A vida numa base americana no Afeganistão.

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Clermont
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A vida numa base americana no Afeganistão.

#1 Mensagem por Clermont » Sex Ago 27, 2010 3:09 pm

AQUI, SEJAM DRAGÕES.

MRAPs, tornozelos torcidos, ar condicionado, disputas de peidos e outros instantâneos da guerra americana no Afeganistão

Por Ann Jones - 2 de agosto de 2010.

Nos oito anos que reporto no Afeganistão, estive "incorporada" regularmente com civis afegãos, especialmente, mulheres. Recentemente, entretanto, com as tropas americanas recebendo reforços e jornalistas entrando na onda da "estratégia" da contrainsurgência dos militares (mais conhecida por seu acrônimo, COIN), eu decidi entrar no programa, também. Em junho passado, preenchi uma requisição para ser incorporada com o Exército dos Estados Unidos.

E-mails polidos dos especialistas de relações públicas do Exército, pedem aos jornalistas que forneçam evidências de seguro médico, uma exigência que eu tomei como admissão de que a guerra não é um empreendimento saudável. Eu já sabia disto, naturalmente - do lado civil. E mais, eu já li um monte de artigos e livros por colegas homens que arriscaram seus pescoços com tropas americanas no Iraque e Afeganistão. O que me atingiu sobre o trabalho deles foi isto: mesmo quando descreviam besteiras vindo das altas-chefias, estes repórteres ainda conseguiam tornar o empreendimento soldadesco parecer, de forma muito consistente, heróico. Eu me perguntava sobre o que eles poderiam estar deixando passar.

Assim, eu enviei uma cópia do meu cartão de plano de saúde. Eu fiquei preocupada que esta evidência de minha cidadania antiga, fazendo par com minha participação no "sexo mais fraco", este que, supostamente, estamos buscando resgatar no Afeganistão, levantariam questões sobre minha aptidão para missões, "fora do arame", de uma Base de Operações Avançada (FOB, ou Forward Operating Base) no leste do Afeganistão, somente uns poucos quilômetros das áreas tribais do Paquistão. Mas, não, eu obtive minha incorporação - prova de que nem aptidão, nem heroísmo são exigidos (algo que meus colegas homens nunca tinham contado). No fim, minha idade e sexo não foram obstáculos. Como a "Miss Marple" de Agatha Christie sabe, as pessoas não dirão quase nada para uma velha senhora que presumem ser estúpida.


Meninos e seus brinquedos.

Tendo sido crítica das políticas americanas, desde o começo, não vi nada nas várias bases do Exército que visitei, que mudasse minha opinião. Um dia, nesta FOB, preparando-se para sair em missão, o sargento encarregado escreveu os nomes dos soldados na prancheta, seguido por "Terp" para designar o intérprete afegão-americano, que nos acompanharia, e "Na Cama", que significava eu. Ele fez piada sobre repórteres que eram mais valentões do que os soldados. Não eu. E eu não estava sozinha. Eu já tinha encontrado um bocado de soldados mais velhos, em outras bases, a maioria, reservistas que tinham empregos em casa, sobre os quais eles falavam, apaixonadamente - professores, técnicos, músicos - e esposas e filhos que amavam, querendo, apenas, voltarem para casa. Um deles disse-me, "Talvez, se eu fosse dez anos mais jovem, pudesse ficar ligado nisto, mas não sou mais menino."

O Exército tinha enviado-me uma lista de regras básicas para repórtes - a maioria, senso comum, do tipo não publicar o efetivo da tropa, ou planos de batalha. Eu também recebi uma lista de coisas para levar. Era o tipo de lista que as mães recebem quando mandam seus filhos para o acampamento: cantil, lanterna, toalha, sabão, papel higiênico (para estas excursões fora da base), saco de dormir, etc. Mas, haviam outras coisas também: óculos balísticos, luvas à prova de fogo, faca grande, armadura corporal, e capacete de kevlar. Considerando o quanto do meus dólares dos impostos vão para o Pentágono, eu achei que o Exército poderia ter uns poucos coletes balísticos sobressalentes para emprestar aos repórteres visitantes, mas não, você tem de levar o seu próprio.

