A pornografia da guerra.
Enviado: Qua Jun 20, 2007 10:40 pm
UMA CULTURA DA ATROCIDADE.
Por Chris Hedges – 18 de junho de 2007 – Truthdig, drilling beneath the headlines.( http://www.truthdig.com/report/item/200 ... _atrocity/)
“Que espécie de Deus essas pessoas adoram?”
(mulher iraquiana não-identificada, cuja casa havia sido bombardeada por forças americanas, em 2003. Toda sua família foi aniquilada.)
“Tendo servido honrosamente nos Fuzileiros Navais e cumprido minha temporada no Vietnam, eu posso dizer a todos vocês que a guerra é a COISA MAIS PORNOGRÁFICA que a espécie humana jamais inventou. Glória? Na guerra? Besteira! Guerras são travadas na lixeira. O fedor dos mortos apodrecendo nunca pode ser limpo da memória. A visão, os sons e o cheiro de um ataque aéreo nunca se vão. Glória? Isso é para os filmes e os políticos mentirosos que nunca estiveram na guerra.”
(Ex-combatente americano do Vietnam.)
(Mohammed Saleem, 1 ano e seis meses de idade. Ele, e mais quatro membros da família foram mortos quando forças americanas abriram fogo contra seu veículo na vizinhança de Sadr City, em Bagdá, em junho de 2004, durante a luta entre os americanos e os seguidores de um clérigo radical.)
Todos os soldados, quando ocupam e batalham contra forças insurgentes, como no Iraque, Gaza ou Vietnam, são rapidamente colocados naquilo que o psiquiatra Robert Jay Lifton denomina “situações produtoras de atrocidades”. Neste ambiente, cercado por uma população hostil, atos simples como ir a uma loja comprar uma lata de coca-cola ou dirigir por uma rua significam que você pode ser morto. Esse constante medo e tensão leva os soldados a olhar todos à sua volta como o inimigo. A hostilidade é reforçada quando o inimigo, como no Iraque é fugidio, sombrio e difícil de achar. A raiva que os soldados sentem após uma bomba de estrada explodir, matando ou mutilando seus camaradas, é facilmente direcionada com o tempo para os civis que são vistos como apoiando os insurgentes. É um pequeno pulo psicológico, mas um enorme moralmente. É um pulo entre matar – atirar em alguém que tem a capacidade de causar mal a você – para assassinar – o ataque mortífero contra alguém que não pode fazer mal a você. A guerra no Iraque, agora, trata-se, principalmente, sobre assassinar. O ato de matar é muito pouco. Fuzileiros e soldados americanos tem se tornado, após quatro anos de guerra, aclimatados à atrocidade.
O projeto de assassinato americano não é descrito nesses termos para o público distante. Os políticos ainda falam na abstração da glória, honra e heroísmo, da necessidade de melhorar o mundo, em frases ocas de renovação política e espiritual. A imprensa, como na maioria das guerras, é servilmente complacente. A realidade da guerra – o fato de que as forças de ocupação se tornaram, juntamente com as violentas milícias, uma fonte de terror para a maioria dos iraquianos – não é transmitida ao público americano. A imprensa divulga os ferimentos físicos e emocionais impostos sobre estes que matam em nosso nome. Os iraquianos, esses que nós matamos, são, em sua maioria, mortos sem nome e sem rosto. Esses que matam grande número de pessoas sempre proclamam isso como uma lamentável, porém necessária ação.
A realidade e a narrativa mítica da guerra colidem quando amargurados ex-combatentes voltam para casa. Eles se acham alienados do mundo em volta deles, um mundo que ainda acredita no mito da guerra e nas virtudes da nação.
Tina Susman, em um artigo de 12 de junho nos Los Angeles Times dá aos leitores um raro vislumbre neste lado da guerra. Ela escreveu sobre um rapaz iraquiano de 17 anos morto por um violente, aleatório fogo desfechado por soldados americanos em uma vizinhança de Bagdá, após a explosão de uma bomba. Essas matanças que os iraquianos dizem ocorrer diariamente, raramente são confirmadas, mas, neste caso, o rapaz era filho de um empregado local do Los Angeles Times.
