"Se não fizermos nada, há cidades na Europa que vão ficar submersas e outras que podem ficar sem água"
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Selma Guerreiro, investigadora portuguesa da Universidade de Newcastle que coordenou um estudo inédito sobre alterações climáticas em 571 cidades europeias, alerta, em entrevista à VISÃO ONLINE, que é tempo de encarar as mudanças no clima como um problema do presente e não de um futuro longínquo
Rui Antunes
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A investigadora portuguesa Selma Guerreiro
Selma Guerreiro, investigadora na área da hidrologia e alterações climáticas, liderou um estudo inédito da Universidade de Newcastle, apresentado na semana passada, sobre as mudanças no clima que vão atingir 571 cidades europeias na segunda metade do século, incluindo 18 portuguesas (Lisboa, Porto, Braga, Coimbra, Setúbal, Aveiro, Faro, Sintra, Gaia, Matosinhos, Gondomar, Guimarães, Santa Maria da Feira, Famalicão, Vila Franca de Xira, Barcelos, Maia e Leiria).
Emigrada há oito anos em Inglaterra, esta portuguesa e os seus colegas recorreram a todos os modelos climáticos existentes para estudarem, pela primeira vez a nível europeu, as alterações ao nível de três fenómenos climáticos extremos: ondas de calor, secas e cheias. Ao fim de quase quatro anos de investigação, e partindo de um quadro em que não vão ser aplicadas "medidas drásticas de redução de emissões de gases com efeito de estufa", o estudo apresenta três cenários de acordo com o grau do impacto: baixo, médio e elevado.
"É um pouco assustador", admite, em entrevista à VISÃO ONLINE, Selma Guerreiro, licenciada em engenharia do ambiente pela Universidade Nova de Lisboa, que pede rapidez nas decisões políticas para se minimizarem as consequências na vida das pessoas. Por cá, a seca prolongada é para levar muito a sério: "Não devemos ver o que está a acontecer neste momento em Portugal como exceção, mas sim como algo a que teremos de nos habituar."
Uma das ideias-chave deste estudo diz-nos que os fenómenos climáticos extremos vão atingir a Europa com uma intensidade ainda maior do que indicavam previsões anteriores. Em que medida?
Já existem vários estudos a demonstrar o aumento de secas no Sul, inclusivamente um estudo meu sobre as bacias hidrográficas em Portugal e Espanha, mas, quando olhamos para o cenário mais pessimista dos três que temos, vemos que as cidades do Norte da Europa também podem vir a ser atingidas por secas. Isto é algo que não estava estudado.
Das 18 cidades portuguesas analisadas, quais serão mais afetadas pelas alterações climáticas?
Todas as cidades portuguesas vão ser afetadas em termos de ondas de calor e secas. No caso das cheias - as de rios e não as que ocorrem nas cidades em resultado de trovoadas ou chuvas -, possíveis aumentos só aparecem no cenário mais pessimista em algumas cidades do Norte.
Braga, Barcelos, Aveiro e Famalicão surgem num grupo de cidades europeias que vão sofrer dois dos três fenómenos estudados com uma gravidade “sem precedentes”. O que pode acontecer?
Essas quatro cidades surgiram com resultados anómalos porque mostravam um aumento das secas para os três cenários, além da possibilidade de um aumento de cheias no cenário mais pessimista. No entanto, este estudo não deve ser utilizado para fazer previsões cidade a cidade, uma vez que não tomámos em consideração aspetos específicos de cada uma, como as proteções existentes, que são importantes num quadro de cheias. Teríamos de fazer um estudo local e este é continental, com o objetivo de vermos onde estão as prioridades.
Lisboa será das capitais que vai sentir mais secas, a par de Madrid. Sobre isto não há volta a dar na Península Ibérica...
O que esperamos é um aumento das secas em Portugal, Lisboa incluída, mesmo num cenário mais otimista. Secas de maior magnitude e também secas mais frequentes. No cenário mais pessimista, estamos a falar de secas mesmo muito graves, já com um clima diferente daquele a que estamos habituados.
Mais parecido com o clima do Norte de África?
Não fizemos esse tipo de comparações neste estudo, mas no meu Doutoramento, em que olhei para as bacias dos rios Douro, Tejo e Guadiana, concluí que o aumento de secas parece inevitável e tanto podem ser apenas ligeiramente diferentes como podem surgir secas de vários anos consecutivos.
Segundo o estudo, algumas regiões da Europa poderão vir a enfrentar secas até 14 vezes mais intensas do que a pior verificada nesses locais no período comparativo (1951-2000). Que implicações haverá, sabendo-se que, em Portugal, por exemplo, já temos os agricultores a queixarem-se da falta de água para os animais e as culturas...
