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Mensagem
por jauro » Ter Mai 08, 2007 12:39 pm
América Central
24 horas na vida das tropas brasileiras
Missão no Haiti (final)
LUCIANO PERES/ Enviado Especial/Porto Príncipe(Z H)
No terceiro e último dia da série sobre o Haiti, Zero Hora mostra a rotina dos militares brasileiros no país, a saudade de casa e o relacionamento com a população local. A série, iniciada domingo, também relatou a tomada de Cité Soleil e o trabalho social do Exército:
São 4h10min da madrugada, o sol ainda não se levantou em Porto Príncipe, capital do Haiti, mas o cabo gaúcho Gilmar da Silva, 39 anos, de Cachoeira do Sul, já está acordado no contêiner branco onde dorme, equipado com três beliches, lavabo, chuveiro e um potente aparelho de ar-condicionado. Cozinheiro de serviço, cabe a Gilmar, junto com três colegas, garantir a primeira refeição - e também o almoço e o jantar - aos 150 militares da Companhia de Engenharia de Força de Paz do Haiti, na Base Bravo, a principal do Brasil na nação caribenha. Outros dois ranchos servem aos militares do Brabat, o Batalhão Brasileiro - as duas forças dividem a mesma base, mas cada uma tem seu próprio comando e administração.
- A cada dia, são dois quilos de café, nove de feijão e 18 de arroz só para a Engenharia - conta o cabo, que, em cinco meses no Haiti, saiu pouco da base, mas, nas oportunidades que teve para isso, ficou estarrecido com a pobreza do país.
Sob o comando de Gilmar na cozinha, o soldado Anderson Gabriel Ortis da Silva, 22 anos, também de Cachoeira, é outro que saiu pouco às ruas de Porto Príncipe - apenas algumas vezes, como segurança de veículos da Engenharia. Foi o suficiente, porém, para se impressionar com o desemprego no Haiti. A poucos passos da cozinha, o taifeiro - uma patente em extinção no exército - Júlio César de Souza, 40 anos, do Rio de Janeiro, monta o balcão térmico onde será colocada a comida.
- O pessoal gosta muito de sucrilhos - diz Júlio César, que trabalha sempre com um cardápio definido por um oficial com uma semana de antecedência.
Toca a alvorada, às 6h, e, no Brabat, o tenente-coronel Luiz Augusto Cristovão Liotti, gaúcho de Bagé e colorado fanático, se levanta para preparar o primeiro chimarrão do dia - usando, é claro, uma cuia e uma bomba com os símbolos do Internacional. Como chefe do G-1, o equivalente ao departamento pessoal do batalhão, cabe a Cristovão, entre outras tarefas, administrar algo indispensável para o moral da tropa: as folgas regulares. Por determinação das Nações Unidas, cada militar tem direito a dois dias e meio de folga por mês, além de outros 15 dias durante o período de seis meses no Haiti. Muitos aproveitam o chamado leave (licença, em inglês) para descansar nas paradisíacas praias da vizinha República Dominicana, a poucas horas de distância de ônibus, ou para fazer compras em Miami, nos EUA. Alguns permanecem na base, para economizar, enquanto outros não resistem à saudade e compram uma cara passagem para o Brasil.
Entre as atribuições do tenente-coronel também está a de organizar o retorno escalonado ao Brasil, agora que a Força Jauru - o sexto contingente no Haiti, composto na maioria por soldados do Centro-Oeste - está prestes a ser substituída (a troca deve ocorrer em junho) pela Força Pampa, com militares oriundos principalmente do Rio Grande do Sul. Apesar de orgulhosos em relação ao que foi realizado até agora no Haiti, soldados e oficiais deixam transparecer, sem margem de dúvida, o cansaço e a vontade de voltar para casa, depois de cinco meses no Caribe. É o caso do tenente da Companhia de Engenharia Ruy Ferraz e Silva Júnior, 26 anos, carioca servindo em Pindamonhangaba (SP), que hoje tem a cabeça voltada principalmente para a noiva, Anna Amélia, 25 anos, com quem pretende se casar no final do ano. Ferraz e Silva se inscreveu como voluntário para o trabalho no Haiti com um objetivo específico - juntar dinheiro (dependendo da patente, um oficial da missão de paz recebe até US$ 4 mil adicionais por mês) - e não voltaria ao país caribenho se lhe fosse oferecida a oportunidade. Bastaram as lágrimas dos parentes quando ele retornou a "Pinda" em leave.
O sol já está alto na manhã de Porto Príncipe, e os sargentos gaúchos Alessandro Jardim Pereira, César Augusto Paim Finkler e Oscar Homero Marsico, respectivamente de Bagé, Santo Ângelo e São Gabriel, dividem um chimarrão na porta da Escola Nacional, na paupérrima região de Cité Soleil, um prédio retomado das gangues em fevereiro e oficialmente devolvido à prefeitura local no último dia 25 de abril.