Médicos iraquianos, supervisionados por epidemiologistas na Escola de Saúde Pública da Universidade John Hopkins, publicaram um estudo, no último ano, no jornal médico britânico The Lancet. O estudo estimava que 655 mil pessoas à mais do que o normal tinham morrido no Iraque desde que as forças da Coalizão invadiram o país em março de 2003. Isso é vinte vezes mais que as estimadas 30 mil mortes civis que o presidente Bush citou em um discurso dezembro último.
Do total de 655 mil estimadas “mortes em excesso”, 601 mil resultaram de violência *. As mortes remanescentes ocorreram de doença e outras causas, de acordo com o estudo. Trata-se de cerca de 500 mortes violentas adicionais por dia, através do país.
O tenente-coronel Andrew J. Bacevich, um ex-combatente do Vietnam, que é um professor de relações internacionais na Universidade de Boston, estimou no ano passado que as tropas americanas tem matado “dezenas de milhares” de iraquianos inocentes, devido a acidentes de indisciplina de fogo.
Números oficiais deixaram de existir. O governo iraquiano não libera mais o número de baixas civis e os militares americanos, normalmente, não fornecem relatórios sobre civis mortos ou feridos por forças americanas.
“É um negócio psicológicos. Quando um soldado americano é morto ou ferido, eles atiram em represália,” Alaa Safi contou ao Los Angeles Times. Ele contou que seu irmão, Ahmed, foi morto em 4 de abril, quando tropas americanas crivaram de balas as ruas de sua vizinhança no sul de Bagdá, após o ataque de um tocaieiro.
A guerra é a pornografia da violência. Ela tem uma beleza sombria, preenchida com o monstruoso e o grotesco. A Bíblia chama isso “a luxúria do olho” e previne os crentes contra ela. A guerra nos permite engajar nos impulsos primários que mantemos ocultos no mais profundo, mais íntimo interior de nossas fantasias. Ela nos permite destruir não só coisas mas seres humanos. Nesse momento de total destruição, nós manejamos o poder do divino, o poder de dar ou aniquilar a vida. Unidades armadas se tornam enlouquecidas pelo frenesi da destruição. Todas as coisas, incluindo seres humanos, se tornam objetos – objetos seja para gratificar ou para destruir ou ambos. Quase ninguém está imune. O contágio da multidão garante isso.
Seres humanos são metralhados e bombardeados pelo ar, lança-granadas automáticos alvejam cabanas e arredores com explosivos de alta-potência, e comboios correm desvairadamente através do Iraque, velozes trens de carga da morte. Esses soldados e fuzileiros tem, na ponta dos dedos, a temerária capacidade de pedir poder de fogo que oblitera paisagens e vilas. O universo moral é virado de ponta cabeça. Ninguém passa por isso sem ser afetado. A guerra nos arremessa dentro de um vórtice de barbarismo, dor e fugidio êxtase. Ela nos arremessa dentro de um mundo onde a lei é de pouca importância.
É preciso pouco em tempo de guerra para tranformar homens e mulheres comuns em assassinos. Muitos cedem, de boa vontade, à sedução do poder ilimitado para destruir. Todos sentem a pressão dos pares para se conformar. Poucos, uma vez em batalha, acham a força para resistir à carnificina gratuita. A coragem física é comum no campo de batalha. A coragem moral, não.
As máquinas militares e as burocracias de estado, que buscam nos fazer obedecer, também buscam silenciar estes que retornam da guerra e falam a verdade. Além disso, o público tem pouco desejo de arruinar a narrativa heróica, mítica. A essência da guerra, que é a morte, é cuidadosamente mascarada da visão. Os poucos, solitários jornalistas que tentam falar a verdade sobre a guerra, para descrever a experiência de constantemente estar no lado receptor do poder de fogo americano, em breve, se tornam parias, não mais capazes de se incorporarem com os militares, jantar com os funcionários na Zona Verde, ou conseguir credenciais de imprensa. E, portanto, a vasta maioria da imprensa mente para nós, embora, não abertamente; é a mentira da omissão, mas é uma mentira, apesar de tudo.
