Pedro, essas revisões dos números já aconteciam mesmo, nunca neguei isso. O ponto que eu abordei é que, com o aumento dos dados e das informações de setores causado pela nova metodologia, o IBGE tende a mudar mais os números de uma revisão para a outra. Essa é a impressão que eu tenho ao acompanhar as revisões. É só especulação minha mesmo.
Quanto ao fato do crescimento subir na próxima revisão, não sou quem aposta. O Mantega (que deve ter informações privilegiadas) e o Delfim Neto apostam no aumento da taxa.
Alguns economistas defendem que o IBGE usa um método apropriado para um país desenvolvido e muito restrito para a nossa realidade. O fato de para o IBGE ser difícil ler o setor informal é algo bem conhecido. O problema é quando o IBGE não consegue ler algo que a PNAD detectou! A PNAD indica um aumento de 8% por ano na renda do brasileiro.
Um bolo para ser entendido
Para que serve o Bolsa Família? Para melhorar a qualidade de vida dos pobres. Na hora de comer, basicamente. Mas isso foi bem no começo. Agora, os recursos do programa também ajudam a comprar eletrodomésticos e móveis a prazo, como informa o Ministério do Desenvolvimento Social em seu site (reproduzindo conclusões de estudo realizado pela economista Rosa Maria Marques, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Se isso estimula ou inibe o desejável caminhar daquelas pessoas em direção a eventuais portas de saída do programa, para que cuidem das próprias vidas com desenvoltura menos condicionada ao amparo governamental, não se sabe - como também não se sabe até que ponto a incursão da clientela do Bolsa Família pelas praias do consumo poderá contribuir para fabricantes de eletrodomésticos e móveis aumentarem a produção e empregarem mais gente de modo significativo, como seria do interesse geral. Em qualquer hipótese, pode estar nascendo aí uma nova questão para complicar a vida de quem pretenda compreender, ou deva explicar, o estado presente e os possíveis rumos da distribuição de renda no Brasil. O aumento do salário mínimo, de R$ 380 para R$ 415, a partir deste mês, e as regras de sua atualização para os próximos anos, combinadas entre o governo e sindicatos no ano passado, acrescentam outras variáveis a um quadro de indagações crescentes.
Alguns avanços já são melhor mensurados e entendidos. Estudo realizado por economistas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD concluiu que, sim, programas de transferência de renda conduzidos no Brasil, México e Chile têm impacto positivo na redução da desigualdade, como se viu entre meados dos anos 1990 e meados dos anos 2000. Os programas brasileiro (Bolsa Família) e mexicano apresentaram os resultados mais expressivos em avaliações feitas pelo critério do índice de Gini (no qual 0 corresponde a completa igualdade e 1 a completa desigualda-de). Enquanto a redução na desigualdade alcançada pelo Chile Solidário alterou o índice em apenas 0,1 ponto, no México e no Brasil a desigualdade caiu 2,7 pontos, pela mesma medida. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD, do IBGE, correm na mesma direção. Em 2004, com 0,5717, o índice desceu ao nível mais baixo desde 1992 (0,5832) e continuou a cair em 2005 e 2006, quando chegou a 0,5620.
Certo é que próximas pesquisas de orçamentos familiares (o IBGE já pensa na sua, depois da que realizou em 2002/2003, além da ampliação, já prevista, da PNAD para quesitos de consumo) devem ganhar importância histórica: serão as primeiras a mostrar o alcance de uma virada sem precedentes nos hábitos de consumo dos brasileiros, essa da qual todos os dias - principalmente desde o ano passado, mas com origens já insinuadas a partir de 2004 - capta-se um novo sinal, das vendas de carros às de eletrodomésticos, das cestas de alimentação que passam a incluir ítens antes considerados supérfluos às compras de material de construção muitas vezes adiadas.
São mudanças, essas que se desvendam com clareza crescente, que, pode-se imaginar, também desenham o perfil de um brasileiro consciente de possibilidades, em matéria de bem-estar, que tendem a se tornar exigências difíceis de ignorar na formulação de políticas de governo, principalmente aquelas esperadas por quem, nos estratos inferiores da escala de rendas, provou de melhorias antes inimagináveis - desde as menores rendas que se complementam com o Bolsa Família até bem mais em cima, passando pelo salário-mínimo e suas vizinhanças (embora a partir daí algumas análises encontrem uma certa contenção de movimento).