Isto foi, talvez, um sinal das coisas porvir, como logo fui avassalada por reclamações, soldados e civis contratados, igualmente: sem armaduras o bastante, sem viaturas o bastante, sem helicópteros o bastante, sem armas o bastante, sem soldados o bastante - e mesmo quando parecia haver abundância de tudo, reclamações de que nada era do tipo adequado. Isto me atingiu como um problema americano, particularmente privilegiado, que parecia sublinhar quase tudo que eu veria na frente oriental desta guerra. Estas reclamações, de fato, pareciam se originar da própria natureza, mesma, do empreendimento militar americano - de sua tóxica mistura de paranóia, privilégios e boas intenções.

Peguem a paranóia, que eu suponho vir com o território. Você não estaria aqui, se não achasse que há inimigos por toda a volta. Eu dispensei um vôo militar para uma curta pernada da capital afegã, Cabul, para Bagram, a principal base americana - uma "cidade", em rápida expansão, de mais de 30 mil pessoas. Ao invés, eu pedi a um amigo afegão para levar no seu carro.

Um oficial de relações públicas preveniu-me de que dirigir era "muito perigoso", mas o único problema que encontri foi um comboio militar americano, rumando na direção oposta, engarrafando o tráfego. Por mais de uma hora, ficamos sentados na autoestrada, com dezenas de motoristas afegãos, observando uma parada de enormes caminhões conduzindo outras grandes viaturas: tratores e viaturas blindadas de transporte de pessoal, de várias safras, de "Humvees" aos MRAPs (Mine-Resistant Ambush-Protected Vehicles). Meu amigo disse, "Não compreendo. Eles tem todas estas máquinas enormes. Eles as põem em caminhões e as transportam para cima e para baixo pela estrada. Por quê?"

Eu não pude responder, mas recebi um indício quando peguei um helicóptero do Exército de Bagram para uma base menor e encontrei um contratado particular, parcialmente responsável pela manutenção de viaturas do Exército. Ele deu-me um CD para entregar ao seu capataz na FOB para a qual eu rumava. Em vez de música, ele tinha um manual de instrução para o reparo do mais recente modelo M-ATV, um enorme tranporte de pessoal, com um casco em forma de "V", desenhado para repelir o impacto das bombas de estrada. Estes estão, atualmente, substituindo os mais antigos MRAPs e os mortíferos "Humvees". Estes, por sua vez, estão sendo repassados para o Exército Nacional Afegão, cujos soldados são mais dispensáveis do que os nossos. (Veja o que eu me refiro como privilégios). De pé, diante de um monte de novos M-ATVs, já necessitando de conserto, o capataz parecia muito contente em pegar este CD.

É uma medida de nosso senso de privilégios, penso eu, que, enquanto o Taliban e seus aliados, ainda caminham para a guerra, usando tradicionais camisa e calças bufantes de algodão, nós, americanos, incessantemente, inventamos coisas para nos tornar mais "seguros". Já que ninguém pode, jamais, estar seguro, menos ainda numa guerra, todo novo desenvolvimento acaba por se revelar insuficiente e quase uma garantia para criar novos problemas.

E mais, americanos sentem-se com o direito à segurança. Eis porquê o MRAP foi desenhado para lidar com um duplo temor: bombas de estrada (IEDs) e emboscadas. Eu fui treinada para ser uma passageira num MRAP para uma missão que nunca se materializou, mas, no processo, aprendi onde estão as alças embutidas para as freqüentes ocasiões quando os MRAP, muito pesados no alto, capotam em encostas montanhosas.

O treinador falou com tanta segurança sobre o que fazer em caso de capotagem, quase dando-me a impressão de que você podia mexer os quadris e endireitar a viatura, como se fosse um caiaque. Mas não, uma vez que ele capota, já era. Você tem de rastejar para fora e andar. (Demais para uma proteção contra emboscadas). Então, um destes grandes caminhões que vimos na autoestrada para Bagram tem de vir e puxá-lo, de volta para a base, onde o capataz, com seu novo CD de instruções pode consertá-lo. Isto, em resumo, é o por quê o MRAP para sete passageiros está sendo substituído pelo M-ATV para cinco passageiros, uma enorme viatura blindada qualquer-terreno, não tão inclinada a capotar. Porque ele contém menos soldados, entretanto, você terá de botar mais destas viaturas na estrada, e estou certa que você pode ver onde isto vai levar.