Os ex-combatentes que retornam, mesmo se não falam sobre as atrocidade que cometerem ou testemunharam no Iraque, irão passar o resto de suas vidas lidando com o que fizeram. Eles irão sofrer reações atrasadas à tensão. Eles irão sofrer, como aqueles que retornaram do Vietnam, uma crise de fé. O Deus que eles conheciam, ou pensavam que conheciam, lhes falhou. Os altos sacerdotes de nossa religião cívica, dos políticos aos pregadores, até os sabichões da televisão, que lhes prometeram a glória e a honra através da guerra, os traíram.
A guerra é sempre sobre traição; traição dos jovens pelos velhos; dos idealistas pelos cínicos e dos soldados pelos políticos. Esse amargo conhecimento está se infiltrando nas fileiras das forças armadas americanas. Ele está trazendo uma nova onda de ex-combatentes enraivecidos e despossuídos que nunca mais irão confiar no país que os mandou para a guerra.
Nós fazemos nossos heróis do barro. Nós louvamos seus feitos valentes. Nós lhes damos uniformes com fitas coloridas pelos atos de violência que eles cometeram ou suportaram. Eles são nossos falsos repositórios de glória e honra, de poder, de hipocrisia, de patriotismo e egolatria, tudo o que queremos acreditar sobre nós mesmos. Eles são nossos santos de gesso, os ícones que aplaudimos para nos defender e tornar a nós e a nossa nação, grandes. Eles são as escoras de nossa demente religião cívica, nosso amor pelo poder e força, nossa crença em nosso direito como uma nação escolhida para brandir essa força contra os fracos. Esta é a idolatria de si mesmo da nação.
Profetas não são estes que falam de piedade e dever dos púlpitos – há poucas pessoas nos púlpitos dignas de se escutar. Os profetas são os desgastados destroços de homens e mulheres que voltam do Iraque e encontram a coragem para pronunciar as hesitantes palavras que não queremos ouvir, palavras que precisamos ouvir e digerir de modo a conhecer a nós mesmos. Esses ex-combatentes, aqueles que ousam falar a verdade, viram e provaram como a guerra nos mergulhou na barbaridade, perversão, dor e numa incontida orgia de morte. E são os testemunhos deles, se nós tomarmos o tempo para escutar, que, tão somente, poderá nos salvar.
___________________________
Chris Hedges, que se graduou pela Harvard Divinity School e foi, por quase duas décadas, um correspondente para o The New York Times. É o autor de “American Fascists: The Christian Right and the War on America.”
Em 17 de maio de 2003, duas semanas após o famoso discursso “Missão Cumprida” do presidente G.W. Bush, Hedges fez um discurso de abertura no Rockford College, em Rockford, Illinois, afirmando: “Estamos embarcando em uma ocupação que, se a história serve de guia, irá ser tão danosa para nossas almas, como será para nosso prestígio, poder e segurança”. Várias centenas de membros do auditório vaiaram e escarneceram de seu discurso, embora alguns tenham aplaudido. O microfone de Hedges foi cortado duas vezes e dois jovens correram para o palco para tentar impedi-lo de falar. Hedges teve de abreviar seu discurso e foi escoltado para fora do campus por funcionários da segurança, antes que a cerimônia tivesse acabado.
_____________________________________
* : Ué? Mas, agora mesmo, acabei de ouvir um discurso do presidente Bush, sobre o uso de células-tronco - que ele vetou. Bush disse: "Sacrificar vidas humanas, com o argumento de salvar outras vidas humanas, não é ético".
