Enviado: Qui Mar 01, 2007 11:55 am
Correio Braziliense
HAITI
Domínio brasileiro
Reportagem do Correio acompanha operação militar que levou à ocupação do último reduto de rebeldes na mais violenta favela de Porto Príncipe. Líder da resistência provavelmente fugiu
Mariana Mainenti
Enviada Especial
Porto Príncipe — O movimento na sala do café da manhã em plena madrugada já anunciava que ontem seria um dia excepcional. Eram cerca de 4h da manhã quando os militares brasileiros deixaram a base General Urano Bacellar, conhecida como Bravo, em direção a Cité Soleil. A bordo de um dos jipes, junto com outros quatro jornalistas, a reportagem do Correio acompanhou a operação que seria decisiva para o controle da maior favela da capital haitiana. A expectativa era de que não houvesse reação por parte dos criminosos de Bois Neuf, área da favela que os integrantes da Minustah pretendiam controlar nas primeiras horas do dia. Mas isso não reduzia a ansiedade das tropas.
“Se não houver reação, será melhor para todos. Mas é muito difícil ter certeza do que vai acontecer. Então, vamos sempre preparados para a pior hipótese”, afirmou o general brasileiro Alberto dos Santos Cruz, comandante das forças da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), enquanto parte do contingente de 600 homens concentrava-se no chamado Ponto Forte 21, um posto de apoio da Organização das Nações Unidas (ONU).
O Ponto Forte de Bois Neuf — reduto do líder de gangue Belony — era o último que faltava ser conquistado. O alto comando da Minustah acreditava que, cientes de que esse seria o próximo alvo, os criminosos já teriam fugido. Mas, ainda assim, a ação foi conduzida de forma a alertar a população sobre o que ocorreria. Durante a madrugada, vários moradores do bairro acompanhavam a concentração dos militares para a operação. Impedidos de entrar em Cité Soleil, eles aguardavam na entrada da favela ou tomavam algum tap-tap (veículo coletivo adaptado em que circulam os haitianos) para tentar entrar por outro lado. Enquanto isso, um helicóptero da Minustah fazia o reconhecimento do terreno, enviando imagens computadorizadas aos representantes da ONU que, por sua vez, reportavam as informações por rádio ao comando da operação.
Missão cumprida
Por volta de 5h da manhã, os 38 veículos blindados entraram em Cité Soleil. Pelo rádio do alto comando, era possível ouvir a ordem “Jauru, avançar”. Ao amanhecer, já se sabia que o objetivo havia sido alcançado. Sem reação dos bandidos, sem feridos, a Minustah conquistou ontem o último Ponto Forte importante de Cité Soleil, concretizando — no dia em que se completaram três anos da queda do ex-presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide — o que o comando da operação considerou o fim da etapa de operações militares. O líder local, Belony, havia mesmo fugido. A imprensa local acredita que ele já estava em outra cidade, Saint Michel, onde possui um bando de 100 homens que aterrorizam a população local. Os outros dois grandes líderes de outras regiões de Cité Soleil, chamados de Amaral e Evans, também estão foragidos.
O coronel Cláudio Barroso Magno Filho, que comanda o Batalhão Brasileiro (Brabat), já havia explicado aos soldados que a ação ocorreria de maneira lenta e gradual, para evitar confrontos. “Não é nosso objetivo a surpresa tática”, afirmou. Ele alertou, no entanto, que ainda assim todos deveriam estar preparados para responder, na hipótese de reação dos bandidos. Magno Filho recordou que no dia 21 de dezembro passado, menos de uma semana após chegar ao Haiti, comandou uma difícil operação, em que houve intensa troca de tiros com os bandidos na via principal, a Soleil 9, além da emboscada do veículo onde se encontrava o general Santos Cruz, que conseguiu escapar.
“Eu estou aqui porque ‘Deus é brasileiro’, porque naquela operação quase tomei um tiro no rosto quando estava em um posto de observação”, relata um capitão brasileiro. Naquele dia, um veículo militar uruguaio quebrou e os soldados tiveram de ser resgatados por outro blindado. A Minustah só conseguiu recuperar o veículo em uma operação realizada no dia seguinte, mas ele estava bastante danificado e havia sido incendiado pelos criminosos.
A ação ocorreu num momento em que a Minustah — com cerca de 8,5 mil efetivos, estabelecida em 2004 — corria risco de ser encerrada, pois o debate sobre a renovação de seu mandato era intenso na ONU. O presidente do país, René Preval, sofria fortes críticas que colocavam em risco a governabilidade do país. O Batalhão Brasileiro era pressionado para provar que a missão teria capacidade de controlar a situação crescente de violência e o alto número de seqüestros no país.
O ataque acabou desencadeando uma era de maior presença da ONU na capital haitiana, mas foi criticado devido ao elevado número de feridos: 27, dos quais três morreram, de acordo com a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF), que presta atendimento à população em um hospital de Cité Soleil. Depois desse episódio, ocorreram outras nove operações na região que levaram à captura de importantes Pontos Fortes, regiões que eram dominadas por gangues e são conquistadas pela Minustah.