Um benefício de nosso vício em material dispendioso, no estado-da-arte, defeituoso como possa se mostrar, é que as indústrias privadas de armamentos, agora, ajudam a manter nossa economia no suporte de vida, e deixa ricos alguns tipos do complexo industrial-militar. Um inconveniente é que - embora seja um ponto difícil para os soldados americanos na linha de fogo apreenderem - isto, realmente, solapa nossa alardeada estratégia COIN. Os afegãos, lá fora, lutando em seus pijamas de algodão, vêem a confiança ocidental em blindagens pesadas como uma medida de nosso medo - para não mencionar a inferioridade de nosso Deus, em cuja proteção, parecemos não confiar. (Por contraste, o sentinela numa pequena base do Exército Nacional Afegão, adjacente a FOB que eu visitava, dormia num catre, no telhado, exposto ao fogo inimigo, com seu copo de chá, ao seu lado, ou confiando em seu Deus, ou, talvez, sabendo algo, que não sabíamos, sobre o "inimigo".)


Todos os Confortos da Guerra.

Na grande escala das bases americanas, pense de Bagram como uma cidade, bases secundárias como pequenos povoados, FOBs sendo comunidades, fortemente muradas, em paisagens rurais, e COPs (Combat Outposts) como acampamentos nos quais você não gostaria que seu filho estivesse. Uma FOB é, por definição, bem afastada, nas orlas, mas eu tenho de dizer, com sinceridade, que, tendo o helicóptero me deixado em armadura corporal completa (e notavelmente pesada) e capacete de Kevlar, em minha FOB designada, ela não parecia, afinal, "A Frente", para mim.

Eu devo explicar que minha imagem permanente da guerra, provém das trincheiras da Grande Guerra, de onde meu pai voltou com um monte de medalhas, incapacitações por toda a vida e livros de imagens horríveis que eu não tive permissão para ver, quando criança. Nesta guerra, homens viviam, por meses à fio, sem mudar de uniformes, na lama ou em trincheiras congeladas, infestadas de ratos e pulgas, freqüentemente, em meio aos seus próprios excrementos e seus próprios mortos.

A FOB de linha de frente onde desembarquei, e seus soldados, por contraste, reluzem de limpos. O crédito para isto vai, em grande parte, para a notavelmente barata mão-de-obra de filipinos, indianos, croatas e outros, atraídos de terras distantes por contratados particulares americanos, responsáveis por fazer nossos soldados sentirem-se em casa, tão longe da própria. As ruas da base são dispostas em grade. Tendas em filas ordenadas, são apoiadas com sacos de areia e seus primos super-crescidos, HESCOS, cheios de pedras e detritos. (HESCO é um tipo de conteiner especial, de arame e tecido, destinado a servir como barreira de proteção contra fogo de armas e explosões de carros-bomba)

As tendas são resfriadas por ribombantes tornados de ar-condicionado, graças ao equipamento abastecido por gasolina, que custa ao Exército cerca de 400 dólares por galão, para importar. Leva de três a quatro horas para os reabastecedores, todo dia, preencherem todos os geradores gigantes que mantém o ar-frio circulando, portanto, senti-me culpada quando, para não ficar resfriada durante o sono, eu enfiei uma toalha nos dutos, suspensos sobre minha tenda.

Edificações mais permanentes estão aparecendo e algumas, já construídas pelos afegãos e consideradas como não sendo boas o bastante para americanos habitarem, estão destinadas para a reconstrução. Mesmo em distantes FOBs, como esta, o "boom" de edificações é prodigioso. Há um grande ginásio, com os mais recentes equipamentos de body-building, um centro de reforço do moral, equipado com telefones e bancos de computadores conectados à Internet, que estão, quase sempre, em uso. Uma sala de rancho, 24 horas por dia, 7 dias por semana, serve todo tipo de comida, embora, tudo esteja cozido, ao ponto de se tornar irreconhecível, por estes trabalhadores mal-pagos para quem esta cozinha é totalmente estrangeira.