E matar centenas e centenas de milhares de pessoas, com o argumento de "implantar a Democracia", seria ético?
Por Chris Hedges – 18 de junho de 2007 – Truthdig, drilling beneath the headlines.( http://www.truthdig.com/report/item/200 ... _atrocity/)
“Que espécie de Deus essas pessoas adoram?”
(mulher iraquiana não-identificada, cuja casa havia sido bombardeada por forças americanas, em 2003. Toda sua família foi aniquilada.)
“Tendo servido honrosamente nos Fuzileiros Navais e cumprido minha temporada no Vietnam, eu posso dizer a todos vocês que a guerra é a COISA MAIS PORNOGRÁFICA que a espécie humana jamais inventou. Glória? Na guerra? Besteira! Guerras são travadas na lixeira. O fedor dos mortos apodrecendo nunca pode ser limpo da memória. A visão, os sons e o cheiro de um ataque aéreo nunca se vão. Glória? Isso é para os filmes e os políticos mentirosos que nunca estiveram na guerra.”
(Ex-combatente americano do Vietnam.)
(Mohammed Saleem, 1 ano e seis meses de idade. Ele, e mais quatro membros da família foram mortos quando forças americanas abriram fogo contra seu veículo na vizinhança de Sadr City, em Bagdá, em junho de 2004, durante a luta entre os americanos e os seguidores de um clérigo radical.)
Todos os soldados, quando ocupam e batalham contra forças insurgentes, como no Iraque, Gaza ou Vietnam, são rapidamente colocados naquilo que o psiquiatra Robert Jay Lifton denomina “situações produtoras de atrocidades”. Neste ambiente, cercado por uma população hostil, atos simples como ir a uma loja comprar uma lata de coca-cola ou dirigir por uma rua significam que você pode ser morto. Esse constante medo e tensão leva os soldados a olhar todos à sua volta como o inimigo. A hostilidade é reforçada quando o inimigo, como no Iraque é fugidio, sombrio e difícil de achar. A raiva que os soldados sentem após uma bomba de estrada explodir, matando ou mutilando seus camaradas, é facilmente direcionada com o tempo para os civis que são vistos como apoiando os insurgentes. É um pequeno pulo psicológico, mas um enorme moralmente. É um pulo entre matar – atirar em alguém que tem a capacidade de causar mal a você – para assassinar – o ataque mortífero contra alguém que não pode fazer mal a você. A guerra no Iraque, agora, trata-se, principalmente, sobre assassinar. O ato de matar é muito pouco. Fuzileiros e soldados americanos tem se tornado, após quatro anos de guerra, aclimatados à atrocidade.
O projeto de assassinato americano não é descrito nesses termos para o público distante. Os políticos ainda falam na abstração da glória, honra e heroísmo, da necessidade de melhorar o mundo, em frases ocas de renovação política e espiritual. A imprensa, como na maioria das guerras, é servilmente complacente. A realidade da guerra – o fato de que as forças de ocupação se tornaram, juntamente com as violentas milícias, uma fonte de terror para a maioria dos iraquianos – não é transmitida ao público americano. A imprensa divulga os ferimentos físicos e emocionais impostos sobre estes que matam em nosso nome. Os iraquianos, esses que nós matamos, são, em sua maioria, mortos sem nome e sem rosto. Esses que matam grande número de pessoas sempre proclamam isso como uma lamentável, porém necessária ação.
A realidade e a narrativa mítica da guerra colidem quando amargurados ex-combatentes voltam para casa. Eles se acham alienados do mundo em volta deles, um mundo que ainda acredita no mito da guerra e nas virtudes da nação.
Tina Susman, em um artigo de 12 de junho nos Los Angeles Times dá aos leitores um raro vislumbre neste lado da guerra. Ela escreveu sobre um rapaz iraquiano de 17 anos morto por um violente, aleatório fogo desfechado por soldados americanos em uma vizinhança de Bagdá, após a explosão de uma bomba. Essas matanças que os iraquianos dizem ocorrer diariamente, raramente são confirmadas, mas, neste caso, o rapaz era filho de um empregado local do Los Angeles Times.
