É impossível negar que existe preconceito de cor. "Ah mas existe branco pobre também". Preconceito contra pobre também existe, mas não afasta a existência do preconceito contra os negros. Um negro, mesmo que rico, sofrerá preconceito, tanto aqui como lá, mas tudo depende da forma como ele vai reagir a isso. Um branco bem vestido e arrumado entra em qualquer ambiente. Mas presenciei e conheço relatos reais de negros ainda que bem vestidos sendo acompanhados por seguranças de shoppings, confundidos com garçons, proibidos de entrar pela porta principal de um hotel, etc, etc, etc. É disso que falamos quando o assunto é preconceito de raça. Não importa sua riqueza, posição social, nível de escolaridade, vão sempre te julgar pela cor.
Ser negro, especialmente no Brasil e nos EUA, é ter sobre si uma presunção eterna de suspeita. Eu particularmente sou latino americano e não seria considerado branco nos EUA ou na Europa, em que pese se voltarmos apenas três gerações minha árvore genealógica chega em parentes nascidos em Portugal e na Itália. Mas para a realidade brasileira, no nosso contexto cultural local, sou um legítimo branco e não sofro nem 1% do que uma pessoa negra sofre. Não reconhecer isso é um ato de covardia.
Normalmente as pessoas aguentam isso caladas, até que chegam em um ponto de saturação impossível de ignorar. Isso sempre ocorre em contextos de crise. Nos EUA o que impede a explosão dessa bomba de ódio racial é o crescimento econômico. Com o passar do tempo, tendo prosperidade e riqueza, as pessoas atingidas tendem a ignorar esses atos, em que pese, como eu disse, continuam a sofrê-los. No entanto, quando não há prosperidade e ocorre um grave ato de racismo, a revolta explode em eventos como esse.
A vítima em questão provavelmente é um negro sofrendo com os baques da economia desde a crise de 2008. Não conseguiu a prosperidade econômica prometida para um negro bem sucedido de uma sitcom como "my wife and kids". Ao invés de empresário era proletário. Bateu a crise do corona e perdeu o emprego. Tentou usar uma nota falsa ninguém sabe a razão. Pode ter sido por engano, pode ter sido intencional em um legítimo ato de sobrevivência. Chamaram a polícia como fariam com qualquer branco. Mas ao invés de apenas levar um tapa na orelha e ser encaminhado para uma audiência de custódia em que um juiz (talvez negro) lhe aplicaria uma pena alternativa de prestação de serviços à comunidade, foi vítima de um golpe fatal que deveria ser usado apenas nos casos mais graves e com maior risco a integridade dos agentes de segurança. Era negro talvez cometendo um delito de menor potencial ofensivo, mas foi tradado como a SWAT trataria um terrorista que estivesse ameaçando a coletividade com uma arma.
O policial em questão é outro personagem vítima de inúmeros acasos. Criado no contexto racista não consegue enxergar seus próprios preconceitos e nunca ninguém do Estado fez nada para mudar isso, nem um mísera palestra qualquer. Cheio de problemas conjugais em casa (inclusive, a esposa pediu divórcio depois do episódio. Mas será que foi só por isso mesmo?). Deveria estar entupido de antidepressivos até no olho do c*. Sequer deveria estar trabalhando. Atormentado pelo trabalho extra com o coronavírus, já que aumentaram os casos de furtos (por brancos e por negros, mas estes últimos o incomodava mais). Era a ocasião perfeita para dar asas para extravasar sua raiva, usar sua força, aplicar aquela técnica nunca usada, contra o alvo que (talvez inconscientemente) guardava um ódio incondicional. Ainda que vítima das circunstância, poderia ter escolhido agir diferente. Escolheu o caminho errado e deve responder pelo que fez com dolo.
Tudo culmina na reunião das condições necessárias para atingir o ponto de ebulição do ódio dos dois lados. A tempestade perfeita está armada. Agora basta que um soldado federal mandado por Trump (um loiro, branco,de olhos azuis, descendente de alemão), em um ato de relapso, puxe o gatilho contra a multidão...e a bomba atômica racial vai explodir.
No Brasil o que segura a questão racial não é o crescimento econômico, é a repressão dura e inexpugnável. Dom Pedro I se tornou Imperador pelo temor das elites de ocorrer aqui o que tinha acabado de acontecer no Haiti, uma revolta de escravos que dizimou a população branca. Durante toda República o que não faltaram foram atos de dura repressão, como a Revolta da Chibata em 1910. A repressão no Brasil fica mais facilitada porque aqui, ao contrário dos EUA, a população negra teve dificultado acesso a educação e não tiveram um Martin Luter King para lhes dar coesão. O que mudou bastante nos últimos 20 anos com a quotas raciais e surgimento de uma coletividade negra politicamente ativa. Aqui, como lá, em breve o ponto de fervura será atingido.
Depois da Primavera Árabe, vem aí a Primavera Negra. O símbolo da queda dessa Bastilha será o prédio acima em chamas.