Ao que tudo indica, dizem analistas também - o que pode contribuir para um certo sossego de governantes e políticos em geral - este é um ciclo de aumento de renda e de consumo de forte sustentabilidade, feitas as ressalvas de praxe quanto a eventuais adversidades infladas em paragens externas, fora dos controles nacionais. Tem-se, então, uma atmosfera de progresso que, junto com o natural espraiar da sensação de maior bem-estar, tende a sugerir, como contrapartida menos agradável ao paladar de quem deve satisfações ao eleitorado, mais e mais questões a respeito da qualidade da distribuição social desse benefício de natureza entre material e psicológica.
Algumas premissas já estão colocadas, e são de indiscutível aplicação universal. Será conveniente lembrar, por exemplo, que se os tempos são de bonança neste Brasil de indicadores econômicos cintilantes é porque, em larga medida, mais pessoas estão podendo fazer escolhas que antes não podiam fazer. Quando se compra - fazendo girar a roda do consumo que hoje move com força a economia brasileira - escolhe-se. Subindo a renda, sobem junto as possibilidades de escolha. A começar pelos beneficiários do Bolsa Família. É intuitivo.
Outro traço típico do regime de mercados livres (ainda que imperfeitos) é a desigualdade de renda (entre outras). Pode-se diminui-la, mas não extingüi-la. Porque ela é, basicamente, a conseqüência da distribuição desigual de capacidades de produzir. Por outro ângulo: se o sistema é fundamentado na liberdade de contratos, está criado o ambiente para a multiplicação de trocas voluntárias e a ampliação da divisão do trabalho. A propriedade individual dos bens intercambiados e dos fatores que os produzem completam as condições necessárias para a existência do sistema capitalista. "É fácil compreender que esse sistema deve incessantemente gerar distribuições desiguais de renda e riqueza e também que essas distribuições não poderão ser enquadradas em nenhum padrão duradouro".
Para onde vai a distribuição de renda no Brasil, em meio a essas inelutáveis incertezas? O que poderá (ainda) vir pelas mãos do governo? E, particularmente, pelas decisões de empresas e escolhas das pessoas, em diferentes mercados, inclusive o de trabalho?
A inflação, que alimentava e era alimentada por desigualdades sem conta - abstração feita da despreocupada contabilidade de quem podia se defender com aplicações financeiras - anda de crista baixa já há bom tempo, tão mansa que desqualifica até as mais otimistas projeções, como acaba de fazer o índice de preços ao consumidor semanal, da Fundação Getúlio Vargas, que ficou num desconcertante zero no fechamento de fevereiro, fazendo pouco dos analistas, que previam aumento entre 0,05 e 0,15%. Restaram outras razões, que talvez se pudessem chamar de "estruturais", para explicar os movimentos de preços e aquelas, de conjuntura nacional ou estrangeira, que estão aí, de certo modo, para justificar a existência de bancos centrais, inclusive o brasileiro, e suas políticas monetárias.
Mais importante, contudo, nesta hora brasileira de consumo expandido em ritmo que faz inveja até a americano, é que: (1) a euforia compradora não está contribuindo com força proporcional para engordar os índices de preços; (2) isso sugere que não há pressões exacerbadas sobre a oferta, nem expectativas de que venham a existir; (3) o que provavelmente tem a ver com o ritmo também acelerado dos investimentos, internos e vindos de fora; (4) que são feitos, evidentemente, de olhos postos no futuro, o que significa confiança na continuidade do crescimento da demanda interna (o real valorizado só não tem graça para exportadores, mas também não faltam aqueles que conseguem vender lá fora, do mesmo jeito).
O brasileiro, individualmente, compartilha desse otimismo já há algum tempo, como se vê nos resultados da pesquisa realizada pelo instituto Gallup em 130 países, divulgados em 2006. Numa escala de 0 a 10, o nível de satisfação pela vida, ou "felicidade", declarado pelos brasileiros foi de 6,61. Os dinamarqueses seriam os mais "felizes" do mundo, com 7,98, acima dos americanos (7,09). O Chad apareceu em último lugar, com 3,36. Na projeção de "felicidade" esperada para 2011, a situação se inverte: os brasileiros são os campeões do otimismo, com 8,24, e os dinamarqueses ficam em segundo lugar, com 7,86.
Uma explicação para esse elevado estado de ânimo pode estar nos números da PNAD-2006, a mais recente, processados pelo Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas - CSP/FGV. No período 2005/2006, a variação acumulada da renda domiciliar per capita, para todas as faixas, excluindo o crescimento populacional, chegou a opulentos 16,4%. Para os 50% mais pobres, o aumento foi ainda maior, de 21,6%. Para os 40% médios, 15,9%. Para os 10% mais ricos, 15,3%. Aqueles 16,4% são quase 4,3 vezes maiores que o PIB per capita acumulado no período, de 3,84%.