300mil
pessoas vivem em Cité Soleil, a maior favela de Porto Príncipe, capital do Haiti
80%
dos moradores da área — cerca de 240 mil pessoas — estão desempregados
7
em cada 10 haitianos sobrevivem com uma renda diária de apenas US$ 2
Pobreza absoluta
Os jornalistas puderam entrar ontem pela manhã em Cité Soleil, a bordo de carros blindados jordanianos. Todos usavam coletes à prova de bala e capacetes. Em Bois Neuf, região recém-ocupada pelas tropas brasileiras, havia uma longa fila de haitianos que esperavam a autorização do posto de controle da Minustah para sair de Cité Soleil. Apontando para os relógios, indicavam em creole, a língua local, que estavam atrasados para o trabalho. Crianças uniformizadas para o colégio também enfrentavam a fila. Todos eram revistados ao passar pelos militares brasileiros.
Por um alto-falante, um porta-voz da missão avisava à população que o objetivo da operação era estabelecer a paz na região. Panfletos com a mesma mensagem também eram entregues pelos soldados, sob um sol escaldante. Questionados pelos jornalistas, os moradores de Cité Soleil diziam que apoiavam a ação da Minustah, mas que ela não poderia se encerrar com as operações militares. “Work (emprego)!”, pediam homens que tentavam se comunicar em inglês com os repórteres. Um deles disse que gostaria de ser “informante” da Minustah, função cujo salário gira em torno de US$ 300 no Haiti — valor bastante alto em um país com grandes desigualdades. Outros pediam investimentos sociais no bairro.
Enquanto isso, as tropas avançavam gradualmente para dentro da favela, onde as condições de higiene são extremamente precárias. Sem eletricidade e saneamento básico, mulheres cozinham nas ruas com fogo aquecido por carvão, ao lado de valas enormes de esgoto a céu aberto. Em Cité Soleil, as casas não possuem banheiros. Nem mesmo a moradia do temido líder da gangue da região, Balony, possuía um — embora contasse com uma boate particular.
No caminho, as crianças interceptavam militares e jornalistas, em busca de água e comida. Uma garotinha, chamada Lucie, pediu para que escrevesse meu nome em sua mão. Escrevi e, em seguida, havia incontáveis mãozinhas para que eu fizesse o mesmo. Lucie me deu a mão e não largou até o final do percurso. Fomos embora com dezenas de pequenos acenando para nós. Com sede e barriga vazia, alguns deles diziam “Mariana”, para demonstrar que aprenderam a pronunciar o meu nome. (MM)JUDICIÁRIO
HAITI
Domínio brasileiro
Reportagem do Correio acompanha operação militar que levou à ocupação do último reduto de rebeldes na mais violenta favela de Porto Príncipe. Líder da resistência provavelmente fugiu
Mariana Mainenti
Enviada Especial
Porto Príncipe — O movimento na sala do café da manhã em plena madrugada já anunciava que ontem seria um dia excepcional. Eram cerca de 4h da manhã quando os militares brasileiros deixaram a base General Urano Bacellar, conhecida como Bravo, em direção a Cité Soleil. A bordo de um dos jipes, junto com outros quatro jornalistas, a reportagem do Correio acompanhou a operação que seria decisiva para o controle da maior favela da capital haitiana. A expectativa era de que não houvesse reação por parte dos criminosos de Bois Neuf, área da favela que os integrantes da Minustah pretendiam controlar nas primeiras horas do dia. Mas isso não reduzia a ansiedade das tropas.
“Se não houver reação, será melhor para todos. Mas é muito difícil ter certeza do que vai acontecer. Então, vamos sempre preparados para a pior hipótese”, afirmou o general brasileiro Alberto dos Santos Cruz, comandante das forças da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), enquanto parte do contingente de 600 homens concentrava-se no chamado Ponto Forte 21, um posto de apoio da Organização das Nações Unidas (ONU).
O Ponto Forte de Bois Neuf — reduto do líder de gangue Belony — era o último que faltava ser conquistado. O alto comando da Minustah acreditava que, cientes de que esse seria o próximo alvo, os criminosos já teriam fugido. Mas, ainda assim, a ação foi conduzida de forma a alertar a população sobre o que ocorreria. Durante a madrugada, vários moradores do bairro acompanhavam a concentração dos militares para a operação. Impedidos de entrar em Cité Soleil, eles aguardavam na entrada da favela ou tomavam algum tap-tap (veículo coletivo adaptado em que circulam os haitianos) para tentar entrar por outro lado. Enquanto isso, um helicóptero da Minustah fazia o reconhecimento do terreno, enviando imagens computadorizadas aos representantes da ONU que, por sua vez, reportavam as informações por rádio ao comando da operação.
