Publicado Em 01/05 - 15h36
Quais os desafios da venda da Embraer para a Boeing?
A transferência do controle acionário parece irreversível. Espera-se que o governo brasileiro negocie contrapartidas tecnológicas e industriais
Por Marco Aurélio Cabral Pinto
A Embraer (1969) é fruto de geração de brasileiros que, no devir do pós-guerra, perceberam a importância do poder aéreo para a conquista de soberania sobre território imenso. Soberania enquanto grau de autodeterminação da sociedade brasileira.
É possível se afirmar que a literatura sobre a Embraer trata majoritariamente do período pós-privatização, principalmente a partir de 1998[1], quando a Embraer obteve primeiros pedidos de compra significativos para a família de jatos E-Jets E170/175/190 e 195. Esta literatura pode ser dividida entre (i) temas de interesse da administração de empresas – logística de suprimentos, marketing, organizações, projeto de produtos, finanças etc.; e (ii) temas de interesse da microeconomia – sistema de inovação, comércio exterior, conteúdo nacional, história de negócios etc.
Muito pouco ou quase nada tem sido escrito a respeito da Embraer como parte do tabuleiro da geopolítica internacional. Menos ainda no período pós-Trump.
O objetivo do presente trabalho é dar suporte às decisões de Estado que resultarão no acordo para transferência do controle do segmento comercial da Embraer para Boeing mediante oferta pública de compra de ações a se realizar provavelmente em 2019.
BNDES e direitos especiais
A participação do Estado brasileiro no capital da Embraer encontra-se gerida pelo BNDES e monta 5,37% do capital votante, situando-se entre os cinco maiores acionistas da empresa. Além do poder como articulador político com os protagonistas da assembleia de acionistas da Embraer, o BNDES ainda proveu recursos que somam cerca de 20 bilhões de dólares em financiamento às exportações de aeronaves entre 1997 e 2017.
Além da participação indireta como acionista, o Estado brasileiro dispõe de ação de classe especial (golden share). Este instrumento permite ao Estado poder de veto sobre questões que afetem a vinculação tecnológico-industrial da empresa com o território brasileiro.
A golden share é instrumento societário inventado pelas finanças inglesas entre 1979 e 1983 para contornar críticas feitas ao programa de privatizações implantado no governo M. Thatcher. Interesses contrários à época percebiam riscos de enfraquecimento do Estado e de descontinuidade de empresas de tecnologias estratégicas para a soberania inglesa.
Na França, denominou-se por action spécifique, na Itália poteri speciali, na Alemanha goldene Aktie Spezialaktie, na Bélgica action spécifique, em Portugal acções preferenciais e na Espanha regime administrativo de controle específico. Não importa a denominação local, a inovação jurídica permitiu aos governos confiarem a grupos econômicos nacionais ativos estratégicos para a manutenção da soberania. A condição é que o controle sobre estes ativos permaneçam em mãos de residentes.
Embraer, uma empresa cobiçada
A Embraer é atualmente uma organização que combina competências tecnológicas com grande eficácia comercial. Citam-se como fatores cruciais de sucesso documentado na literatura sobre a empresa: (i) inteligência de mercado e rede internacional de vendas e atendimento ao cliente; (ii) tecnologia de projeto de aviões, utilizando-se técnicas de projeto digital em rede com integradores de primeiro nível; (iii) técnicas de fabricação, incluindo-se arranjos físicos em células, fornecimento contínuo, controle de processos etc. A Embraer inovou em técnicas para distribuição das centenas de quilômetros de fios e cabos elétricos dentro das aeronaves, entre outras; e (iv) suporte do Estado brasileiro mediante subsídios tecnológicos e condições de financiamento (prazos e taxas) às vendas.
No entanto, a cadeia produtiva da Embraer no Brasil pode ser considerada muito pequena em comparação ao potencial de desenvolvimento das competências locais. Aliam-se pequeno porte relativo das cerca de 50 firmas nacionais dedicadas a segmentos industriais aeronáuticos de baixo valor adicionado. Fundamentalmente, fornecimento de peças usinadas com conformidade aeronáutica.
O índice de nacionalização dos aviões comerciais da Embraer não supera, retirado valor adicionado como margem de venda, os 5% do valor total de cada unidade [Montoro (2009)[5]]. Por esta razão, a Embraer atua no segmento de defesa como fonte de inovação, mas financia atividades através do sucesso comercial. No entanto, até hoje atuou em uma ilha, isolada no Atlântico Sul e distante dos complexos industriais-militares europeu e norte-americano.
A frustrada tentativa dos franceses em 1999
Em outubro de 1999, consórcio formado por empresas do complexo industrial-tecnológico francês (Aérospatiale Matra, Dassault Aviation, Thomson-CSF e Snecma) adquiriu 20% do capital da Embraer.
À ocasião, o grupo Bozzano-Simonsen+Prevo+Sistel havia adquirido o controle da Embraer apenas cinco anos antes. Dado que a Aeronáutica não foi consultada sobre a transação, a despeito da existência da golden share, foi destacado o Brigadeiro W. Brauer para conduzir investigações confidenciais sobre o curso da venda.
