O inventor do futuro
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Valor Econômico - 29/01/2010
Por Gillian Tett, do Financial Times
Economia: Quando Jim O'Neill criou a sigla Bric para representar as economias do Brasil, Rússia, Índia e China, sabia ter detectado algo grande. O que não percebeu foi quão grande.
Sobre a mesa de Jim O'Neill, economista-chefe do Goldman Sachs, há quatro bandeirinhas. Os pequenos pedaços de tecido são flâmulas que representam grandes países: Brasil, Rússia, Índia e China. E quase uma década atrás, O'Neill decidiu começar a pensar neles como um grupo - para o qual cunhou a sigla Bric. Era um simples lembrete mental. O gesto mais ousado foi prever - publicamente, e em nome do Goldman - que em 2041 (mais tarde revisto para 2039 e 2032) as nações do Bric ultrapassariam as seis maiores economias ocidentais em termos de poderio econômico. As quatro bandeiras viriam a representar os pilares da economia do século XXI.
Na época, muitos zombaram dessa ideia. As previsões viraram a sabedoria convencional ocidental de cabeça para baixo, e O'Neill não parecia um arauto óbvio para o conceito. No entanto, na última década, Bric tornou-se um termo financeiro quase onipresente, modelando como uma geração de investidores, financiadores e formuladores de políticas vê os mercados emergentes: empresas, da Nissan à WPP, têm desenvolvido estratégias de negócios centradas nos Bric, dezenas de instituições financeiras agora operam fundos Bric e escolas de negócios têm lançado cursos focados nos Bric.
Para alguns críticos, o termo é bombástico: marketing terminológico de um banco e de um setor bancário acostumados a disfarçar tolices na forma de novas ideias e conceitos genuínos para melhor aproveitá-las. "Bric é apenas lorota de marketing, um disparate!", disse Charles Dumas, economista em Londres que contesta muitos elementos do conceito Bric, por exemplo a ideia de que esses países vão continuar a crescer inexoravelmente no futuro.
Reinaldo Canato/Folha Imagem Prédio da BM&FBovespa, em São Paulo: desde 2003, as bolsas nos Bric cresceram de 2% para 9% em capitalização mundial de mercado Mas, mesmo que o Bric seja um lance autointeressado de marketing político, esse tipo de jogada pode assumir vida própria, além do alcance em que seus criadores acreditam ou mesmo almejam. O'Neill, de 52 anos, redesenhou o mapa cognitivo dos "senhores do universo", ajudando-os a articular uma mudança fundamental de influência distante do mundo ocidental. E se você acredita que a maneira de pensar e falar dos seres humanos não só reflete a realidade, mas pode moldar o futuro, então esse rótulo Bric veio tanto para refletir como direcionar mudanças, embora a partir de uma semente improvável.
No verão de 2001, Gavyn Davies, extremamente respeitado codiretor do Goldman Sachs, anunciou sua saída, deixando O'Neill como líder único, e sob enorme pressão para mostrar desempenho. "Pensei: 'Oh, meu Deus, tenho de colocar minha marca nesse departamento'", relembra. "Estava em busca de um tema e de uma ideia nova."
AP Chinesa acompanha movimentação da Bolsa de Xangai: Jim O'Neill prevê que as bolsas dos Bric representarão quase 50% do mercado mundial em 2050 A inspiração veio na forma de uma dádiva ambivalente. Em 11 de setembro, quando o primeiro avião aproximou-se das Torres Gêmeas, onde ele proferira uma palestra alguns dias antes, O'Neill comandava uma teleconferência mundial. No meio da palestra, os rostos de Nova York desapareceram da tela. O'Neill soube mais tarde que os funcionários tinham sido retirados ilesos, mas ele ainda ficou atordoado, em choque. Nos dias que se seguiram, sua mente começou a zumbir. Como analista de mercados de câmbio, O'Neill era defensor da globalização e estava fascinado com o poder crescente da Ásia. "O que o 11 de Setembro me disse foi não haver maneira de a globalização, no futuro, ser sinônimo de americanização - nem deveria ser", diz. "Para fazer a globalização avançar, ela teve que ser aceita por mais pessoas, mas não impondo as crenças sociais e filosóficas e as estruturas dominantes americanas."