- Tomamos chimarrão todos os dias - contam os três.
Cruzando a Rodovia Nacional 1, já no bairro de Cité Militaire, o capitão João Silva, médico do Hospital Geral de Belém (PA), estetoscópio à mão, atende mais um de seus 30 pacientes da manhã no Ponto Forte (base avançada) e Centro Comunitário Fábrica de Gelo (outros 30 haitianos, em média, serão atendidos à tarde). Com a ajuda do intérprete de créole Steeven Chautaire, ele ouve a paciente, Antoinette - 44 anos, mas aparentando 55 -, se queixar de problemas de saúde. Diagnóstico: parasitose intestinal. Antoinette deixa o consultório levando uma cápsula de Albendazol 400 mg e a recomendação para tomá-la no almoço.
A algumas centenas de metros de distância, na Casa Azul, um ponto forte conquistado em janeiro, o sargento Fernando Ferreira Costa, 25 anos, monta guarda e lembra da grande operação Jauru Sudamericano, em 9 de fevereiro, da qual participou. Na ocasião, os brasileiros e as tropas aliadas tomaram a chamada base Jamaica, reduto da bandidagem em Boston, um bairro de Cité Soleil.
- Os haitianos não têm boa pontaria, mas a tensão foi grande no começo - recorda Costa, de Goiandira (GO).
O sol já começa seu caminho descendente na tarde de Porto Príncipe, mas o calor de mais de 30ºC não dá sinal de trégua. Pele muita branca e empapada de protetor solar fator 55, o sargento gaúcho Vanderlei Rauber, da cidade de Arroio do Tigre, supervisiona a construção de um sistema de tratamento de esgoto na nova base brasileira, a Charlie, em meio à poeira e às máquinas que andam de um lado para o outro.
- Graças a Deus, não houve nenhum acidente até agora - festeja Rauber, 37 anos comemorados em abril.
Perto dali, outro sargento, Alexsandro Tauchen, dá os últimos retoques na construção de um equipamento indispensável para qualquer gaúcho: uma churrasqueira.
- Ajuda um pouco a matar a saudade da nossa terra - diz Tauchen, 34 anos, natural de Santa Maria, admitindo a dificuldade de conseguir carne adequada no Haiti.
Anoitece na capital, e, na Base Bravo, mais um sargento gaúcho, Anderson Carvalho Soares, 28 anos, chefe de comunicações da Companhia de Engenharia, controla os soldados que ligam para os parentes no Brasil das cabines telefônicas, aproveitando os 10 minutos diários a que cada militar tem direito, pagos pelo Exército. Conforme Anderson, a procura pelo serviço é muito grande no início da missão, mas vai se reduzindo à medida que os meses passam, até porque muitos soldados compram laptops e passam a se comunicar com os familiares usando programas como o MSN.
No prédio principal da Base Bravo, uma importante reunião tem início. Acionado pela PNH, a Polícia Nacional do Haiti, o Brabat monta uma operação para tentar prender o líder de gangue foragido Blade Nasson, que até há pouco comandava a área de Ti Haiti, em Cité Soleil. Os militares consideram pouco confiáveis as informações da PNH sobre o paradeiro de Nasson - uma casa em Cité Soleil -, mas, mesmo assim, mobilizam soldados e blindados Urutu. Em uma sala poeirenta da Escola Nacional, o ponto de reunião, o major Heron Salomão Cardoso Angelim, magro, de óculos, comandante do 4º Esquadrão de Força de Paz, distribui as tarefas a seus subordinados. O 1º pelotão, batizado de Furacão, avançará pelo Norte; o segundo, chamado de Aço, pelo Sul.
- Qualquer situação envolve risco, não dá para deixar de sentir um certo receio. Corajoso é aquele que controla seu medo e executa o que é determinado - afirma o major (à esquerda na foto), um paraense de 39 anos, casado com uma gaúcha e com dois filhos nascidos no Rio Grande do Sul.
Passa da meia-noite quando a operação é cancelada - as informações da PNH não se confirmaram. Mesmo assim, os militares partem para uma patrulha noturna por Cité Soleil, primeiro a pé, pelas ruelas, e depois a bordo de Urutus. São quase 4h da madrugada quando os blindados retornam à Base Bravo. Poucos minutos depois, o cabo Gilmar da Silva, da cozinha da Engenharia, acorda em seu contêiner para mais um dia no Haiti.
"A disciplina militar prestante não se aprende senhor, sonhando e na fantasia, mas labutando e pelejando." (CAMÕES)
Jauro.