Enviado: Sex Fev 17, 2006 11:54 am
Haiti: cambalacho denuncia fiasco da missão
Por Rui Nogueira
O acordo-cambalacho que arrumou o resultado final das eleições no Haiti é a prova do fiasco da missão das Nações Unidas e a quase inutilidade, em particular, do trabalho das Forças Armadas brasileiras naquele país. Fez-se o acordo, para dar por encerrada a eleição, porque a missão da ONU não agüentaria uma nova campanha para decidir a Presidência haitiana em um segundo turno. Optou-se por uma estratégica meio envergonhada, agora, para evitar que o caos de um segundo turno expusesse a missão à vergonha inteira.
Desde o início da crise — e está aí um estudioso do assunto, o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), que não me deixa falar no vazio — diagnosticou-se que o problema no Haiti era, sim, de manutenção imediata da ordem pública, mas também de criação de um ambiente de institucionalidade que transformasse as futuras eleições presidenciais em uma espécie de ponto de partida para o enraizamento do Estado democrático. Era um trabalho que deveria pôr um fim à fúria violenta e histórica que decide nas ruas o destino sempre macabro do país e, ao mesmo tempo, criar um espaço de manifestação e participação políticas minimamente ordenadas e confiáveis, a ponto de controlar o gangsterismo político.
ONU: repetindo um velho erro
A enormidade da tarefa afastou até norte-americanos e franceses, que eram dois dos candidatos naturais à missão. Desde o início, com os casos do Afeganistão, Iraque, Coréia do Norte e Israel-Palestina a tomar conta da agenda, o Conselho de Segurança das Nações Unidas cuidou da urgência militar da missão para o Haiti, isto é, do envio de soldados para o país, mas nunca se preocupou em planejar o perfil de uma tarefa que precisava ter um caráter interventor profundo e legítimo para quebrar o tal ciclo de violência e de completa destruição institucional.
A ONU já havia cometido esse mesmo erro em Angola, em 1992, quando se concentrou na tarefa de contenção dos bandos armados, que se faziam passar por partidos políticos, e retirou os capacetes-azuis da ex-colônia portuguesa na África. Virou as costas a uma situação que não estava institucionalmente consolidada. O resultado é que o ambiente pós-retirada logo descambou para nova espiral de guerra civil, só igualada em ferocidade à guerra fratricida pós-descolonização, em meados dos anos 70. A paz só voltou em 2002, ao fim de um novo processo eleitoral antecedido por outra missão militar, a terceira, desprovida dos erros das anteriores.
Tanto a ONU sabia da barbeiragem perpetrada em Angola que, no caso de Timor, a tarefa número um do saudoso Sérgio Vieira de Mello foi ditada por ele mesmo assim, em off, à Primeira Leitura, em uma conversa telefônica mantida em agosto de 2001: “Não desejo para Timor as experiências em que a ONU pacifica territórios, organiza eleições e dá as costas a países que jamais conseguem chegar à condição de nação”. Vieira de Mello comandou o processo bem sucedido de pacificação, democratização e institucionalização do Timor, entre 1999 e 2002, e foi morto no Iraque, em 2003, por um ataque terrorista à missão da própria ONU.
Um troféu
O Itamaraty sabia de tudo isso, mas ofereceu de bandeja o Exército brasileiro para cabeça de uma missão em que nossas tropas desempenharam o papel, acima de tudo, de cabos eleitorais da pretensão lulista de chegar a uma cadeira de membro permanente em um Conselho de Segurança reformado. Cada soldado brasileiro fez e faz no Haiti o melhor que pode, mas o máximo que lhe exigem é que sejam todos bons policiais – justo o que eles não são. E no primeiro teste de verdade descobriu-se o óbvio: que nada havia mudado, pois, ao sinal de que a fúria das ruas estava ressuscitando, a ONU e o Brasil trataram de arrumar um jeito de dar por encerrado o processo eleitoral e apresentar o acordo-cambalacho como prova dos bons serviços prestados pela missão.
ONU e Brasil moveram-se em direção ao acordo que pingou uma mancha de origem no governo de René Préval única e exclusivamente para terem em mãos um troféu que justifique a missão pela missão. Porque a missão não cumpriu missão nenhuma. Afinal, que país está sendo criado a partir de uma eleição que decide distribuir proporcionalmente votos brancos por todos os candidatos, aritmética que permitiu atribuir a vitória a um dos concorrentes do pleito?