Médicos iraquianos, supervisionados por epidemiologistas na Escola de Saúde Pública da Universidade John Hopkins, publicaram um estudo, no último ano, no jornal médico britânico The Lancet. O estudo estimava que 655 mil pessoas à mais do que o normal tinham morrido no Iraque desde que as forças da Coalizão invadiram o país em março de 2003. Isso é vinte vezes mais que as estimadas 30 mil mortes civis que o presidente Bush citou em um discurso dezembro último.
Do total de 655 mil estimadas “mortes em excesso”, 601 mil resultaram de violência *. As mortes remanescentes ocorreram de doença e outras causas, de acordo com o estudo. Trata-se de cerca de 500 mortes violentas adicionais por dia, através do país.
O tenente-coronel Andrew J. Bacevich, um ex-combatente do Vietnam, que é um professor de relações internacionais na Universidade de Boston, estimou no ano passado que as tropas americanas tem matado “dezenas de milhares” de iraquianos inocentes, devido a acidentes de indisciplina de fogo.
Números oficiais deixaram de existir. O governo iraquiano não libera mais o número de baixas civis e os militares americanos, normalmente, não fornecem relatórios sobre civis mortos ou feridos por forças americanas.
“É um negócio psicológicos. Quando um soldado americano é morto ou ferido, eles atiram em represália,” Alaa Safi contou ao Los Angeles Times. Ele contou que seu irmão, Ahmed, foi morto em 4 de abril, quando tropas americanas crivaram de balas as ruas de sua vizinhança no sul de Bagdá, após o ataque de um tocaieiro.
A guerra é a pornografia da violência. Ela tem uma beleza sombria, preenchida com o monstruoso e o grotesco. A Bíblia chama isso “a luxúria do olho” e previne os crentes contra ela. A guerra nos permite engajar nos impulsos primários que mantemos ocultos no mais profundo, mais íntimo interior de nossas fantasias. Ela nos permite destruir não só coisas mas seres humanos. Nesse momento de total destruição, nós manejamos o poder do divino, o poder de dar ou aniquilar a vida. Unidades armadas se tornam enlouquecidas pelo frenesi da destruição. Todas as coisas, incluindo seres humanos, se tornam objetos – objetos seja para gratificar ou para destruir ou ambos. Quase ninguém está imune. O contágio da multidão garante isso.
Seres humanos são metralhados e bombardeados pelo ar, lança-granadas automáticos alvejam cabanas e arredores com explosivos de alta-potência, e comboios correm desvairadamente através do Iraque, velozes trens de carga da morte. Esses soldados e fuzileiros tem, na ponta dos dedos, a temerária capacidade de pedir poder de fogo que oblitera paisagens e vilas. O universo moral é virado de ponta cabeça. Ninguém passa por isso sem ser afetado. A guerra nos arremessa dentro de um vórtice de barbarismo, dor e fugidio êxtase. Ela nos arremessa dentro de um mundo onde a lei é de pouca importância.
É preciso pouco em tempo de guerra para tranformar homens e mulheres comuns em assassinos. Muitos cedem, de boa vontade, à sedução do poder ilimitado para destruir. Todos sentem a pressão dos pares para se conformar. Poucos, uma vez em batalha, acham a força para resistir à carnificina gratuita. A coragem física é comum no campo de batalha. A coragem moral, não.
As máquinas militares e as burocracias de estado, que buscam nos fazer obedecer, também buscam silenciar estes que retornam da guerra e falam a verdade. Além disso, o público tem pouco desejo de arruinar a narrativa heróica, mítica. A essência da guerra, que é a morte, é cuidadosamente mascarada da visão. Os poucos, solitários jornalistas que tentam falar a verdade sobre a guerra, para descrever a experiência de constantemente estar no lado receptor do poder de fogo americano, em breve, se tornam parias, não mais capazes de se incorporarem com os militares, jantar com os funcionários na Zona Verde, ou conseguir credenciais de imprensa. E, portanto, a vasta maioria da imprensa mente para nós, embora, não abertamente; é a mentira da omissão, mas é uma mentira, apesar de tudo.