No relatório confidencial da Aeronáutica comprovou-se, mediante exame de documentos, a intenção do grupo Bozzano Simonsen de vender o controle acionário da empresa para os franceses.
Em parecer emitido em janeiro de 2000 pela AGU manteve-se a restrição pré-existente que limitava ao máximo de 40% a participação do capital estrangeiro na fabricante de aeronaves brasileira.
A negociação com o governo federal à época resultou na interrupção das tentativas francesas de adquirir o controle da Embraer, não obstante não se tenha imposto judicialmente cláusula de direitos especiais. Nestes termos, a negociação dos 20% de participação foi acatada.
Com a reestruturação societária de 2006, ao mesmo tempo em que se permitiu a saída do controlador, diminuiu-se ainda mais a influência das firmas francesas sobre as decisões da empresa.
A reestruturação societária de 2006: quem vendeu a Embraer?
Em 2006, a Embraer aprofundou inserção nos mercados de capitais, mediante “pulverização acionária”.
Para que o limite de 40% de participação de estrangeiros fosse respeitado, definiu-se que cada acionista só poderia acumular 5% dos votos nas assembleias e que os estrangeiros, em conjunto, não poderiam ultrapassar 40% dos votos. Independentemente da quantidade de ações que cada grupo detivesse.
Às vésperas do anúncio de intenção de compra da Embraer pela Boeing em 2018, os estrangeiros detinham cerca de 85% do capital total da companhia. Na ocasião, ações da empresa encontravam-se cotadas em torno de R$16,00 o lote. Nos dias que seguiram houve rápida valorização de cerca de 30% sobre o valor financeiro investido.
Naturalmente, é esperado que o poder de negociação da diretoria profissional se esgote em situação tal como a de venda da empresa. Torna-se necessário contatar quem representa os donos. Ocorre que bancos que administram fundos de investimento possuem mandato dos acionistas (quotistas) para deliberações em assembleias desde 2006.
Portanto, o anterior “Acordo de Acionistas” foi na prática depois de 2006 substituído pelo “consenso” entre alguns poucos bancos majoritariamente norte-americanos. Há hoje interesse destes no aproveitamento do prêmio que a Boeing irá pagar para fechamento do capital (100% das ações).
A venda da Embraer para Boeing
Em julho de 2017, alguns meses antes do comunicado conjunto Boeing/Embraer, o ministro da Fazenda, H. Meirelles, encaminhou pedido de urgência ao TCU para consulta sobre a possibilidade de a União se desfazer dos direitos especiais (golden shares) mantidos na Eletrobras, Vale, Embraer e IRB[6].
Em parecer emitido pela AGU em 2000, a proibição de venda a estrangeiros do controle da firma só poderia ser retirada por lei específica posterior ou se "o Presidente da República, por razões de Estado, venha a retirar a exigência referente à limitação do capital estrangeiro".
A Boeing pretende adquirir até 100% da Embraer mediante oferta de compra em bolsas de valores. Pelo desenho apresentado pelos bancos que assessoram a Boeing, o segmento de defesa poderia ser segregado em subsidiária específica. Nesta subsidiária o governo brasileiro poderia manter golden share.
Qual o valor da Embraer para a Boeing?
Em outubro de 2017, a Airbus e a Bombardier anunciaram sociedade para programa de jatos comerciais CSeries. Pelo acordo, o grupo europeu assumiu fatia de 50,01% na sociedade. Este acontecimento, que sacudiu a dinâmica do setor, permitiu a formação de maioria entre os controladores da Boeing para a aquisição da Embraer.
O valor da Embraer para a Boeing é, no curto prazo, majoritariamente comercial. Conforme se pode perceber na Figura 1, a Boeing concentra processos de fabricação nos EUA, dispondo-se de pequena estrutura de fabricação internacional[7].
Por esta razão, a perspectiva de manutenção espontânea de processos de fabricação no Brasil é pequena, com diminuição de postos de trabalho qualificados e extinção do ecossistema de firmas que gravitam no entorno dos desenvolvimentos tecnológicos da Embraer.
Já do ponto de vista comercial, a capacidade da Embraer em identificar oportunidades mercadológicas e em desenhar produtos que antecipem necessidades não deve ser desconstruída no curto prazo.
Da mesma maneira, a expedição comercial de aeronaves a partir do Brasil pode extrair valor para Boeing por meio de financiamentos e subsídios do Estado brasileiro.
Conclusões
A venda da Embraer para a Boeing parece evento irreversível, diante da recente fusão entre a Bombardier e Airbus. Espera-se que o governo brasileiro negocie contrapartidas tecnológicas e industriais que permitam ao Brasil dispor de Base Industrial de Defesa e, ao mesmo tempo, participar de política de segurança. A BID deve apoiar a operacionalização das forças armadas e participar de programas tecnológicos definidos a partir de estratégia nacional de defesa. Para isso, o Brasil terá que enfrentar debate sobre soberania e preço que se deseja pagar por isso.
Fonte: REVISTA CARTA CAPITAL, via NOTIMP
http://www.fab.mil.br/notimp#n133682
abs.
arcanjo