Admito, dado que as condições não foram criadas, que o cambalacho pode ter sido o mal menor diante das ruas enraivecidas e incontidas que, muito provavelmente, não teriam deixado realizar o segundo turno das eleições. Enfim, chegamos de maneira oportunista. Saíremos do mesmo jeito!
http://www.primeiraleitura.com.br/auto/ ... hp?id=7032
Por Rui Nogueira
O acordo-cambalacho que arrumou o resultado final das eleições no Haiti é a prova do fiasco da missão das Nações Unidas e a quase inutilidade, em particular, do trabalho das Forças Armadas brasileiras naquele país. Fez-se o acordo, para dar por encerrada a eleição, porque a missão da ONU não agüentaria uma nova campanha para decidir a Presidência haitiana em um segundo turno. Optou-se por uma estratégica meio envergonhada, agora, para evitar que o caos de um segundo turno expusesse a missão à vergonha inteira.
Desde o início da crise — e está aí um estudioso do assunto, o deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), que não me deixa falar no vazio — diagnosticou-se que o problema no Haiti era, sim, de manutenção imediata da ordem pública, mas também de criação de um ambiente de institucionalidade que transformasse as futuras eleições presidenciais em uma espécie de ponto de partida para o enraizamento do Estado democrático. Era um trabalho que deveria pôr um fim à fúria violenta e histórica que decide nas ruas o destino sempre macabro do país e, ao mesmo tempo, criar um espaço de manifestação e participação políticas minimamente ordenadas e confiáveis, a ponto de controlar o gangsterismo político.
ONU: repetindo um velho erro
A enormidade da tarefa afastou até norte-americanos e franceses, que eram dois dos candidatos naturais à missão. Desde o início, com os casos do Afeganistão, Iraque, Coréia do Norte e Israel-Palestina a tomar conta da agenda, o Conselho de Segurança das Nações Unidas cuidou da urgência militar da missão para o Haiti, isto é, do envio de soldados para o país, mas nunca se preocupou em planejar o perfil de uma tarefa que precisava ter um caráter interventor profundo e legítimo para quebrar o tal ciclo de violência e de completa destruição institucional.
A ONU já havia cometido esse mesmo erro em Angola, em 1992, quando se concentrou na tarefa de contenção dos bandos armados, que se faziam passar por partidos políticos, e retirou os capacetes-azuis da ex-colônia portuguesa na África. Virou as costas a uma situação que não estava institucionalmente consolidada. O resultado é que o ambiente pós-retirada logo descambou para nova espiral de guerra civil, só igualada em ferocidade à guerra fratricida pós-descolonização, em meados dos anos 70. A paz só voltou em 2002, ao fim de um novo processo eleitoral antecedido por outra missão militar, a terceira, desprovida dos erros das anteriores.
Tanto a ONU sabia da barbeiragem perpetrada em Angola que, no caso de Timor, a tarefa número um do saudoso Sérgio Vieira de Mello foi ditada por ele mesmo assim, em off, à Primeira Leitura, em uma conversa telefônica mantida em agosto de 2001: “Não desejo para Timor as experiências em que a ONU pacifica territórios, organiza eleições e dá as costas a países que jamais conseguem chegar à condição de nação”. Vieira de Mello comandou o processo bem sucedido de pacificação, democratização e institucionalização do Timor, entre 1999 e 2002, e foi morto no Iraque, em 2003, por um ataque terrorista à missão da própria ONU.
Um troféu
O Itamaraty sabia de tudo isso, mas ofereceu de bandeja o Exército brasileiro para cabeça de uma missão em que nossas tropas desempenharam o papel, acima de tudo, de cabos eleitorais da pretensão lulista de chegar a uma cadeira de membro permanente em um Conselho de Segurança reformado. Cada soldado brasileiro fez e faz no Haiti o melhor que pode, mas o máximo que lhe exigem é que sejam todos bons policiais – justo o que eles não são. E no primeiro teste de verdade descobriu-se o óbvio: que nada havia mudado, pois, ao sinal de que a fúria das ruas estava ressuscitando, a ONU e o Brasil trataram de arrumar um jeito de dar por encerrado o processo eleitoral e apresentar o acordo-cambalacho como prova dos bons serviços prestados pela missão.
ONU e Brasil moveram-se em direção ao acordo que pingou uma mancha de origem no governo de René Préval única e exclusivamente para terem em mãos um troféu que justifique a missão pela missão. Porque a missão não cumpriu missão nenhuma. Afinal, que país está sendo criado a partir de uma eleição que decide distribuir proporcionalmente votos brancos por todos os candidatos, aritmética que permitiu atribuir a vitória a um dos concorrentes do pleito?
Admito, dado que as condições não foram criadas, que o cambalacho pode ter sido o mal menor diante das ruas enraivecidas e incontidas que, muito provavelmente, não teriam deixado realizar o segundo turno das eleições. Enfim, chegamos de maneira oportunista. Saíremos do mesmo jeito!
http://www.primeiraleitura.com.br/auto/ ... hp?id=7032