Há uma notável lavanderia à jato, e, quanto a toaletes e chuveiros - eu posso falar, somente, para estes poucos designados "femininos" - ele eram os melhores que eu já tinha visto em qualquer parte do Afeganistão. Um cartaz, polidamente, sugeria limitar seu banho à cinco minutos, um reconhecimento à despesa de pagar para contratados pagarem caminhoneiros que trazem a água necessária e, então, levar para localizações não reveladas, o copioso afluxo das latrinas americanas. (Em Bagram, este afluxo vai para um rio, convenientemente próximo, fonte de água para incontáveis afegãos.) Os outros detritos desta FOB em expansão é descartado em fossos, e queimado, incluindo um estarrecedor, mas não revelado, número de cantis d'água plásticos. Tudo isto ajuda a explicar o custo anual de manter um único soldado americano no Afeganistão, atualmente estimado em 1 milhão de dólares.

Não me entendam mal. Não estou advogando por trincheiras sujas. Mas, porque deveria a guerra ser embelezada como se fosse a casa? Se a guerra fosse desmascarada como horrível e brutal, como ela verdadeiramente é, poderia tender a ser curta. Soldados, libertos das ilusões poderiam se amotinar, como muitos fizeram no Vietnam, ou desertar e voltar para casa. Mas esta moderna, suave espécie de pseudo-guerra é diferente.

Muitos jovens soldados disseram-me que, na verdade, vivem melhor no Exército, mesmo quando desdobrados, do que faziam na vida civil, onde não podiam satisfazer suas necessidades, especialmente quanto estavam tentando pagar pela faculdade ou criar uma família, trabalhando em um ou dois trabalhos de baixo salário.Eles não vão se amotinar. Eles estão se dando melhor do que muitos de seus amigos que ficaram em casa. (E eles são obedientes, o que os faz praticar atos de heroísmo pessoal, mesmo em prol de uma causa tola.) Eles, provavelmente, vão se realistar, embora muitos me contassem que preferiam abandonar o Exército e ir trabalhar por um salário muito mais elevado com os contratados privados que, agora, "servem" a guerra americana.

Mas, a coisa esquisita é que ninguém parece questionar a relativa suavidade desta vida em guerra (nem a desigualdade da áspera vida civil deixada para trás) - e menos ainda estes mais capacitados a observar, em primeira mão, o contraste entre nossas guarnições e o equipamento e condições de vida humildes dos afegãos, sejam amigos ou inimigos. Antes, o contraste parece inspirar muitos soldados, com renovada apreciação por nosso "modo americano de vida" e uma determinação de "fazer coisas boas" para o povo afegão, justamente como muitos sentem terem feito pelo povo do Iraque.

Eu enfatizo tudo isto porque nada que eu li sobre sobre militança preparou-me para a extensão destes confortos - ou o tédio que os acompanha. Montes de soldados não deixam a base. Eles mantém trabalhos de escritório, questões de suprimentos, administração de logística, reparo de viaturas ou rádios, reabastecimento de geradores e caminhões, projetos de planos "desenvolvimentistas", lida com relações públicas, ou atualização de mapas táticos (certas localidades, estou obrigada a não dar os nomes) com admoestações do tipo, "Aqui, Sejam Dragões" ou "Aqui, Façam Coisas Feias." Eles confrontam o tédio de tarefas repetitivas, ordinárias e não-heróicas.

O ferimento mais comum que eles tem probabilidade de sofrerem é uma torção de tornozelo, graças ao tapete de rochas soltas do Afeganistão oriental. Na parede da clínica médica da FOB, está um poster com desenhos esquemáticos e instruções para fortalecer os tornozelos, uma parte anatômica não cuidada pelos aparelhos no ginásio. Os médicos receitam um monte de "Ibuprofen", e mantém um suprimento de muletas à mão.


Lá fora.