Missão cumprida
Por volta de 5h da manhã, os 38 veículos blindados entraram em Cité Soleil. Pelo rádio do alto comando, era possível ouvir a ordem “Jauru, avançar”. Ao amanhecer, já se sabia que o objetivo havia sido alcançado. Sem reação dos bandidos, sem feridos, a Minustah conquistou ontem o último Ponto Forte importante de Cité Soleil, concretizando — no dia em que se completaram três anos da queda do ex-presidente haitiano Jean-Bertrand Aristide — o que o comando da operação considerou o fim da etapa de operações militares. O líder local, Belony, havia mesmo fugido. A imprensa local acredita que ele já estava em outra cidade, Saint Michel, onde possui um bando de 100 homens que aterrorizam a população local. Os outros dois grandes líderes de outras regiões de Cité Soleil, chamados de Amaral e Evans, também estão foragidos.
O coronel Cláudio Barroso Magno Filho, que comanda o Batalhão Brasileiro (Brabat), já havia explicado aos soldados que a ação ocorreria de maneira lenta e gradual, para evitar confrontos. “Não é nosso objetivo a surpresa tática”, afirmou. Ele alertou, no entanto, que ainda assim todos deveriam estar preparados para responder, na hipótese de reação dos bandidos. Magno Filho recordou que no dia 21 de dezembro passado, menos de uma semana após chegar ao Haiti, comandou uma difícil operação, em que houve intensa troca de tiros com os bandidos na via principal, a Soleil 9, além da emboscada do veículo onde se encontrava o general Santos Cruz, que conseguiu escapar.
“Eu estou aqui porque ‘Deus é brasileiro’, porque naquela operação quase tomei um tiro no rosto quando estava em um posto de observação”, relata um capitão brasileiro. Naquele dia, um veículo militar uruguaio quebrou e os soldados tiveram de ser resgatados por outro blindado. A Minustah só conseguiu recuperar o veículo em uma operação realizada no dia seguinte, mas ele estava bastante danificado e havia sido incendiado pelos criminosos.
A ação ocorreu num momento em que a Minustah — com cerca de 8,5 mil efetivos, estabelecida em 2004 — corria risco de ser encerrada, pois o debate sobre a renovação de seu mandato era intenso na ONU. O presidente do país, René Preval, sofria fortes críticas que colocavam em risco a governabilidade do país. O Batalhão Brasileiro era pressionado para provar que a missão teria capacidade de controlar a situação crescente de violência e o alto número de seqüestros no país.
O ataque acabou desencadeando uma era de maior presença da ONU na capital haitiana, mas foi criticado devido ao elevado número de feridos: 27, dos quais três morreram, de acordo com a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF), que presta atendimento à população em um hospital de Cité Soleil. Depois desse episódio, ocorreram outras nove operações na região que levaram à captura de importantes Pontos Fortes, regiões que eram dominadas por gangues e são conquistadas pela Minustah.
300mil
pessoas vivem em Cité Soleil, a maior favela de Porto Príncipe, capital do Haiti
80%
dos moradores da área — cerca de 240 mil pessoas — estão desempregados
7
em cada 10 haitianos sobrevivem com uma renda diária de apenas US$ 2
Pobreza absoluta
Os jornalistas puderam entrar ontem pela manhã em Cité Soleil, a bordo de carros blindados jordanianos. Todos usavam coletes à prova de bala e capacetes. Em Bois Neuf, região recém-ocupada pelas tropas brasileiras, havia uma longa fila de haitianos que esperavam a autorização do posto de controle da Minustah para sair de Cité Soleil. Apontando para os relógios, indicavam em creole, a língua local, que estavam atrasados para o trabalho. Crianças uniformizadas para o colégio também enfrentavam a fila. Todos eram revistados ao passar pelos militares brasileiros.
Por um alto-falante, um porta-voz da missão avisava à população que o objetivo da operação era estabelecer a paz na região. Panfletos com a mesma mensagem também eram entregues pelos soldados, sob um sol escaldante. Questionados pelos jornalistas, os moradores de Cité Soleil diziam que apoiavam a ação da Minustah, mas que ela não poderia se encerrar com as operações militares. “Work (emprego)!”, pediam homens que tentavam se comunicar em inglês com os repórteres. Um deles disse que gostaria de ser “informante” da Minustah, função cujo salário gira em torno de US$ 300 no Haiti — valor bastante alto em um país com grandes desigualdades. Outros pediam investimentos sociais no bairro.
Enquanto isso, as tropas avançavam gradualmente para dentro da favela, onde as condições de higiene são extremamente precárias. Sem eletricidade e saneamento básico, mulheres cozinham nas ruas com fogo aquecido por carvão, ao lado de valas enormes de esgoto a céu aberto. Em Cité Soleil, as casas não possuem banheiros. Nem mesmo a moradia do temido líder da gangue da região, Balony, possuía um — embora contasse com uma boate particular.
No caminho, as crianças interceptavam militares e jornalistas, em busca de água e comida. Uma garotinha, chamada Lucie, pediu para que escrevesse meu nome em sua mão. Escrevi e, em seguida, havia incontáveis mãozinhas para que eu fizesse o mesmo. Lucie me deu a mão e não largou até o final do percurso. Fomos embora com dezenas de pequenos acenando para nós. Com sede e barriga vazia, alguns deles diziam “Mariana”, para demonstrar que aprenderam a pronunciar o meu nome. (MM)JUDICIÁRIO