Persistem, contudo, espaços cinzentos nessa história de pobreza, transferências de renda e desigualdades - e, por extensão, na própria trajetória do PIB brasileiro, que é, afinal, o grande bolo que se reparte assim ou assado. Debruçado sobre essas questões há anos, com luzes de competência que o qualificam como um dos maiores especialistas brasileiros no assunto, Marcelo Côrtes Neri, chefe do CPS/FGV, continua procurando respostas para esta pergunta: O Brasil está mais para um perfil chinês ou haitiano?
Pelo lado que se poderia chamar de "chinês", tem-se a variação de renda informada pela PNAD, que incorpora os mesmos 8% de crescimento anual dos tempos do "milagre". Pelo lado "haitiano", o que impressiona é o PIB de expansão diminuta.
Como se explica essa discrepância entre dois indicadores "gêmeos", que deveriam apontar praticamente na mesma direção? Neri imagina possibilidades: ou a economia brasileira está crescendo mais do que o PIB indica, ou a pobreza não está caindo tanto quanto a PNAD informa: de 35,2% no princípio dos anos 1990, a presença da miséria no Brasil oscilou em torno da média de 28% da população até 2003 e começou a cair significativamente a partir de 2004 (25,38%), com 22,77% em 2005 e 19,31% em 2006.
Talvez se pudesse explicar a disparidade pelas diferenças de itens que entram na PNAD, fortemente concentrada em salários (embora as perguntas feitas às pessoas pesquisadas alcancem diversas fontes possíveis de renda) e aqueles exclusivos do PIB (como lucros retidos e gastos de consumo não associados à disponibilidade de renda). "O fato é que uma série de indicadores, como emprego, a valorização do Ibovespa, a expansão do crédito, as vendas no varejo, mostram um país não haitiano", diz Neri, e, assim, conferem aos números da PNAD um significado que seria mais próximo da realidade hoje vivida. Ele recomenda, contudo, que não se fechem raciocínios nessa direção, ainda que 2007 e mesmo 2008 devam apresentar, ao que tudo indica, cenários também bastante positivos.
João Sicsú, diretor de estudos macroeconômicos do Ipea e professor do Instituto de Economia da UFRJ, vai aos números do PIB e vê traços importantes de desigualdade irresolvida, e crescente. Em 1995, argumenta, o total pago na forma de salários como proporção do PIB era superior a 35% e as rendas do capital ficavam um pouco acima de 31%. Em 2005 a situação se inverte: os salários comparecem com 31/% e as rendas do capital saltam para quase 36%.
"Outra forma de se ver a desigualdade de participação dos salários e do capital no PIB", diz Sicsú, "é pela distribuição de gastos governamentais, com o pagamento de juros disparado na frente de educação e saúde, por exemplo". Quando o PIB cresce, é verdade, os salários aumentam sua participação. "A questão é que os lucros e os juros têm aumentado sua participação de forma mais rápida, por causa da concentração da produção, dos ganhos do sistema financeiro". Sicsú só vê uma saída: uma política firme e eficaz de participação dos trabalhadores nos lucros, sem a timidez implícita na legislação hoje existente.
Se não for assim, acredita o diretor do Ipea, a desigualdade de renda pode até estar diminuindo, como de fato está, mas isso acontece de um modo desconjuntado: os que estão em baixo sobem (o que Sicsú, naturalmente, acha bom), mas os que estão em cima continuam parados, ou quase isso. E, então, cai a participação dos salários na composição do PIB.
Faltaria também, segundo Sicsú, dar um jeito melhor em outra distribuição, a da força de trabalho ela mesma, de maneira que pudesse ser maior a presença de profissionais de saúde e educação. Aumentando-se assim a oferta desses trabalhadores à disposição da sociedade, também se iria dando pavimentação consistente aos caminhos para uma distribuição de oportunidades mais equânime.
Neri examina a renda do trabalho (renda familiar per capita média) com a atenção dirigida para a recuperação havida de 2003 para cá, depois da forte redução iniciada em 1997.Conforme os números da PNAD, houve um aumento de R$ 312 ,85 em 2003 para R$ 372,07 em 2006, ou seja, um crescimento de 19,2%, no total, e de 9,1% só no último ano, descontado o crescimento populacional. Com este detalhe: já se recuperaram as perdas, e agora o acréscimo é efetivo. Segundo Neri, está aí delineada, e incluindo 2007, uma trajetória de crescimento sustentável da renda, considerado o conjunto de indicadores atuais. O emprego não fica atrás, com a criação provável de 10 milhões de postos de trabalho em quatro anos, até 2007.
