"Chávez Nosso" reacende discussão sobre fronteira entre religião e política
Oração em homenagem a Hugo Chávez rendeu críticas a partido socialista venezuelano. Mas tentativas de canonizar um regime ou seus líderes não são novidade, aponta teólogo.

Nicolás Maduro segura cartaz com foto de seu mentor político Hugo Chávez
"Chávez nosso, que estais no céu", assim se inicia a Oração do Delegado, a versão chavista do Pai Nosso apresentada pelo Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) num seminário sobre educação socialista no começo deste mês.
A resposta do arcebispo de Caracas não demorou a chegar: a deificação de um ser humano é um pecado, advertiu o cardeal Jorge Urosa. Ao mesmo tempo, o presidente venezuelano e líder partidário, Nicolás Maduro, rebateu críticas à homenagem feita a seu falecido mentor político: a Oração do Delegado seria apenas uma obra lírica, como a poesia do Nobel de Literatura chileno Pablo Neruda, disse Maduro.
Não se sabe quantas pessoas o presidente venezuelano conseguiu convencer com essa argumentação. As semelhanças com a mais conhecida e mais antiga oração cristã se arrastam por toda a Oração do Delegado: "Santificado seja o vosso nome", "A tua luz de cada dia nos dai hoje", "E não nos deixeis cair na tentação do capitalismo, mas livrai-nos dos males da oligarquia".
Superficialmente, isso pode soar como folclore político ou uma provocação dos adversários. Mas não se deve menosprezar o impacto de longo prazo, afirma Thomas Grossbölting, teólogo e historiador da Universidade de Münster, na Alemanha. "Aqui se ultrapassa deliberadamente um limite para abrir portas para a sacralização de uma determinada política ou de seus líderes", diz.
Meios ideológicos
Esta não é a primeira vez na história que se tenta santificar regimes ou políticos. O culto à personalidade em torno de Adolf Hitler na Alemanha nazista, entre 1933 e 1945, foi rodeado de elementos religiosos, exemplifica Grossbölting.
Isso inclui desde a encenação das reuniões do Partido Nazista em Nurembergue, em que o "Führer" atravessava um arco luminoso, até formas claras de messianismo, segundo o teólogo. "O próprio Hitler falava da providência divina, que proporcionou ao povo alemão a sorte de tê-lo encontrado."
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Homenagem a Chávez: para cardeal venezuelano, deificar um ser humano é pecado
As lideranças da antiga Alemanha Oriental também fizeram uso dessa estratégia, porém, de uma forma bem mais tênue, afirma o historiador. Em 1958, Walter Ulbricht, o primeiro dos secretários-gerais do Partido da Unidade Socialista (SED, na sigla em alemão), anunciou os "Dez mandamentos da moral e da ética socialista".
"O regime recorre a um padrão conhecido entre a população para conferir um caráter sagrado à sua própria mensagem", diz Grossbölting sobre a aparente contradição entre o regime ateísta e alusões religiosas. Afinal de contas, para o cristianismo, os Dez Mandamentos não são regras quaisquer, mas a palavra divina, explica o teólogo.
No entanto, na ex-Alemanha Oriental, isso nunca foi bastante eficaz, mesmo que mais tarde o SED tenha criado uma série de dez mandamentos – parte delas em relação a situações bastante profanas, como "viagens e transportes". Posteriormente, a tentativa de conferir um caráter quase sagrado a decretos do governo evoluiu para o ridículo, diz Grossbölting.
Distinguir religião e política
Hoje, sobretudo na Europa Ocidental, a base religiosa está abalada demais para que a sacralização de uma pessoa ainda pudesse ter algum efeito, afirma o teólogo.
Mesmo assim, Grossbölting diz considerar correta a postura da Igreja Católica de se afastar de tais tentativas e de apontar as fronteiras entre política e religião. Isso poderia ser particularmente importante na Venezuela, onde para muitas pessoas a religião ainda exerce um papel importante, mesmo após 15 anos de governo socialista.
Depois de ter condenado duramente o "Chávez Nosso", o arcebispo Urosa se mostrou despreocupado. "Todo fiel venezuelano vai entender do que se trata", disse em entrevista ao jornal El Espectador.