Esse valor máximo de 14 vezes pior é para outras zonas do Mediterrâneo. Em Portugal as projeções são entre 1.1 e 1.6 vezes no cenário mais otimista e entre 5 e 9.7 no mais pessimista. Não chega bem a dez vezes pior.
O que é que esse aumento pode significar?
Vamos ter de apostar em fazer uma adaptação para climas mais secos. Nos últimos anos, Portugal já tem passado por períodos climáticos complicados, para usar um bom eufemismo.
E, até ver, este inverno não trouxe a chuva necessária, nem de perto nem de longe, para repor os níveis normais de armazenamento de água. É um sinal de alerta?
Já há várias décadas que os cientistas dizem que a zona do Mediterrâneo vai ficar mais seca. É a velha história de nunca atribuirmos um episódio específico às alterações climáticas, por causa da variabilidade natural do clima, mas já estamos a observar essas previsões. No meu Doutoramento, constatei que existe muita incerteza sobre o que vai acontecer com a chuva durante o inverno, mas na primavera e no outono os modelos climáticos concordam que vão ser épocas mais secas. Portanto, a época seca vai começar mais cedo e tem de haver uma adaptação de políticas que tenha isso em consideração. Aliás, esse foi também um problema nos incêndios do ano passado.
O que pode ser feito?
Imensas coisas. Desde consumir menos água e ter uma agricultura mais eficiente até apostar ainda mais, como já temos feito, em reservatórios de água, barragens. O nosso estudo é sobre alterações no clima, não sobre medidas de adaptação. Essas decisões são políticas.
O estudo debruça-se sobre cidades e não regiões. Porquê?
Este estudo está integrado num projeto europeu de investigação, chamado RAMSES, que se focou nas cidades por dois motivos. Por um lado, é onde se concentra a população e o impacto é maior. Por outro, porque as cidades são um foco de emissões de gases com efeitos de estufa.
Há uns meses, em Viseu, só não faltou água nas torneiras porque houve camiões cisterna a transportar água entre barragens. Significa que a ameaça não está tão longe quanto isso ou será apenas um caso de má gestão pontual?
As pessoas continuam a associar alterações climáticas ao futuro. Há 20 ou 30 anos os cientistas já diziam que era preciso proteger o planeta e pensar nos nossos filhos. Entretanto, o tempo vai passando e esses filhos já são adultos, mas continua-se a dizer as mesmas coisas. Não. O planeta já aqueceu à volta de um grau em relação ao período pré-industrial e já estamos a sentir os primeiros efeitos das alterações climáticas.
Portugal tem fama de adiar a resolução de problemas até à última hora. No caso das alterações climáticas e das medidas para minimizarmos os efeitos, isso pode custar-nos o quê?
Infelizmente, não são só os portugueses. Por isso é que temos hoje este problema. Em termos de redução da emissão de gases com efeitos de estufa, realmente o mundo já devia ter começado há bastante tempo. Há que mudar o mais depressa possível porque, quanto mais poluirmos, maiores serão os efeitos. O que estamos a emitir de momento ficará durante décadas na atmosfera. Imaginemos uma situação completamente irrealista: de repente, amanhã não se poluía mais nada; o clima continuaria a aquecer ainda durante algumas décadas. Em relação à adaptação aos impactos, o problema é que muitas das soluções demoram imenso tempo a serem construídas. Não se constrói uma barragem de um dia para o outro. Pode demorar décadas. Algumas medidas podem ser aplicadas mais rapidamente, por exemplo ao nível da educação, tentando convencer as pessoas a poupar mais água e a vê-la como um bem mais precioso. Mas outras soluções demoram muito tempo, até em termos de decisão política. O que fazer, onde, como financiar? Tudo isso tem de começar… agora.
Um cenário de falta de água nas torneiras, como a Cidade do Cabo se prepara para enfrentar daqui a três meses, é possível na Europa?
Sim. Até porque a Cidade do Cabo também tem um clima mediterrâneo, semelhante ao nosso.
Em 1990, um jornal sul-africano avançava que, 17 anos mais tarde, em 2007, a Cidade do Cabo iria ficar sem água. As previsões tardaram uma década mas não falharam. Há alguma estimativa de quando o problema pode atingir a Europa?
Aí entramos na questão da variabilidade natural do clima, mas é uma realidade possível em certas cidades. Só que também vai depender muito do próprio consumo e não apenas do clima. Na Cidade do Cabo, a população tem aumentado nas últimas décadas. É algo difícil de prever porque há muitas variáveis em jogo, mas é um cenário para o qual nos devíamos estar a preparar.
Este estudo apresenta algum dado que reforce a ideia de que o Alentejo e o Algarve podem tornar-se desérticos até ao final deste século?
