A Guerra do Alemão ou a Guerra do Brasil?
Marco Antonio dos Santos
Coronel da Reserva do Exército, analista de Inteligência Estratégica, doutor em planejamento e aplicações, professor universitário, empresário, e alguém quase perdendo as esperanças neste País.
marcoprospect@prospectintelligence.com.br
Com a vivência de mais de três décadas em trabalhos de Inteligência e experiência em operações de repressão ao narcotráfico, inclusive na mega operação levada a cabo por forças militares – policiais no Rio de Janeiro, no período compreendido entre novembro de 1994 e março de 1995, e em muitas outras forças - tarefas federais contra o crime organizado, avalio que possa dar minha contribuição a respeito do que está se passando naquele estado da federação e por extensão no Brasil.
A idéia simples de que as forças de segurança empregadas na tomada do Complexo do Alemão, após uma semana de práticas terroristas pelos criminosos ligados ao narcovarejo, na manhã de 28 de novembro, possam ter infligido danos de monta ao crime organizado carioca ou nacional passa distante da realidade.
Os traficantes são guerrilheiros urbanos, terroristas, no melhor estilo imaginado por Carlos Marighela, em seu manual do guerrilheiro urbano, ou mesmo seu xará Carlos Ilych “o Chacal”. A essência da atuação é a mesma. Diferem na finalidade. Uma é ideológica, a outra obter o lucro financeiro em operações igualmente criminosas.
Atacar de surpresa, onde têm preponderância de forças e meios, com violência extrema e valendo – se do pânico dela resultante é um dos fundamentos básicos. Buscar resultados com a violência difusa, causando medo, outro fundamento. Propaganda armada para aumentar a segurança própria, outro. Defender posições em locais fixos, no máximo naqueles pontos que assegurem tempo suficiente para evacuar armas, munições, drogas e homens. Claro, deixando um pouco como troféus para os incursores. O objetivo maior do guerrilheiro do narcovarejo é “preservar o poder de combate”. O negócio não acaba com a perda de um morro ou favela.
Os delinqüentes dos morros cariocas e, de resto, os do país todo não fizeram, nem pretendiam fazer, com certeza, a defesa de posições consolidadas, fortes, nos morros que dão culminância ao Alemão ou qualquer outro que ocupam ou venham ocupar. Fixar – se em posições defensivas rígidas significa sua destruição por força superiores em poder de combate, como assistido pela televisão. Seus dirigentes sabem que são vulneráveis a forças organizadas e com poder local superior.
Poderiam ter destruído, com relativa facilidade, os blindados empregados pela Marinha e pelo Exército, se assim tivessem intenção. Áreas urbanas de espaços reduzidos são verdadeiras ratoeiras para veículos pesados, mesmo blindados. Quanto mais pesados e maiores, mas fáceis de serem neutralizados. É muito possível que em enfrentamentos futuros empreguem os tradicionais coquetéis molotov, cortinas de fogo ou mesmo foguetes contra blindados, os quais já deram mostras de possuir.
A principal arma dos modernos guerrilheiros – traficantes, ou vice versa, não é o fuzil de assalto, as granadas, até armas mais poderosas, mas a fluidez, assegurada pela elevada capacidade de mimetismo com a comunidade que os abriga com silêncio obsequioso e subserviência e pela flexibilidade que dispõem.
Armas, fuzis Kalashinikov AK 47, AR 15 e Colt M4, FAL e HK, não se destinam precipuamente a enfrentar organizações policiais ou militares. Prestam – se para impor poder nas comunidades nas quais se homiziam, atacar e defender – se de facções rivais, assegurar posições favoráveis de negociação contra policiais corruptos e, eventualmente, manter à distâncias por certo tempo ataques coordenados como os realizados nesta semana. Fácil observar as cenas de policiais e militares cobertos por muros e árvores sem poder avançar pelo fogo de afugentamento disparados das elevações e de cima de lajes.
A operação de domingo, dentro do conceito policial militar (ou mesmo militar) em que foi elaborada, foi bem concebida e executada, com um número de baixas, deplorável, mas aceitável, com mérito incontestável a ser creditado aos elementos operacionais da Marinha, Exército, Aeronáutica e Polícia Militar do Rio de Janeiro, especialmente de seu Batalhão de Operações Especiais, o BOPE, que puseram suas vidas em risco. Ações muito bem desencadeadas e coordenadas, dignas de compor estudos de caso de operações militares – policiais urbanas contra segmentos pesadamente armados de organizações de criminosos organizados de terceiro nível.