Como esta é uma base de infantaria, no entanto, a maioria dos grupos de combate, regularmente, se aventura fora do arame e a incapacidade de longo prazo característica, que os soldados vão levar com eles é problema nos joelhos - devido ao grande peso das coisas que eles trajam e carregam. O comandante da base lembrou-me de um dos princípios da COIN: a segurança deve ser estabelecida por meios não-letais. Assim, a maioria das missões da infantaria é de "patrulhas de presença", descritas por um oficial como "andar por aí, em lugares onde não vão atirar na gente, para mostrar aos "afes" [afegãos] que nós os estamos mantendo seguros."

Eu fui para fora do arame, em uma destas patrulhas de presença, uma missão até uma aldeia, e - sinto dizer - não foi nenhum passeio amistoso. É dever do soldado se manter "focado"; isto é, procurar pelo inimigo. Portanto, você não pode ser "distraído" por pessoas fazendo saudações, ao longo do caminho, ou parando para bater papo. Entrar num salão de aldeia para encontrar os anciãos, por exemplo, pode parecer cordial - conquistar corações e mentes. Mas, adentrar com armas preparadas destroça esta sensação amistosa. Falando como alguém que visita os afegãos, em suas casas, há anos, tenho de dizer que esta aproximação não causa uma boa impressão. Ela, provavelmente, não pegaria bem na sua cidade-natal, da mesma forma.

E nem isto parece funcionar. Desde que os militares americanos adotaram a COIN para "proteger a população", as baixas civis subiram 23 porcento; 6 mil civis afegãos foram mortos no ano passado (e esta é, indubitavelmente, uma contagem por baixo). Não admira que a presença de tropas americanas deixe tantos afegãos sentindo-se, não mais seguros, porém, mais ameaçados e, mesmo, inspire alguns a pegar em armas contra o exército de ocupação. Ainda com mais freqüência, ao menos na área onde estive incorporada, uma patrulha de presença não-letal, provoca um tiroteio letal.

Um dia, próximo ao fim da minha incorporação, observei um oficial de relações públicas, emoldurar uma fotografia de um soldado que havia sido morto num tiroteio e pendurá-la na parede do escritório do comandante, ao lado de fotos, em molduras negras, de sete outros soldados. Esta força de combate americana tinha estado em posição, na FOB, por apenas umas poucas semanas, tendo substituído outro contingente, mesmo assim, já tinha perdido oito homens. (Cinco soldados afegãos também tinham sido mortos, mas suas imagens estavam, notavelmente, ausentes da galeria de recordação.) O Exército tira uma fotografia de cada soldado no começo de seu serviço, assim, ela está no arquivo quando necessário; isto é, quando o soldado é morto.

A maioria das bases americanos e postos avançados de combate é batizada com nomes de soldados americanos mortos. Quando um soldado é morto - ou "tomba", como o Exército gosta de declarar - o serviço da Internet e os telefones da base são bloqueados, até que uma delegação do Exército tenha batido na porta dos membros da família do falecido. Portanto, ainda que você seja um destes soldados que nunca deixa a base, sempre é lembrado do que está se passando lá fora. E, então, normalmente perto do anoitecer, alguns inimigos ocultos nos picos, em volta da base, começam a atirar nela, e atiradores americanos respondem, com obuses que levantam grandes nuvens de poeira e pedras das montanhas no céu obscurecido.


Fazendo o bem aos afegãos.

Na base, eu ouvi, sem cessar, conversas sobre COIN, a "nova" doutrina, ressuscitada do desastre do Vietnam, na esperança irracional de que ela vai funcionar, desta vez. De minha experiência na FOB, no entanto, está claro o bastante que a parte corações-e-mente da COIN, já está morta e enterrada, e uma prática muito difundida entre os militares, que passa sem ser noticiada por outros jornalistas incorporados, ajuda a explicar o por quê. Portanto, eis aqui uma exclusiva do Tom Dispatch, cortesia dos homens afegão-americanos servindo como intérpretes para os soldados. Eles estavam embaraçados, ao ponto da agonia, quando mencionavam este hábido, mas desesperados para pôr um fim nele. A COIN solicita aos militares que encontrem e façam amizade com os anciãos das aldeias, bebam chá, planejem o "desenvolvimento", e cativem seus corações e mentes. Vários intérpretes, contaram-me, no entanto, que todo encontro inclui alguns jovens soldados americanos cujo estilo "vestiário de ginásio" tem por característica, surtos de peidos hilariantes.

