O triunfo da boçalidade - a morte da História.

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Clermont
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O triunfo da boçalidade - a morte da História.

#1 Mensagem por Clermont » Dom Jun 10, 2007 8:59 pm

EM QUATRO ANOS DE FRENESI DE SAQUES NO IRAQUE, OS ALIADOS SE TORNARAM OS VÂNDALOS – A cumplicidade britânica e americana na pilhagem da herança iraquiana é um escândalo que perdurará além de qualquer conflito passageiro.

Simon Jenkins – Sexta-feira, 8 de junho de 2007 – The Guardian.http://www.guardian.co.uk/commentisfree ... 72,00.html

Ao voar para a base aérea americana de Tallis, fora de Nasirya no Iraque central, o trajeto do vôo é por sobre o grande zigurate de Ur, reputadamente a mais antiga cidade na Terra. Vista da base na bruma do deserto ou a escuridão do anoitecer, a estrutura é indistinguível dos elevados depósitos de combustível, material e hangares. Ur está segura dentro da instalação da base. Mas seus muros estão picotados com estilhaços do tempo da guerra e uma casamata está sendo construída sobre um sítio arqueológico adjacente. Quando o chefe do, supostamente soberano, comitê de antiguidades e herança, Abbas al-Hussaini, tentou inspecionar o sítio, recentemente, os americanos lhe recusaram acesso ao seu próprio e mais importante monumento.

Ontem, Hussaini relatou ao Museu Britânico sobre suas lutas para proteger seu trabalho em um estado de anarquia. Foi uma apresentação de cortar o coração. Sob Saddam você poderia ser torturado e fuzilado se deixasse alguém roubar uma antiguidade; no Iraque de hoje em dia, você provavelmente irá ser torturado e fuzilado se não o fizer. O trágico destino do museu nacional em Bagdá, em abril de 2003 foi equivalente se tropas federais tivessem invadido a cidade de Nova Iorque, saqueado a polícia e informado a comunidade criminal que o Metropolitan estava a sua disposição. O comandante de tanques no local foi informado, especificamente, para não proteger o museu por duas semanas inteiras, após a invasão. Até mesmo os nazistas protegeram o Louvre.

Quando eu visitei o museu, seis meses atrás, seu então diretor, Donny George, orgulhosamente mostrou-me o melhor que estava fazendo de um trabalho ruim. Ele foi informado para reabrir, embora com metade de seus mais importantes objetos roubados. O lobby pró-guerra tinha parado de fazer de conta que o saque nada tinha a ver com os americano, que, envergonhadamente, ajudavam a recuperar objetos roubados sob o dinâmico coronel americano, Michael Bogdanos (autor de um livro sobre o assunto). O vigoroso enviado cultural italiano para a coalizão, Mario Bondioli-Osio, estava doando generosamente para a restauração.

O maravilhoso vaso Warka, gravado em 3000 aC, foi recuperado, embora quebrado em 14 pedaços. A requintada Lira de Ur, o instrumento musical mais antigo do mundo, foi achado, severamente danificado. Clérigos em Sadr City foram, engenhosamente, solicitados a dizer as esposas que se recusassem a dormir com seus maridos, se os objetos saqueados não fossem devolvidos, com algum sucesso. Nada pôde ser feito pela biblioteca nacional, engolida pelo fogo e a perda de cinco séculos de registros otomanos (e obras de Picasso e Miro). Mas a mensagem de ganhar corações e mentes parecia estar indo em frente.

Hoje, o retrato está transformado. Donny George fugiu por sua vida, agosto último, após ameaças de morte. O museu nacional não está aberto, e sim fechado. Não só fechado. Suas portas estão obstruídas com tijolos, e ele está cercado por muros de concreto e seus objetos atrás de sacos de areia. Mesmo a equipe não pode entrar. Não há perspectiva de reabertura.

Hussaini confirmou um relato de dois anos atrás por John Curtis, do Museu Britânico, sobre a conversão da grande cidade da Babilônia, de Nabucodonossor, nos jardins suspensos da Halliburton. Isso significa um acampamento de 150 hectares para 2 mil soldados. No processo, pavimento de tijolos de 2500 anos de idade para o Portão de Ishtar foi esmagado por tanques e o próprio portão danificado. O rico subsolo arqueológico foi tratorado para encher sacos de areia, e grandes áreas cobertas de cascalho grosso para helipontos e parques de estacionamento. A Babilônia está sendo transformada em uma esterilidade arqueológica.

Enquanto isso, o pátio do palácio das caravanas do séc X, de Khan al-Raba, está sendo usado pelos americanos para explodir armas capturadas dos insurgentes. Uma explosão demoliu os antigos tetos e derrubou muitas das paredes. O lugar, agora, está em ruínas.