Mas não se deve considerar que a resistência encontrada e os resultados alcançados tenha sido definitiva, capaz de derrotar o tráfico. Os efetivos imaginados para os narco – guerrilheiros e o armamento que se avaliava possuírem, caso houvessem se entrincheirado adequadamente e permanecido em posições fixas, teria resultado em um massacre de civis, militares, policiais e criminosos, claro. As 50 mortes creditadas seriam número ínfimo perto das pssibilidades.
Apesar do brilhantismo de sua execução, não se deve, sequer, imaginar que as mais de 15 mil pessoas, em números estimados, envolvidas com o mercado das drogas – seguranças, “aviões”, gerentes, armeiros, donos de bocas e outras que usufruem, nas comunidades, das benesses da economia bandida das drogas –, no Rio de Janeiro, vão desaparecer em um passe de mágica. Muito menos as centenas de milhares de usuários de maconha, cocaína, crack e etc, deixarão de se drogar porque não haverá mais oferta. Essa “guerra” jamais será vencida por meios militares – policiais, em enfretamentos bélicos, porque a lei da oferta e da procura não vai ser revogada. Enquanto houver consumidor de drogas, haverá alguém que a ofereça, com mais ou menos dano social. É a economia bandida promovida pelo crime organizado transnacional.
Alguns órgãos de mídia têm feitos comparações de meios, armas e efetivos como se o conflito tivesse feições convencionais, de guerra regular. Ora, esqueçamos isso. Não é assim que funciona. Isso nem é mais válido no Afganistão.
Porque o Bope, os pára-quedistas e outras forças especiais obtém maior êxito?
Porque combatem com a mesma flexibilidade que seus oponentes, dentro das restrições legais, óbvio. Têm a mesma dinâmica.
Com relação aos enfrentamentos futuros com sucesso, o emprego de frações de tropas especiais é uma das estratégias, certamente.
Na Operação Rio, em fins de 1994 e início de 1995, a situação anterior à atuação da Forças Armadas e policiais do Rio era semelhante, eu diria até mais grave que a atual.
Esforços tripartites foram empreendidos, envolvendo estado, municípios do grande Rio e federação, e o Estado do Rio de Janeiro, tal qual se imagina que possa vir a ter, na situação presente, tinha, ao final da Operação, condições de se fazer representar em todas as comunidades socialmente degradadas. Projetos de cidadania foram elaborados – os Centros de Cidadania – e deveriam ter sido implementados, reduzindo as vulnerabilidades que pudessem permitir o retorno das estruturas criminosas. No entanto, menos de uma década depois, já se podia observar não só a volta do narcovarejo terrorista às favelas, mas sua versão modernizada, globalizada, mais violenta, melhor armada e mais articulada ao crime transnacional. O Estado não fez sua parte.
As causas não foram debeladas.
Não se agiu, politicamente, com firmeza na implantação de programas que tivessem uma dinâmica capaz de se contrapor à dinâmica do crime organizado, não se enfrentou a corrupção de forma eficaz e ordenada (inclusive o financiamento de campanhas políticas), não se tratou de esclarecer a sociedade quanto à algumas manifestações culturais que educavam para o tráfico, não se trabalhou a cabeça do brasileiro, como se fez para as eleições, quanto ao grau de tolerância em relação às práticas criminosas globalizadas, aparentemente inocentes, mas danosas, como pirataria, jogos de azar, prostituição, uso de “drogas leves”, e a lista do “não se fez” se estende por mais quilômetros que a Estrada de Itararé, hoje mundialmente conhecida, após a tomada do Alemão.
Os governos têm sido incompetentes em informar à sociedade brasileira quanto aos malefícios do crime organizado transnacional, mesmo aquelas práticas aparentemente de menor poder ofensivo e que, desde meados dos anos 1990, passaram a ser objeto do contexto internacional de trabalho das máfias globalizadas.
Muitos especialistas estão deitando falação quanto às conseqüências, reflexos e desdobramentos da Guerra do Rio. Alguns até arriscam a afirmar o fim do tráfico no Estado. Manchetes nesse sentido não faltam.
Mas, crime organizado não se enfrenta com slogans.
Invariavelmente quase todos os especialstas estão certos, mas apenas em certa medida e em alguns pontos. Inclusive eu.
Mas todos erraram nos fundamentos da análise.
Porque digo isso?
Porque a sociedade não tem informações com credibilidade e amplitude suficientes para julgar. Temos o que a mídia tem veiculado. Temos o que se pode obter de contatos com populares, com cidadãos de áreas conflagradas, e com outras fontes fragmentariamente informadas, mas não se pode acessar informações de qualidade originárias da Inteligência, aquelas que autoridades, e assim mesmo em círculos restritos delas, devem ter conhecimento. Isso só permite análise e conclusões parciais e sem a profundidade exigida.