Em termos práticos, concluiu ele, isso significava que os economistas tinham de examinar mais detidamente como as economias não ocidentais poderiam exercer maior poder no futuro. Ao perscrutar o mundo, ficou fascinado com quatro países: Brasil, Rússia, Índia e China. Em certo sentido, os quatro pareciam distintos, separados geográfica e culturalmente, pois em nenhum sentido já haviam atuado como bloco, nunca haviam se concebido como unidade. Mas o que compartilhavam em 2001 eram grandes populações, economias subdesenvolvidas e governos que pareciam dispostos a abraçar mercados mundiais e alguns elementos da globalização. Para O'Neill, essas características os tornavam irmãos: todos tinham potencial para crescer rapidamente.
Em 30 de novembro de 2001, ele lançou sua grande ideia: o estudo nº 66 do Goldman Sachs, "Building Better Global Economic Brics". Ele previu, cautelosamente, que "nos próximos dez anos o peso dos países do Bric, e especialmente da China, no Produto Interno Bruto (PIB) mundial iria crescer", e advertiu, talvez um pouco menos sobriamente, que "em consonância com essas perspectivas, os fóruns formuladores de políticas para o mundo deve ser reorganizado" para dar mais poder ao grupo que O'Neill denominara Bric.
O estudo logo despertou interesse de empresas clientes, especialmente aquelas que já estavam vendendo ou tentando vender produtos de consumo para os mercados emergentes. "Achei o conceito Bric fascinante desde o início", diz Martin Sorrell, diretor de mídia do grupo WPP. "Ele captou o que nós já estávamos discutindo." Mas, para muitos investidores e banqueiros, inclusive para algumas pessoas no Goldman, tudo parecia um pouco fantasioso, sobretudo tendo em conta que países como o Brasil tinham, recentemente, sofrido hiperinflação. "Na primeira vez em que falei a um grande grupo no Rio [após o estudo ter sido publicado], foi para mil investidores da América Latina", recorda O'Neill. "A pessoa que estava me apresentando sussurrou ao meu ouvido, ao dirigir-se ao púlpito, 'todos nós sabemos que a inclusão do 'B' é porque sem ele não haveria uma sigla'."
Mas O'Neill continuou discutindo o conceito com colegas e, em 2003, sua equipe produziu sua contribuição seguinte: um documento chamado de "Dreaming with Brics: The Path to 2050". Ele declarou que em 2039 os Bric poderiam superar as maiores economias ocidentais em escala. Essa previsão lançou a equipe de O'Neill no que ele chama de "Briclife". Em poucos dias, as caixas postais dos economistas da Goldman foram inundadas com e-mails de executivos de inúmeras companhias - da Vodafone, grupo em telefonia móvel, à mineradora BHP Billiton, Ikea e Nissan. Por sorte ou brilhantismo, O'Neill criou a sigla no momento em que empresas ocidentais estavam tentando aprimorar suas estratégias para vender produtos ao mundo não ocidental ou para usar regiões como a China como base de produção. A referência Bric proporcionou a executivos uma forma ágil de discutir estratégias. Melhor, ao contrário dos "mercados emergentes" ou "mundo em desenvolvimento", Bric não é paternalista ou pouco promissor.
Em pouco tempo, bancos rivais estavam lançando fundos de investimento com marketing sob o rótulo Bric. "Perguntamos a nossos advogados se poderíamos tornar o termo Bric uma marca registrada, mas eles nos disseram não - aparentemente, não se trata de um produto", diz O'Neill. Incessantemente, a marca se disseminou, assumindo uma vida fora dos limites do Goldman. À medida que os investidores começaram a comprar ativos especificamente ligados à ascensão dos países do Bric, fundos de hedge perceberam que a maneira como a China, por exemplo, estava produzindo carros poderia afetar a demanda por cobre no Brasil. Novas correlações foram se desenvolvendo nos preços dos ativos, em meio a fortes fluxos de investimentos (desde 2003, as bolsas nos Bric cresceram de 2% para 9% em capitalização mundial de mercado, e O'Neill prevê que elas representarão quase 50% do mercado mundial em 2050).
