#27
Mensagem
por Marcelo Ponciano » Sex Nov 08, 2019 10:58 am
O ÚLTIMO TANGO NAS MALVINAS
Os homens amam a guerra. Por isso
se armam festivos em coro e cores
para o dúbio esporte da morte.
Amam e não disfarçam.
alardeiam esse amor nas praças,
criam manuais e escolas,
alçando bandeiras e recolhendo caixões,
entoando slogans e sepultando canções.
Os homens amam a guerra. Mas não a amam
só com a coragem do atleta
e a empáfia militar, mas com a piedosa
voz do sacerdote, que antes do combate
serve a hóstia da morte.
Foi assim na Criméia e Tróia,
na Eritréia e Angola,
na Mongólia e Argélia,
na Sibéria e agora.
Os homens amam a guerra
e mal suportam a paz.
Os homens amam a guerra,
portanto,
não há perigo de paz.
Os homens amam a guerra, profana
ou santa, tanto faz.
Os homens têm a guerra como amante,
embora esposem a paz.
E que arroubos, Meu Deus! Nesse encontro voraz
que prazeres! que uivos! que ais!
que sublimes perversões urdidas
na mortalha de lençóis, lambuzando
a cama ou campo de batalha.
Durante séculos pensei
que a guerra fosse o desvio
e a paz a rota. Enganei me. São paralelas,
margens de um mesmo rio, a mão e a luva,
o pé e a bota. Mais que gêmeas,
são xifópagas, par e ímpar , sorte e azar.
São o ouroboro _ cobra circular
eternamente a nos devorar.
A guerra não é um entreato.
É parte do espetáculo. E não é tragédia apenas,
é comédia, real ou popular,
é algo melhor que circo:
_ é onde o alegre trapezista
vestido de kamikase
salta sem rede e suporte,
e o contorcionista se parte
no kamasutra da morte.
A guerra não é o avesso da paz.
É seu berço e seio complementar.
E o horror não é o inverso do belo
_ é seu par. Os homens Amam o belo,
mas gostam do horror na arte. O horror
não é escuro, é a contraparte da luz.
Lucífer e Lusbel, brilha como Gabriel
e o terror seduz.
Nada mais sedutor
que Cristo morto na cruz.
Portanto, a guerra não é só missa
que oficia o padre, ciência
que alucina o sábio, esporte
que fascina o forte. A guerra é arte.
E com o ardor dos vanguardistas
freqüentamos a bienal do horror
e inauguramos a Bauhaus da morte.
Por isso, em cima da carniça não há urubu,
chacais abutres,hienas.
Há lindas garças de alumínio, serenas
num eletrônico balé.
Talvez fosse a dança da morte, patética.
Não é. É apenas outra lição de estética.
Daí que os soldados modernos
são como médico e engenheiro
e nenhum ministro de guerra
usa roupa de açougueiro.
Guerra é guerra
dizia o invasor violento
violentando a freira no convento.
Guerra é guerra
dizia a estátua do almirante
com a sua boca de cimento.
Guerra é guerra
dizemos no radar
degustando o inimigo
ao norte do paladar.
Não é preciso disfarçar
o amor à guerra, com história de amor à Pátria
e defesa do lar. Amamos a guerra
e a paz, em bigamia exemplar.
Eu, poeta moderno ou o eterno Baudelaire,
eu e você, hypocrite lecteur,
mon semblabe, mon frère.
Queremos a batalha, aviões em chamas,
navios afundando, o espetacular confronto .
De manhã abrimos vísceras de peixes
com a ponta das baionetas
e ao som da culinária trombeta
enfiamos adagas em nossos porcos
e requintamos de medalha
os mortos sobre a mesa.
Se possível, a carne limpa, sem sangue.
Que o míssil silente lançado a distância
não respingue em nossa roupa.
Mas se for preciso um banho de sangue
como dizia Terêncio: Sou humano
e nada do que é humano me é estranho.
A morte e a guerra
não mais me pegam ao acaso.
escrevo sua dupla efígie na pedra
como se o dado de minha sorte
já não rolasse ao azar.
Como se passasse do branco
ao preto e ao branco retornasse
sem nunca me sombrear.
Que venha a guerra. Cruel. Total.
O atômico clarim e a gênese do fim.
Cauto, como convém aos sábios,
primeiro bradarei contra esse fato.
Mas, voraz como convém à espécie,
ao ver que invadem meus quintais,
das folhas da bananeira inventarei
a ideológica bandeira e explodirei
o corpo do inimigo antes que ataque.
E se ele não atirar nem viver, aproveito
seu descuido de homem fraco, invado sua casa
realizando minha fome milenar de canibal
rugindo sob a máscara de homem.
Terrível é o teu discurso, poeta!
escuto alguém falar.
Terrível o foi elaborar.
Agora me sinto livre.
A morte e a guerra
já não me podem alarmar.
Como Édipo perplexo
decifrei as em minhas vísceras
antes que a dúbia esfinge
pudesse me devorar.
Nem cínico nem triste. Animal
humano, vou em marcha, danças, preces
para o grande carnaval.
Soldado, penitente, poeta,
a paz e a guerra, a vida e a morte
me aguardem
num atômico funeral.
Acabará a espécie humana sobre a Terra?
Não. Hão de sobrar um novo Adão e Eva
a refazer o amor, e dois irmãos:
Caim e Abel
a reinventar a guerra.
Affonso Romano de Sant’Anna
Esse é um dos poemas mais impactantes que conheço.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar. (MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Livro XI, Cap. VI)