A cegueira do poderO empresário Oded Grajew conta como a corte petista no governo parou de dizer a verdade ao presidente para se manter no posto
Eliane Brum
Oded Grajew foi o primeiro empresário a se aproximar de Luiz Inácio Lula da Silva. Isso em 1984, quando Lula era ainda um ''sapo barbudo'' na garganta dos endinheirados. Grajew passou então a apresentar dirigentes petistas a uma parcela do empresariado dedicada a preocupações como ''responsabilidade social''. Naquele tempo, Lula ainda estava muito longe de se tornar um fator de estabilidade para mercados e rentistas locais ou estrangeiros.
Grajew foi também o primeiro amigo íntimo de Lula a deixar o governo, em novembro de 2003. Assessor especial da Presidência, ele buscava a participação da iniciativa privada no Fome Zero, então a principal bandeira do governo na área social. O empresário saiu, mas manteve o apoio.
Hoje Grajew relembra as primeiras discussões sobre se o PT devia ou não aceitar dinheiro de empresários para o financiamento das campanhas. Ele era contra, assim como Lula, que dizia: ''Olha, pessoal, depois que surgiram essas igrejas, não me venham dizer que não é possível arrecadar dinheiro nas camadas mais populares''. Referia-se ao surgimento das neopentecostais, nos anos 80. Outros tempos.
''Triste, perplexo e com raiva'' diante das evidências de corrupção no PT e no governo que ajudou a eleger, Grajew recebeu ÉPOCA no início de agosto, na sala da presidência do Instituto Ethos, em São Paulo. Na entrevista, revelou lembranças da corte petista em Brasília e suas impressões sobre Lula e o poder
ODED GRAJEW
Dados pessoais
Nascido em Israel, casado, 61 anos
Formação
Engenheiro eletricista pela USP, com pós-graduação em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas
Carreira
Criou a Grow Jogos e Brinquedos (1972), participou da fundação do PNBE (1989) e da Fundação Abrinq (1990), é o atual presidente do Instituto Ethos
Fotos: Maurilo Clareto/ÉPOCA
ÉPOCA -
Doutor Oded...Oded Grajew - Não me chame de doutor. Doutor é coisa de Brasília. Doutor Delúbio, doutor Marcos Valério... Impressionante essa coisa de doutor em Brasília. Essa falsidade, esse mundo de aparências, de mesuras. Hoje eu vejo que realmente não foi legal a capital mudar do Rio de Janeiro para lá. Ficar longe de tudo, do povo. Isso tem influência no que aconteceu com o país. Gira tanta coisa em torno do poder, tantos interesses, que uma pessoa mais vulnerável - ideologicamente, psicologicamente e até financeiramente - dança.
ÉPOCA -
Ao que o senhor assistiu no Planalto que o impressionou tanto?Grajew - Às mudanças nas relações que começaram a se estabelecer, mesmo nas conversas mais íntimas. Velhos amigos, companheiros que antes tratavam Lula por você e passaram a chamá-lo de presidente - e de se chamar por ministro. Aí passaram a não falar mais as coisas, a ter medo de fazer críticas, a se transformar diante do Lula. O que mais me chocou foi essa corte que se constituiu, onde as coisas não são faladas. Um dirigente, em qualquer lugar, mesmo numa empresa, se não tem canal de comunicação, fica sem feedback, sem crítica.
ÉPOCA - Foi assim desde o começo?Grajew - Desde o começo. Havia pouco espaço para intimidade, para uma conversa mais franca, conselho, crítica. É um jogo de vaidades. Eu vi lá briga de sala, briga de tudo quanto é jeito, virou o poder pelo poder. Em Brasília, aonde você vai é bajulado. A pessoa menos preparada começa a acreditar que é o máximo, que é bonita, que é inteligente. E que não tem limites. Foi uma enorme mudança de clima. Começaram a gostar de roupa bonita. Os carros, as gravatas, os jatinhos. É despreparo - despreparo para o poder.
ÉPOCA - O senhor recebeu alguma proposta indecente, de oferta de prostitutas a outras coisas?Grajew - Não, mas eu sentia que tinha a porta aberta. Se eu pedisse qualquer coisa, poderia ter. Dava para sentir que havia um clima de oferecimento. Assim como você sabe quando uma mulher está se oferecendo. Nunca chega direto, mas dá sinais. A corrupção nunca começa com uma coisa grande. Os corruptores vão tateando. Quando o cara aceita isso, então eles oferecem aquilo.