Rivais de O'Neill começaram a disparar críticas. Alguns economistas disseram ser ridículo fazer previsões tão distantes quanto para 2050, especialmente porque muitas das projeções de O'Neill pareciam extrapolar o crescimento corrente sobre uma linha reta. Outros discordaram da ideia de que os quatro países do Bric poderiam ou deveriam ser descritos como grupo. "Economicamente, financeiramente e politicamente, a China ofusca, e vai continuar ofuscando, os outros Bric", argumentaram analistas do Deutsche Bank. Alguns bancos tentaram proibir seus funcionários de usar "a palavra que começa com 'B'".
Talvez o aspecto mais notável da criação de O'Neill esteja no que não lhe aconteceu: submetida a análise, naufragar sob o impacto da crise de crédito. Na verdade, durante a grande rerreavaliação, o conceito Bric floresceu. A maioria dos países do Bric emergiu da crise relativamente bem. "Como resultado", O'Neill escreveu, "julgamos que as nossas projeções 'douradas' de longo prazo para os Bric em 2050 têm maiores, e não menores, chances de se concretizar". O Goldman agora prevê que até 2027 a economia chinesa terá se tornado tão grande quanto a dos EUA, ao passo que até 2032 os Bric como um todo eclipsarão as grandes economias ocidentais quase uma década antes do que se pensava.
Isso, argumenta O´Neill, vai derrubar muitas premissas ocidentais sobre como o mundo funciona. Atualmente, o Goldman recomenda agressivamente que os investidores decidam em que empresas ocidentais investir com base em se estão vendendo para os Bric, em vez de apenas para consumidores ocidentais. "Estimamos que até 2030 poderão ter entrado na classe média mundial 2 bilhões de pessoas, principalmente nos Bric", afirma o Goldman em recente nota de pesquisa.
Investidores adoram o raciocínio. "Se você tivesse dado atenção ao trabalho de O'Neill e começado a investir nos mercados de ações desses quatro países [nos idos de 2001], teria ganho mais dinheiro, nesta década, do que fazendo praticamente qualquer outra coisa imaginável", declarou Joshua Brown, influente comentarista de investimentos, em seu blog sobre Wall Street no mês passado.
Outros temem que se trata da próxima grande bolha. Para alguns, a exclusão de países como a África do Sul, ou até mesmo a Indonésia, parece cada vez mais estranha. E a inclusão da Rússia está constituindo-se em dor de cabeça cada vez maior, uma vez que foi especificamente a economia russa, entre as dos Bric, que sofreu real impacto durante a crise de crédito - tão severo, na verdade, que alguns investidores (e até alguns executivos bancários no Goldman) desconfiam que chegou a hora de tirar a Rússia do grupo.
O'Neill reluta em prejudicar as relações do Goldman com Moscou fazendo isso. Embora admita que a Rússia tenha "desapontado", ele também insiste que, se o país "se recuperar vigorosa e rapidamente em 2010 e 2011, como esperamos, acreditamos que merecerá seu status de membro do Bric".
Agora está emergindo outro fenômeno relacionado com os Bric. Nos primeiros anos da "bricolândia", os quatro países escolhidos por O'Neill tiveram reações distintas ao rótulo. Houve satisfação na Rússia, perplexidade na China, cinismo no Brasil e indiferença na Índia. Agora, os países estão pondo em prática a ideia de forjar tentativas de ligação de investimentos - na realidade, e não apenas no mundo das ideias. Em maio de 2008, a Rússia sediou a primeira cúpula formal dos Bric, reunião de ministros de Relações Exteriores dos países do Bric. Em julho de 2009, os russos deram seguimento com uma reunião de chefes de Estado dos países do Bric.
