Jovem lésbica síria era, afinal, americano de meia-idade
Uma fraude irresponsável, alegadamente com bons motivos, enganou muita gente durante meses.
Luís M. Faria (
www.expresso.pt)
15:49 Segunda feira, 13 de junho de 2011
Os amadores de causas mobilizaram-se. Um sugestivo poster a preto-e-branco começou a fazer a sua carreira de ícone
"Hoje, aproximadamente às 18h00, hora de Damasco (...) Amina encontrava-se na zona da estação de autocarros Abbasid (...) Foi agarrada por três homens na casa dos vinte. Segundo a testemunha (que não quer a sua identidade revelada), estavam armados. Amina bateu num deles e disse à amiga para ir chamar o seu pai (...) Um dos homens pôs-lhe a mão na boca e empurraram-na para dentro de um Dacia Logan vermelho com um autocolante de Basel Assad (...) Presume-se que os homens são membros de um dos serviços de segurança ou das milícias do partido Baath. Desconhece-se o lugar onde agora se encontra Amina, e não é claro se está numa prisão ou detida algures em Damasco (...) Se alguém souber algo sobre o seu paradeiro, por favor contacte...".
O relato não podia ser mais alarmante. Havia quatro meses que Amina Arraf, uma lésbica sírio-americana a viver em Damasco, fazia sensação com o seu blogue onde relatava o dia-a-dia na capital.
Histórias de propaganda maliciosa, de internet cortada, de violências horríveis, e de uma população jovem que procurava corajosamente reclamar a sua dignidade. Sendo um dos lugares onde a chamada primavera árabe mais sangue tem feito correr, é também daqueles onde mais exemplos heroicos aparecem.
Entre as vozes da contestação Amina destacava-se, desde logo pelas dificuldades que implica ser gay naquela parte do mundo. Aparentemente alheia ao risco, ela multiplicava relatos a partir do terreno, dissertações (sobre a Síria mas também Israel, a CIA, o que é ser muçulmano, etc) poemas (em estilo épico-filosofico)...
Por tudo isso, o seu rapto no passado dia 6 comoveu muita gente. Logo se gerou uma campanha internacional em seu favor, envolvendo desde movimentos árabes a organizações gay internacionais e até, a certa altura, o próprio Departamento de Estado norte-americano. Exigência unânime: a libertação imediata de Amina Arraf.
Ninguém conhecia pessoalmente Amina
Tom McMaster, a viver em Edimburgo, era Amina Arraf, num blogue na Internet
Tom McMaster, a viver em Edimburgo, era Amina Arraf, num blogue na Internet
Os amadores de causas mobilizaram-se. Um sugestivo poster a preto-e-branco começou a fazer a sua carreira de ícone. A internet inflamou-se. O post angustiado da sua prima Rania Ismail a dar o alarme teve um efeito que nenhuma delas teria previsto. Na realidade, não podiam prever - quanto mais não fosse, por não existirem.
As primeiras suspeitas surgiram por não se conseguir contactar ninguém que a conhecesse ou jamais tivesse falado com Amina. Mesmo algumas proclamadas amigas que deram a cara acabaram por admitir que só a conheciam através de e-mail.
Depois, uma foto alegadamente sua foi objeto de protestos por parte da pessoa nela retratada: uma jovem croata residente no Reino Unido, e totalmente alheia ao assunto.
Alguém descobriu que alguns dos textos de 'Amina Arraf' tinham já aparecido sob o mesmo nome há três anos num outro blogue, que se apresentava como mistura de facto e ficção.
Por fim, a Electronic Intifada, organização de ativistas ligada à Palestina, descobriu a verdade. Amina Arraf era na verdade um americano de meia-idade chamado Tom McMaster, a viver em Edimburgo, onde estuda na universidade.
Destruir credibilidade de outras testemunhas
Não foi difícil traçar-lhe o rasto. Bastou verificar de onde tinham sido enviados alguns posts: um endereço escocês, de uma casa em tempos pertencente a McMaster. Ele depressa confessou, pedindo desculpa aos seus leitores e explicando que nunca esperara receber aquele nível de atenção. Acrescentou que "embora a voz narrativa possa ter sido ficcional, os factos neste blogue são verdadeiros e não enganam em relação à situação no terreno".
Disse ainda que pensava não ter feito mal ninguém. Mas dias depois, numa entrevista, reconheceu que pode ter prejudicado seriamente a credibilidade de outras testemunhas sírias, estas verdadeiras. Afinal, o regime sírio tem o hábito de culpar a "falsa propaganda estrangeira" por muito do que corre mal no país.
Mulher croata que Tom tentou fazer passar por Amina
Mulher croata que Tom tentou fazer passar por Amina
O caso é apenas o último de vários que em anos recentes têm exposto o risco de confiar em identidades virtuais ou em testemunhos 'pessoais'. Seja em blogues ou em autobiografias inventadas do princípio ao fim, muita gente tem abusado da credulidade alheia.
Com cada caso novo, é mais um pouco da boa-vontade geral que se perde. Os autores da fraude, esses, acabam quase sempre por tentar virar a situação a seu favor.
McMaster já admitiu que tentará escrever um romance com base na história. Aliás, a descrição que fez dos seus próprios motivos - cansara-se de tentar apresentar factos sobre o Médio Oriente aos seus compatriotas e vê-los reagir acusando-o de ser anti-americano - não soa inteiramente plausível. E a frase com que termina a sua 'desculpa' no blogue ("Porém, tocaram-me profundamente as reações dos leitores") também não tranquiliza, sobretudo por vir após uma crítica à "cobertura superficial do Médio Oriente".
Alguns posts
Para ajuizar da sua boa fé, o melhor será ler alguns dos seus posts na voz de Amina. Sobre Israel: "Não podem jamais admitir que se enganam, e portanto têm de fazer por difamar todos os árabes, todas as partes da nossa cultura, da nossa religião, tudo. Somos o mal e a história não tem sentido. Tudo o que importa para eles é manter o seu mito e repetir as suas mentiras cada vez mais estridentemente".
Sobre os seus 'compatriotas': "Os sírios sempre viajaram e comerciaram e se instalaram em todos o mundo (...) Hoje, há tantos sírios na diáspora como em casa (...) e os que ficaram também se abriram e 'viram' o mundo virtualmente. Já não estamos emparedados do mundo". Sobre si mesma: "Nasci árabe. Nasci uma síria. O árabe foi a língua das minhas primeiras palavras e, inch'Allah, será a das últimas. A minha primeira memória é de Damasco, e assim será a última (...) Sou mulher, sou gay, sou muçulmana, sou bi-nacional, sou alta, sou demasiado magra, a minha seita é Suni, o meu clã Omari, a minha tribo Quraysh, a minha cidade Damasco".
Filha de emigrantes, Amina também era americana: "Sou também da Virgínia. Nasci uma tarde num hospital à vista de onde Woodrow Wilson chegou ao mundo (...) Aprendi outras coisas (...) palavras e aspirações e o desejo de ser livre".
http://aeiou.expresso.pt/jovem-lesbica- ... de=f655290