''Em Brasília, aonde você vai é bajulado. A pessoa menos preparada começa a acreditar que é o máximo, que é bonita, que é inteligente. Isso é despreparo para o poder''
ÉPOCA - O Lula ficou isolado?Grajew - Totalmente. Outra coisa que me chocou muito, e ao Lula também, é a quantidade de gente pedindo emprego. O Lula dizia: ''Nós não ganhamos a eleição para isso. As pessoas não entenderam''. Aí você pensava que o cara era companheiro, mas ele queria era emprego. Foi uma pressão tremenda. E, como o Lula exige resultados e havia esse distanciamento, começou a existir certo medo. Medo de perder o emprego, em todos os níveis, até de ministros. Se eu chego à empresa e digo que neste mês temos de fazer uma coisa custe o que custar, o cara pensa que, se não fizer, vai perder o emprego. Ele vai ter medo e vai fazer de qualquer maneira. Emprego, nesse caso, significa poder, carreira política. Não só no governo, mas no partido isso também mudou. O que antes era ideal, militância, virou meio de vida, emprego. Isso significa que até o grau de liberdade, a coragem de correr riscos, diminui muito quando você depende disso para viver. Até o Lula percebeu que as pessoas não estavam mais vendo aquilo como um projeto político para mudar o país, mas como um projeto de carreira profissional. Por isso hoje se vê tanta gente defendendo o indefensável. Estão defendendo seu emprego.
ÉPOCA - O que o senhor está dizendo é que as pessoas que precisavam dizer a verdade para o presidente pararam de dizer a verdade...Grajew - Pararam, pararam.
ÉPOCA - Mas o Lula não se deu conta disso? Ou ele mudou também?Grajew - O Lula tem um jeito que é assim. Ele dá oportunidade para as pessoas falarem. Mas é um cara que tem dificuldade de pedir. Então ele não chega para o cara e diz: ''Fala para mim o que você está achando''. Se a pessoa não toma a iniciativa, ele não pede. Eu acho que ele deveria abrir mais espaço, mas esse é o jeito dele. Ele acha que se o cara parou de falar é porque não tinha nada para dizer. Mas eu via que as pessoas falavam fora da sala e quando entravam não falavam mais nada. Muitas vezes eu provoquei: ''Você acabou de falar... Não foi isso que você falou lá fora''. Aí era eu que tinha de falar o que o cara tinha dito antes de entrar.
ÉPOCA - Isso acontecia com ministros?Grajew - Com todos. Outra característica do Lula é que ele tem dificuldade de se despedir das pessoas, de mandar embora. Fica com pena. Ele fala: ''Bom, eu não gosto do que essa pessoa está fazendo hoje, mas ele já foi tanto para mim lá atrás''. Tem um bom coração. Para mandar o Zé Dirceu embora, deve ter sido... muito.
ÉPOCA - O senhor também teve dificuldades para falar com o presidente?Grajew - Eu nunca. Eu, o Betto (o dominicano Frei Betto), o Ricardo Kotscho (ex-secretário de Comunicação do governo). Nós três éramos os únicos a falar a verdade para o Lula.
ÉPOCA - Justamente os três que deixaram o governo, não é?Grajew - Cada um tinha sua razão. Eu sei que contraria a lógica da maioria das pessoas. As pessoas não entendem como se deixa uma posição assim por gostar da mulher, mas eu saí porque tinha saudade da minha mulher. De meus amigos, de ir ao cinema, ler um livro. Preciso disso. E eu não gostei de Brasília. E tenho zero de deslumbramento com o poder. Já tinha construído a base, podia continuar meu trabalho daqui (São Paulo).
ÉPOCA - Conheceu Marcos Valério?Grajew - Nunca vi esse cara por lá, vi a fotografia agora.
ÉPOCA - O Lula sabia da corrupção?Grajew - Acho que não sabia. Espero. O que eu conheço, o que eu conheci do Lula... se ele soubesse, teria agido. Não consigo acreditar que ele sabia pela história que eu tive com ele (mostra as fotos com Lula sobre a mesa). O Lula tem um estilo que é assim. Pode ser bom, pode ser ruim, mas eu via o Lula dizer: ''Zé (Dirceu), essa lei é muito importante. Você tem de fazer com que ela passe''. Aí, depois, o Zé dizia: ''Passou''. Mas o Lula não perguntava como ele tinha conseguido.
ÉPOCA - Mas o Lula não é ingênuo, não é?Grajew - Mas ele tem essa dificuldade com separações de que eu já falei. Tem medo de se decepcionar, de encarar uma situação em que pode ser que se decepcione. Prefere nem saber.
ÉPOCA - Mas ele não sabia, por exemplo, desse negócio que o filho dele, o Fábio, fez com a Telemar?Grajew - Vou falar pelo que eu conheço. Os filhos ficaram em São Paulo. Ele estava lá, engolido pela Presidência. Acho que ele se viu diante do fato consumado. Não acredito que o Lula tenha movido uma palha para isso acontecer. Quando os filhos do Lula começaram a crescer, a gente tinha bastante intimidade. Eu era praticamente o único empresário com quem ele tinha intimidade. Ele podia pedir um estágio, um emprego para um filho. E nunca me pediu absolutamente nada. Esse é o testemunho que posso dar.
ÉPOCA - Se o Lula for candidato à reeleição, o senhor vai votar nele?Grajew - Com o quadro que existe hoje, dos candidatos de hoje, votaria nele de novo. Por ele, por tudo o que conheci no passado, com as informações que tenho hoje, votaria nele. Eu gosto dele.