Fora da capital, cerca de 10 mil sítios de incomparável importância para a história da civilização ocidental, 20 % dos quais mal foram escavados, estão sendo saqueados tão sistematicamente quanto foi o museu em 2003. Quando George tentou remover vulneráveis gravuras da antiga cidade de Umma, para Bagdá, ele encontrou uma gangue de saqueadores já no local, com tratores, caminhões de remoção e AK-47s.

Hussaini mostrou um sítio após outro, perdidos para a arqueologia em quatro anos de “saque frenético”. Os restos das cidades de 2000 aC, de Isin e Shurnpak parecem ter desaparecido: fotos mostram-nas substituídas por um deserto de buracos de texugo criados por um exército de cerca de 300 saqueadores. Castelos, zigurates, cidades do deserto, antigos minaretes e mesquitas se foram ou estão indo. Hussaini tem 11 equipes varrendo o país, engajados em trabalho de resgate, a maior parte coletando detritos deixados pelos saqueadores. Sua pequena força de guardas de sítios não é páreo para saqueadores pesadamente armados, capazes de transferir objetos para ansiosos traficantes europeus e americanos, em dias.

Mais ominosa é a mensagem, reputadamente originária do escritório de Moqtada al-Sadr, de que, enquanto a herança muçulmana devia ser respeitada, as relíquias pré-muçulmanas poderiam ser tomadas. Como disse George antes de sua fuga, seus sucessores poderiam estar “apenas interessados em sítios islâmicos e não na herança anterior do Iraque". Enquanto Hussaini, claramente, é devotado à toda a história do Iraque, a destruição pelo Taliban dos Budas pré-muçulmanos está na mente de todos.

Apesar da aparente preferência de Sadr, milícias sectárias estão empreendendo uma orgia de destruição de sítios muçulmanos. Além do bombardeio de alto-perfil de algumas das mais adoráveis mesquitas sobreviventes do mundo árabe, grupos radicais opostos a todos os santuários começaram a explodir estruturas dos séculos X e XI, independente de serem de origem sunita ou xiita. Dezoito antigos santuários já foram perdidos, 10 em Kirkuk e no no sul, apenas no último mês. O grande monumento e souk (praça de mercado), em Kifel, norte de Najaf – reputadamente, a tumba de Ezequiel e antigamente, guardada pelos judeus iraquianos (a maioria levada ao exílio pela ocupação) – foi quase que completamente destruído.

É amplamente claro que os americanos e britânicos não estão protegendo os sítios históricos do Iraque. Todos os arqueólogos estrangeiros tiveram de sair. As tropas nada fazem para impedir a “colheita” de conhecidas antiguidades. Essa é uma contravenção direta da Convenção de Genebra de que um exército ocupante deve “usar todos os meios à sua disposição” para guardar a herança cultural de um estado derrotado.

Logo após a invasão, a ministra britânica Tessa Jowell ganhou aplausos por “prometer” 5 milhões de libras para proteger as antiguidades do Iraque. Eu não posso achar ninguém que possa me contar onde, como ou quando esse dinheiro foi gasto. Isso parece ter sido puro papo. Apenas o Museu Britânico e Escola Britânica de Arqueologia no Iraque tem mantido a bandeira desfraldada. A concessão da última acabou de ser cortada, presumivelmente para pagar pelas despesas com a Olimpíada.

Enquanto a Grã-Bretanha e a América permaneçam negando a anarquia que criaram no Iraque, elas, claramente, sentem que devem negar seus devastadores efeitos colaterais. Dois milhões de refugiados, agora acampados na Jordânia e na Síria são ignorados, já que a vida no Iraque, supostamente, “é melhor agora do que antes”. Igualmente, dezenas de iraquianos trabalhando para os britânicos e, portanto, encarando ameaças de morte, tem o asilo negado. Concedê-lo significaria que o antigo secretário da defesa e agora secretário do interior, o otimista John Reid, admitiria que estava errado. Eles vão morrer todos antes que ele faça isto.

Embora eu me opusesse a invasão, presumi que seu resultado, pelo menos, resultaria em um ambiente mais civilizado. Só que o povo do Iraque está sendo assassinado aos montes por falta de ordem. A autoridade entrou em colapso. Que a civilização ocidental tenha nascido em país tão mergulhado nas trevas, como o Iraque, pode ter sido má sorte. Mas só que agora é essa criatura nascida quem recusou toda proteção, em desafio da lei internacional. Se esta é a “guerra de valores” de Tony Blair, então a linguagem perdeu todo seu significado. A cumplicidade britânica em tal destruição é um escândalo que perdurará a qualquer conflito passageiro. E nós temos o descaramento de chamar os talibans de vândalos.




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