão. Aí ninguém consegue pará-los. Perguntar o que eles fazem, nunca como se sentem, tornou-se o meu lema.
Mas os capitães e tenentes são inúteis sem os seus sargentos. E em Faluja, Iraque, quando um jovem tenente dos Marine foi morto junto com seu sargento ajudante, eu vi um cabo assumir o comando sem problema de continuidade.
O NCO é um espécime particularmente americano, talvez porque a constante expansão da fronteira ocidental na América do Norte teve tudo a ver com a ação, e pouco com a imaginação: desmatar a terra, construir abrigos, arranjar alimentos.
Embora a família rural esteja morrendo em todo o continente, quase metade da equipe A das Forças Especiais de 12 homens na qual me encaixei na Argélia, cresceu em famílias rurais. Esse excelente corpo de NCO é também um produto da sociedade de classe média dos EUA. Em muitos exércitos do Terceiro Mundo, o abismo entre oficiais e soldados de escalão inferior é parecido com o que havia entre aristocratas e camponeses. Como essas distinções de classe não existem aqui, a conseqüência é um corpo de NCO que lida confiantemente com seus superiores, de modo que tenentes veneram e dependem de seus sargentos. É esse vínculo, que está no coração de um militar, que obtém a maior tração mesmo das piores políticas.
Mas os NCOs não são muito ouvidos. Os três itens mais necessários no Iraque são hoje os que os NCOs vêm enfatizando há tempo: Humvees blindados, rastreamento de forças amigas para percepção situacional do campo de batalha e placas SAPI (placas cerâmicas protetoras do corpo contra armas leves).
Os NCOs agora se queixam do pesado equipamento que têm de carregar: todas as engenhocas modernas só facilitam para um insurgente de sandálias e armado com um AK-47 correr mais rápido que o marine mais bem equipado. Os NCOs mantêm os militares focados no básico - o material desprezado que ganha as guerras.
A política de defesa só é boa na medida da sua aplicação por NCOs. No Afeganistão, vi como discussões gerais em Washington sobre construir um exército nacional afegão tinha importância limitada para os NCOs e seus superiores imediatos no campo, que precisavam decidir - com base em questões de etnicidade e personalidade - quais milícias tribais conservar e quais desbaratar.
Especialmente numa era em que as tropas de campo são esmiuçadas pelos holofotes da mídia, as ações de NCOs individuais podem ter conseqüências políticas incalculáveis.
Embora a reinstituição do ROTC (Corpo de Treinamento de Oficiais da Reserva) em universidades de elite seja fundamental para uma relação civil-militar saudável, a questão muito mais urgente hoje é fornecer mais educação em faculdades comunitárias e estaduais aos NCOs durante seu período de serviço militar, e fortalecer os cursos de liderança para NCOs em locais como Fort Benning, Geórgia, e Fort Bragg, Carolina do Norte.
Os NCOs não se tornarão proficientes em línguas estrangeiras enquanto esse estudo não estiver integrado em seus esquemas de treinamento e se tornar relevante para sua promoção hierárquica.
Apesar de todo o barulho sobre "transformação", os políticos esquecem que a verdadeira transformação diz respeito a seres humanos, e não a sistemas de armamentos. Diz respeito aos soldados da porção inferior da hierarquia militar
fonte: http://www.defesanet.com.br