Este estudo não, mas o que fiz para o Doutoramento mostrava a bacia do Guadiana com probabilidade de ficar com um clima bastante mais seco, mais ainda do que o Tejo e o Douro.
Fala no risco de se atingir o ponto de rutura no sul da Europa. Isso traduz-se em quê?
É exatamente o que estávamos a falar sobre as secas e o que está a acontecer na Cidade do Cabo, com a falta de água. O problema é que os nossos sistemas estão adaptados ao clima que temos. Por exemplo, aqui em Inglaterra, a maior parte deles não está sequer planeado para uma seca que dure um ano. Em Portugal, pelo menos em grande parte do país, estamos adaptados para secas que durem um ano e até mais, em certos sítios. Mas não estamos adaptados para secas que durem muito mais do que isso.
Portugal está agora a atravessar um desses períodos, uma vez que a seca já dura há dois anos e não há meio de chover a sério.
O que o nosso estudo mostra é que não devemos ver o que está a acontecer neste momento em Portugal como uma exceção, mas sim como algo a que teremos de nos habituar, infelizmente. Essa é a principal mensagem deste estudo, em termos de secas.
Ainda que Portugal pouco contribua para o aquecimento global, tem condições para interferir nesse fenómeno?
Somos um país pequeno e obviamente temos uma contribuição limitada, mas o mundo tem imensos países pequenos e isto tem de ser um esforço global. Portugal faz parte da União Europeia, que é um dos principais atores para tentar fazer com que toda a gente concorde, por exemplo, com os acordos de Paris. Como se costuma dizer, isto tem de ser toda a gente a remar para o mesmo lado.
Com a saída dos EUA do Acordo de Paris, o cenário mais grave, ou seja, sem medidas drásticas para reduzir a emissão de gases com efeito de estufa, como foi considerado no estudo que liderou, fica mais perto de se tornar realidade?
Realmente a saída dos EUA foi problemática, no entanto, é interessante ver que há certos estados dentro dos EUA e também cidades que estão por si próprios a fazer a sua parte, independentemente da posição oficial do país. Inclusivamente existem muitas empresas americanas a fazer o mesmo. Seria mais fácil se fosse o país e o presidente, mas sobre isso não vou fazer comentários [risos].
Que países europeus vão ficar mais expostos a fenómenos climáticos extremos?
As ilhas britânicas apresentam um aumento das condições de cheias, mesmo no cenário mais otimista. Em relação às secas, os países mediterrâneos vão ser, realmente, os mais afetados. E, no que respeita às ondas de calor, tanto o número de dias como as temperaturas máximas vão aumentar, infelizmente, em toda a Europa. Os países do Mediterrâneo destacam-se no aumento do número de dias de ondas de calor, mas é nos países do centro que a temperatura máxima verificada nesses períodos vai subir mais.
Falamos também de Berlim, Varsóvia?
Sim. O problema das subidas de temperatura durante as ondas de calor é que, ao contrário dos países mediterrâneos, eles não estão habituados a temperaturas altas. Por exemplo, enquanto na maioria das cidades mediterrâneas temos edifícios de cor clara, na Europa central e do norte a maior parte são escuros. Vai requerer uma adaptação das cidades ao calor.
Até a nível da construção das casas?
Tradicionalmente, a maneira como construímos casas está adaptada ao clima. No Alentejo e Algarve, por exemplo, temos aquelas paredes grossas, com janelas pequenas, tudo caiado de branco. Isto não é por acaso. Em Nova Iorque houve um projeto para se pintarem os telhados de branco para aliviar um pouco a temperatura dentro das casas.
O que espera da conferência do painel das Nações Unidas para as alterações climáticas, na próxima semana, em Edmonton, no Canadá?
É uma conferência académica, muito virada para a apresentação de estudos. Mas mostra que se está a começar a valorizar mais o foco das cidades, porque é uma conferência específica sobre os impactos em meio urbano. Nós somos as pessoas que melhor percebemos as consequências das alterações climáticas e é um pouco assustador. Qualquer pessoa que trabalha na minha área gostaria de ver as soluções começarem a ser pensadas e as cidades a adaptarem-se para minimizarmos ao máximo os efeitos na população. Mas são decisões políticas.
Teme que certas cidades se tornem insustentáveis, no sentido de deixarem de ter condições de vida para grandes aglomerados populacionais?
Sem dúvida. E não só por causa das secas, mas também com o aumento do nível do mar. Se não fizermos nada, há cidades que vão ficar submersas. Em relação às secas, já estão a afetar migrações, por exemplo no Médio Oriente. A Síria é obviamente uma região extraordinariamente complicada por outros motivos, mas as secas começam a ser mais um fator a puxar para um ponto de rutura.
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