Para os homens afegãos, nada é mais vergonhoso. Um peido é prova de que um homem não pode controlar seus próprios intestinos. O homem que peida, deste modo, não é totalmente homem. Ele não pode ser levado à sério, nem podem quaisquer de suas idéias, promessas ou planos.

Felizmente, inconscientes de tais coisas, o Exército continua planejando, junto com seus consultores civis (representantes do Departamento de Estado, Departamento de Agricultura e vários contratados independentes, que constituem o que é chamdo uma Equipe Terra-Homem [Human Terrain Team], encarregada de interpretar a cultura local e ajudar a conquistar os habitantes para o nosso lado). Alguns falam de "construir infraestrutura", outros de fazer avançar a "boa governança" ou planejar o "desenvolvimento econômico". Todos falam de "fazer coisas boas" e "ajudar" o Afeganistão.

Numa típica bagunça sobre o terreno real do Afeganistão, especialistas do Exército, anteriormente encarregados desta base, já tinham construído uma ponte pênsil, de um milhão de dólares, construída sobre um rio, alguma distância afastado, mas não tinham pensado em garantir direitos fundiários, portanto nenhuma estrada chegava até ela. Agora, o especialista agrícola americano local, quer introduzir alfafa nestas montanhas rochosas, sem água, para alimentar cabeças de gado, pastando, principalmente, em sua mente.

Mesmo enquanto eu estava enchendo meu notebook com detalhes destes esquemas ilusórios, o comandante da base contou-me que já tinha sido forçado a "botar de lado o desenvolvimento". Ele tinha suas mãos cheias, confrontando o assalto Taliban, que ele não esperava. Por todo o Afeganistão, os ataques insurgentes cresceram 51 porcento, desde a adoção oficial da COIN como estratégia du jour. Na frente oriental, onde o comandante tinha servido, seis anos atrás, ele agora enfrentava um "reforço" de intimidação, assassínio, ataques suicidas, bombas de estrada e combatentes com maior capacitação técnica que ele jamais tinha visto no Afeganistão.

Uns poucos dias depois de conversarmos, o comando no Afeganistão foi passado para o general Petraeus, o santo renovador do manual de contrainsurgência das forças armadas. Eu me perguntei se o comandante da base tinha contado a Petraeus, o que havia contado para mim: "O que estamos travando, aqui e agora, é uma guerra convencional."

Eu tinha estado "na frente" desta guerra por menos de duas semanas, e já estava precisando de férias. Ter estado fora do arame, encheu-me de tristeza, enquanto observava garotos, pesadamente armados e couraçados, tentando cativar afegãos de barbas brancas - homens de extraordinária dignidade - que já tinham visto isto antes, e conheciam o resultado.

Estar na base era tedioso, com freqüência e igualmente aflitivo, às vezes, quando os soldados tombavam. Então, o comandante da base, à pé, escoltava as viaturas blindadas retornando do tiroteio para a base, do modo como um oficial da cavalaria, de idas eras, podia entrar num forte de fronteira, liderando um cavalo sem cavaleiro. A cena ia parecer boa num filme de guerra de Hollywood: deste jeito "technicolor" de imbuir de significado heróico, a morte desnecessária e sem sentido.

Certa noite, preparava-me para dormir, no exterior, sob uma profusão de estrelas e uma lua crescente islâmica. Invisível nas sombras, não pude deixar de ouvir um soldado que saiu para fazer uma chamada de celular para casa. "Eu, realmente, precisava falar com você, hoje", ele disse, e então, tropeçando em busca por palavras, ele desistiu. "Não," disse, por fim, "Estou legal. Chamo você mais tarde."

No dia seguinte, carregando meu capacete e minha armadura, debaixo do braço, abordei um helicóptero e voei dali.


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Ann Jones é autora de Kabul in Winter (Metropolitan, 2006). Seu mais recente livro sobre mulheres em zonas de conflito, War Is Not Over When It's Over, será publicado pela Metropolitan, em setembro.




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