Evidentemente que não se cogita transparência total. Isso poria em risco os bravos militares e policiais incursores e as próximas operações. Mas a sociedade tem direito de saber as causas verdadeiras, por exemplo, que originaram o conflito da semana passada. É preciso que conheça a extensão do mal e os números dos maus. Transparência é um princípio basilar de ação de governo no Século XXI. Ou será que os marcinhos e fernandinhos têm esse poder todo? Claro que não. As estruturas criminosas organizadas são muito maiores do que se pode ver.
São muitos os fatores a serem considerados, talvez mais de uma centena deles, em uma análise séria e profunda. Alguns fatores são mais críticos, como a questão do aumento do consumo de drogas e da corrupção conexa, outros menos, como o desarmamento do cidadão de bem como medida de redução da violência urbana. É simplista demais, porém, imaginar que delinqüentes sumariamente letrados negociem contratos internacionais de toneladas de drogas e centenas de armas pesadas, em fluxos constantes.
Importante considerar que, entre as análises que amenizam o impacto negativo dos acontecimentos e que influem no relaxamento dos espíritos quanto à gravidade do problema, está a ação da grande mídia que tenta salvar seus investimentos em patrocínios para os mega eventos Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas de 2016.
O Rio de Janeiro e o Brasil deram um passo importante com o enfrentamento dos últimos dias. Não sei se este capítulo do drama foi escrito reativamente, diante os ataques da semana, ou planejado como a implantação das UPP, mas não deve se cogitar que este passo seja decisivo, mas inicial.
O crime globalizado, em todas as suas manifestações e dimensões, o narcotráfico principalmente, precisa ser encarado pela sociedade como ameaça aos valores e princípios da nacionalidade, como ameaça à segurança do Estado e da sociedade, como se configura. Assim, tem que ser enfrentado com os meios maiores que o país dispõe: suas Forças Armadas e policiais, aparato jurídico e formação de consciência, de juízo de valor coletivo.
Não devem ser impeditivos as prováveis baixas, mortes e ferimentos, ou novos casos de corrupção em segmentos aparentemente mais resistentes, como os militares. Essas serão questões a serem resolvidas concomitantemente e com a mesma disposição vistas nos militares e policiais na Guerra do Rio. Valores maiores se avolumam.
Essa é uma questão para o Estado brasileiro.
O Rio de Janeiro e a maioria dos estados brasileiros não tem condições de manter, por longos períodos, ocupações nas áreas “ tomadas” ao tráfico. Pode – se imaginar que as autoridades do Rio empregaram, no período de conflagração, pelo menos 2/ 3 de seus efetivos policiais. Em breve estas forças darão sinais de exaustão. Além disso, a logística é cara e complexa para mantê – los em ação. Também não é boa estratégia manter os militares como força de ocupação dos territórios conquistados.
É de se prever, diante do quadro visto e da experiência reunida, que os traficantes poderão, por certo período, manter as áreas que controlam, migrando, com o passar do tempo, para ocupações menos agressivas, com menor exposição de armas pesadas, como já fazem nas áreas ocupadas por UPP, mantendo, contudo, seus negócios ilícitos. Não falta droga nas áreas pacificadas.
As atuais organizações do espectro visível do narcotráfico no Rio de Janeiro, – CV, TC, ADA etc – visualiza –se, poderão adotar perfis mais próximos do PCC, mediante as lições aprendidas e o assessoramento de profissionais do terror, disponíveis no mercado da delinqüência transnacional. Não se descarta a cooperação de facções rivais em defesa do patrimônio e dos lucros do tráfico.
Não imagine o Estado que repetirão as atuais condutas integralmente.
Os novos Governo Federal e estaduais que se que se instalam em janeiro próximo têm uma tarefa hercúlea pela frente.
As drogas mais lesivas à saúde social nacional, razão maior da criminalidade e da violência que assolam o País e que tem feito fracassar sucessivas políticas de segurança pública ao longo das últimas décadas , não são produzidas em nosso território. As autoridades conhecem a sua origem. Políticas de relacionamento internacional pragmáticas, isentas de ideologias arcaicas, nascidas no Século XVIII, que fazem “vista grossa” aos centros produtores de drogas e seus empreendedores criminosos globais, vizinhos do Brasil, precisam ser implementadas com o intuito de criar dificuldades cada vez maiores ao ingresso de substâncias e capitais que definem o quadro vivido pelo Rio e outros estados brasileiros.
O Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, Delegado Federal José Mariano Beltrame, foi muito feliz e preciso em uma entrevista concedida a um canal de televisão aberta na noite de domingo: “chega de hipocrisia!”.
Só não posso afirmar com que amplitude e profundidade o Secretário assim se manifestou.