''A direção do partido não fazia nenhuma crítica ao governo. Não é preciso ofender o Lula, mas tem de se ter espírito crítico. Se (o Lula) dizia que o sol nasceu à meia-noite, concordavam. Era um amém completo''
ÉPOCA - O senhor, que foi o grande avalista de Lula no meio empresarial desde a eleição de 1989, o que sente hoje?
Grajew - Uma enorme tristeza. Perplexidade, às vezes raiva.
ÉPOCA - O que dá mais raiva?Grajew - Raiva dessas pessoas, Delúbio... essa burocracia do PT que frustrou tanta gente. Uma coisa que me marcou muito quando viajava com o Lula pelos lugares mais pobres do Brasil era a esperança das pessoas. Eles traíram essas pessoas.
ÉPOCA - Como recebeu as notícias?Grajew - Eu ainda estou tentando entender. O que aconteceu está claro para todo mundo, mas ainda não consegui entender como chegaram a esse ponto. Eu estava viajando, ligava a internet e falava para minha mulher: ''Não é possível''. Tem gente que me liga, do exterior, e diz: ''Deve ser coisa da imprensa''. Eu digo: ''Ó, meu amigo, infelizmente é isso mesmo''.
ÉPOCA - O senhor, como muita gente, não vai ter tempo para construir outro projeto político. O que isso significa?Grajew - Olha, o que eu vou lhe dizer agora são palavras de Lula: ''Nós temos uma enorme responsabilidade no governo. Se a gente fracassar, a esquerda vai levar mais 30, 40 anos para voltar ao poder no Brasil''.
ÉPOCA - Fracassou?Grajew - É muito simbólico trocar o Olívio Dutra, que representa uma visão de PT, de país, ainda que a contragosto, por um Severino Cavalcanti, um cara colocado pelo Severino (Márcio Fortes, atual ministro de Cidades). É muito simbólico. Não posso dizer que fracassou porque fico na esperança de uma reviravolta. Está nas mãos do Lula.
ÉPOCA - Mas mesmo antes da corrupção, pensando na mudança social que se esperava, este governo já não havia decepcionado o senhor?Grajew - A maior marca do Brasil é a desigualdade. A maior bandeira deste governo deveria ser o combate à desigualdade. Essa é a minha divergência. O governo sempre se pautou pelo crescimento, crescimento, crescimento. Sempre mostrei as curvas...
O Brasil pode crescer à vontade, como já cresceu muito, que a curva da desigualdade não se mexe. Então há um erro na prioridade que o governo está dando. Mas lembra o que se falava quando surgiu a Aids? Que saudade das doenças venéreas... Pois é. Que saudade do tempo em que as divergências eram sobre a política econômica, social...
ÉPOCA - E agora, fazer o quê?Grajew -
O que temos de perguntar também é o que estavam fazendo o Tribunal de Contas, a Abin, a Receita Federal, a CGU, o TSE, o MP e todas essas instituições que são pagas com recursos públicos para prevenir ou evitar o que está acontecendo hoje. Se não fosse um flagrante particular e uma entrevista à imprensa, nós não saberíamos da corrupção até hoje. Como é possível nada ter sido detectado por tanto tempo? É preciso também advertir que essa reforma política, que todo mundo fala, é jogo de cena. Sem uma grande pressão da sociedade, essa reforma não vai acontecer. Lá no Congresso não existe camicase. Camicase só existe no Iraque, em Londres, na Palestina. Se passar uma profunda reforma política, 90% daquele Congresso não se reelege. O que eles vão fazer é um simulacro de reforma política. Ah, vamos acabar com os showmícios... Assim como, se não acabar com o financiamento privado de campanha, é melhor esquecer. Este sistema de hoje faz com que quem está eleito esteja lá para satisfazer quem o financiou. Não vai haver política pública para pobre, mas retorno para quem investiu.ÉPOCA - Mas o PT jurou que não ia ser igual aos outros, mesmo nesse sistema...Grajew - O PT jurou. Ele ainda tem uma última chance, agora em setembro, nas eleições para presidente do partido. Se as pessoas votarem na situação, acharem que está tudo bem, é isso mesmo, aí acabou o PT, aquele PT.
ÉPOCA - O senhor vai votar em quem para presidente do partido?Grajew - No Plínio (de Arruda Sampaio). Não tenho nada pessoal contra o Tarso Genro, mas o PT precisa voltar às origens, recuperar a capacidade de crítica. A direção do partido não fazia nenhuma crítica ao governo. Não é preciso ofender o Lula, mas ter crítica. Se (o Lula) dizia que o sol nasceu à meia-noite, concordavam. Era um amém completo.
ÉPOCA - O senhor tem pesadelos com o que está acontecendo?Grajew - Eu estou dentro de um pesadelo. Quero acordar. Vou acordar e então sonhar que falei com você. Isso aqui não é real, não está acontecendo.