Os ex-combatentes que retornam, mesmo se não falam sobre as atrocidade que cometerem ou testemunharam no Iraque, irão passar o resto de suas vidas lidando com o que fizeram. Eles irão sofrer reações atrasadas à tensão. Eles irão sofrer, como aqueles que retornaram do Vietnam, uma crise de fé. O Deus que eles conheciam, ou pensavam que conheciam, lhes falhou. Os altos sacerdotes de nossa religião cívica, dos políticos aos pregadores, até os sabichões da televisão, que lhes prometeram a glória e a honra através da guerra, os traíram.
A guerra é sempre sobre traição; traição dos jovens pelos velhos; dos idealistas pelos cínicos e dos soldados pelos políticos. Esse amargo conhecimento está se infiltrando nas fileiras das forças armadas americanas. Ele está trazendo uma nova onda de ex-combatentes enraivecidos e despossuídos que nunca mais irão confiar no país que os mandou para a guerra.
Nós fazemos nossos heróis do barro. Nós louvamos seus feitos valentes. Nós lhes damos uniformes com fitas coloridas pelos atos de violência que eles cometeram ou suportaram. Eles são nossos falsos repositórios de glória e honra, de poder, de hipocrisia, de patriotismo e egolatria, tudo o que queremos acreditar sobre nós mesmos. Eles são nossos santos de gesso, os ícones que aplaudimos para nos defender e tornar a nós e a nossa nação, grandes. Eles são as escoras de nossa demente religião cívica, nosso amor pelo poder e força, nossa crença em nosso direito como uma nação escolhida para brandir essa força contra os fracos. Esta é a idolatria de si mesmo da nação.
Profetas não são estes que falam de piedade e dever dos púlpitos – há poucas pessoas nos púlpitos dignas de se escutar. Os profetas são os desgastados destroços de homens e mulheres que voltam do Iraque e encontram a coragem para pronunciar as hesitantes palavras que não queremos ouvir, palavras que precisamos ouvir e digerir de modo a conhecer a nós mesmos. Esses ex-combatentes, aqueles que ousam falar a verdade, viram e provaram como a guerra nos mergulhou na barbaridade, perversão, dor e numa incontida orgia de morte. E são os testemunhos deles, se nós tomarmos o tempo para escutar, que, tão somente, poderá nos salvar.
___________________________
Chris Hedges, que se graduou pela Harvard Divinity School e foi, por quase duas décadas, um correspondente para o The New York Times. É o autor de “American Fascists: The Christian Right and the War on America.”
Em 17 de maio de 2003, duas semanas após o famoso discursso “Missão Cumprida” do presidente G.W. Bush, Hedges fez um discurso de abertura no Rockford College, em Rockford, Illinois, afirmando: “Estamos embarcando em uma ocupação que, se a história serve de guia, irá ser tão danosa para nossas almas, como será para nosso prestígio, poder e segurança”. Várias centenas de membros do auditório vaiaram e escarneceram de seu discurso, embora alguns tenham aplaudido. O microfone de Hedges foi cortado duas vezes e dois jovens correram para o palco para tentar impedi-lo de falar. Hedges teve de abreviar seu discurso e foi escoltado para fora do campus por funcionários da segurança, antes que a cerimônia tivesse acabado.
_____________________________________
* : Ué? Mas, agora mesmo, acabei de ouvir um discurso do presidente Bush, sobre o uso de células-tronco - que ele vetou. Bush disse: "Sacrificar vidas humanas, com o argumento de salvar outras vidas humanas, não é ético".
E matar centenas e centenas de milhares de pessoas, com o argumento de "implantar a Democracia", seria ético?