Como é típico nessas reuniões, elas foram simbólicas, e não substantivas. Embora os quatro países tenham discutido como poderiam coordenar melhor seus interesses para conquistar maior influência - e buscar alternativas ao uso do dólar -, não houve consenso em torno de passos concretos. Mas no início do segundo semestre, os quatro países deverão reunir-se no Brasil. Em antecipação, as autoridades brasileiras estão formando um grupo de acadêmicos e um think-tank formal, para lançar ideias sobre como desenvolver ainda mais a agenda dos Bric.
Pode parecer irônico que esses quatro países viessem a escolher um termo criado por um banco americano para se definirem. Mas não é algo sem precedentes. Quando a Índia começou a desenvolver seu primeiro senso de identidade nacional e rebelou-se contra os britânicos - ou quando repúblicas soviéticas, como o Uzbequistão ,desenvolveram um nacionalismo similar - fizeram-no com as fronteiras que tinham também sido impostas, artificial e arbitrariamente, por uma potência externa. Quando o mapa cognitivo é redesenhado por uma potência dominante, mesmo no mundo do marketing e da propaganda de bancos de investimento, ele tende mais a não ser apagado, e sim apropriado.
Em Nova York, alguns dos gestores mais antigos no Goldman estão conscientes das ironias culturais da febre dos Bric. Durante os primeiros 120 anos de sua história, o Goldman obteve a maior parte de seus lucros em mercados americanos. Ao entrar em sua sede, na Broad Street, em Manhattan, a primeira coisa que vemos é uma bandeira americana pairando acima do saguão de mármore. Mas as aparências podem enganar. Enquanto O'Neill escavou seu próprio nicho intelectual e divulgou as economias dos Bric, também o Goldman foi se refazendo - bem mais discretamente -, estruturando atividades fora do reduto americano para capturar o crescimento previsto por O'Neill. Na década passada, o banco abriu mais escritórios em todo o mundo do que em toda a sua história, e enquanto as receitas das Américas representaram 60% de seu lucro dez anos atrás, elas agora representam cerca de metade (e muito menos, se for excluída a América Latina). Executivos sênior do Goldman acreditam que dentro de poucos anos os lucros "made in US" serão minoria no lucro total.
Esse padrão não é certamente exclusivo do Goldman: a maioria dos outros bancos ocidentais vêm se expandindo em todo o mundo nos últimos anos. O Deutsche Bank, por exemplo, vem habilmente montando operações com derivativos de mercados emergentes, ao passo que o HSBC está tão convencido de que seu futuro está na Ásia, que seu executivo-chefe recentemente mudou-se de Londres para Hong Kong.
Ainda assim, a mudança é particularmente notória no Goldman, em vista de seu passado exclusivamente americano. Hoje, a ideia é que o banco deve construir negócios ao redor do mundo que ofereçam aos clientes locais não apenas serviços internacionais, mas serviços em seus mercados locais. Em vez de tratar os países não ocidentais como fronteiras remotas ou peões num jogo financeiro, a nova retórica empresarial insiste em que os países do Bric (e outros países não ocidentais) justificam, em si, empreendimentos financeiros. Por isso, no Brasil, o Goldman começou, recentemente, a vender fundos de investimento brasileiros para brasileiros. No Japão, há funcionários que mal falam uma palavra de inglês. E, na China, o banco está patrocinando uma escola de administração e negócios chinesa, para garantir acesso a um fluxo de estudantes chineses autenticamente "locais".
Tudo isso poderia soar reminiscente da forma como o império britânico operou no século XIX, ou a maneira como o partido comunista soviético tentou reunir os diversos povos da União Soviética numa única nação com base em ideologia. Mas, desta vez, trata-se de programas de MBA e cursos de treinamento do Goldman - em vez de escolas particulares britânicas ou campos de formação comunista - que fornecem a "cola cultural". E talvez o fator mais importante de todos: o Goldman (ao contrário de impérios anteriores) não está agindo segundo agenda nacionalista ou política; sua fidelidade real, até onde a pratica, é a seus próprios lucros. (Tradução de Sergio Blum)