Neri recomenda que não se esqueça da presença dos que trabalham por conta-própria, um contingente importante, cujo perfil meio híbrido, com um pé na massa de salários e outro no capital, pode tirar clareza ou mesmo substância às análises de composição estrutural do PIB. Mais importante, porém, é que se deve a eles, particularmente, o forte crescimento no consumo de "bens de produtores", como computador, internet e celular. Neri fala em "signos trabalhistas", como esses, mais o número crescente de empregos com carteira assinada e o acesso a cursos superiores, que funcionam como indicadores antecedentes de mudanças importantes. Tudo, ainda, "em níveis bastante baixos, uma foto ruim, mas já diferente que a de três ou quatro anos atrás". Enfim, "são símbolos de uma sociedade em que pode estar havendo uma melhoria da capacidade de trabalho".
Uma conclusão plausível parece ser a de que ainda falta, na discussão dos rumos das relações entre crescimento e renda - e consumo, por extensão - uma base mais clara de inter-relações de dados e seus desdobramentos para o conjunto da economia. Compreende-se. Fatos novos, de conexão nem sempre óbvia, estão se acumulando rapidamente, num espaço de tempo relativamente curto. Além disso, apesar da boa qualidade dos indicadores fundamentais, ainda é preciso resolver questões não menos essenciais, como a da previdência social, enquistada no cerne de desequilíbrios fiscais pendentes de equacionamento duradouro.
Por isso mesmo, o aumento do salário mínimo de R$ 380 para R$ 415 repõe na mesa uma antiga pergunta: Qual é o impacto da elevação desse piso de remuneração sobre a distribuição de renda, a redução da pobreza extrema e as contas públicas, tendo-se em mente que aposentadorias também tomam o mínimo como piso?
O economista Fábio Giambiagi admite que o aumento do salário mínimo alavanca a demanda. "Ao mesmo tempo, porém, aumenta a despesa da previdência social em bases permanentes, o que pode ser absorvido no curto prazo, num contexto de crescimento, mas depois a trajetória da curva é jogada sistematicamente para cima, no sentido de que uma das variáveis se torna rígida."
O impasse tem saída, segundo Giambiagi, sem que se desrespeite o combinado entre o governo e sindicatos, de reajuste do mínimo pelo crescimento do PIB defasado de dois anos . Em síntese, ele sugere que depois de 2011, quando se deverá definir a regra para 2012/2023, se adote um reajuste moderado para o mínimo, que seja diluído ao longo de quatro anos, de maneira que, em 2015, a relação teto de aposentadoria/piso caia, por exemplo, para 6 (em 2007, foi de 7,6). Daí para a frente, o mínimo seria desvinculado do piso, seus aumentos reais deixariam de afetar a previdência e todas as aposentadorias aumentariam em função da inflação do ano anterior, "como acontece em todos os países".
Giambiagi recusa o rótulo de que, ao defender suas idéias de revisão das regras de aposentadoria, despreza o salário mínimo como instrumento de distribuição de renda. "Isso soa como politicamente incorreto. A expressão técnica é que o mínimo foi perdendo eficácia como instrumento de redistribuição de renda em favor das camadas mais pobres da população." Na verdade, "o mínimo já não é mínimo", porque muita gente ganha menos que o suposto piso, que se afasta sempre mais, e para cima, das remunerações de fato inferiores (empurrado por crescimento real de quase 100% entre 1995 e 2007).
Em artigo recente no blog "Crítica Econômica", a economista Isabela Nogueira confronta as posições de Giambiagi. "De fato, poucas pessoas dentre as que recebem salário mínimo estão entre os 10% mais pobres", admite. "Mas quando consideramos os rendimentos do trabalho, verificamos que parte dos que recebem o mínimo estão nos níveis médios e baixos da distribuição de renda." Em seu entender, "isso significa que o combate à pobreza, no curto prazo, não pode prescindir de políticas de transferência de recursos diretamente às mãos das famílias pobres." Ao mesmo tempo, porém, "pode haver alguma relação entre a melhora na desigualdade e o incremento do salário real, nos últimos anos, que merece ser analisada."
Isabela não é explícita, mas deixa entrever, no fecho de seu artigo, que, naquilo que se refere às aposentadorias e relações com o mínimo, não há porque induzir mudanças.
À medida que 2010 se aproxima, com sua carga de disputas eleitorais, mais acalorada tende a se tornar a discussão de tantas questões relacionadas à distribuição de renda - com o presumível estímulo adicional, agora, do apetite de muita gente que provou do bolo e está adorando seu sabor.
(Valor Econômico)