Pilotos transportavam cabritos, burros e prostitutas na Amazônia
01 de maio de 2011 • 14h00
DANIEL FAVERO
As chuvas, as cheias dos rios, a falta de estradas e o tamanho do território fazem com que a logística na Amazônia seja compensada com o transporte aéreo. Até os anos 90, quando ainda não havia muitas reservas ambientais e indígenas, os garimpos e as madeireiras eram bem comuns, e serviam como escola de formação de aviadores que desafiavam a morte e demonstravam habilidade ao enfrentar situações surreais como vacas no meio da pista, pouso em clareiras no meio da selva, carga com peso duas vezes maior que a capacidade da aeronave carregando de tudo: cabritos, burros, combustível e até prostitutas para os garimpeiros.
No interior do Acre, pilotos descem do avião para espantar vacas do meio da pista, rezando que os animais não voltem durante a decolagem. O proprietário da empresa Rio Branco Táxi Aéreo Silvio Abílio Almeida Lima, aviador há mais de 30 anos, lembra do dia em que teve que levar cabritos vivos a Cruzeiro do Sul, distante 648 km da capital. Ele conta que quando chegou ao destino, um outro passageiro desavisado abriu a porta do avião.
"Não deu tempo de falar não e os bichos saíram em disparada... eles (os cabritos) viram a porta aberta e saíram correndo pelo aeroporto. Daí saiu o pessoal correndo atrás de cabritos", lembra entre uma gargalhada e outra.
Até a década de 90, a escola de voo na Amazônica eram os garimpos. O comandante Nilton Costa, conhecido como Niltinho, é um dos que aprenderam a voar nesse ambiente. Em seus 40 anos de experiência, ele pode ser considerado um personagem da história da aviação brasileira pelo que viu e viveu trabalhando na floresta entre garimpeiros e madeireiros. Ele lembra ainda com carinho de episódios que quase o mataram.
Niltinho comprou o avião após entrar em falência financeira com os planos econômicos do começo dos anos 90. Ele diz que chegou a voar para boa parte dos garimpos do Sul do Pará, região conhecida pelos conflitos entre garimpeiros, fazendeiros e índios, mas perdeu espaço para pilotos mais corajosos, ou malucos, do que ele.
"Perdi a hegemonia porque um garimpeiro queria transportar 20 mangueiras de 8 m, mas não queria que fossem cortadas. Eu não quis me arriscar, mas outro piloto amarrou as mangueiras ao redor do avião e foi. Depois disso, passou a trabalhar para esse garimpeiro".
Seu companheiro era o monomotor Skylane, que apagava na chuva porque a água se misturava com a gasolina, se orientando no meio da floresta basicamente com uma bússola, o que não compensava os desvios de rota provocados pelo vento. "O que a gente mais fazia era se perder", diz ele ao falar sobre tempos anteriores ao GPS.
O comandante diz que deixou de ser manicaca (piloto inexperiente) "no meio dessas loucuras", carregando até 600 kg em uma aeronave de quatro lugares com capacidade para 350 kg, já com o peso do piloto incluído na conta.
Animais, combustível e prostitutas
"A gente carregava o avião com 500kg, 600 kg, mais o piloto, e tinha que pousar em um clareira de 400 m que os garimpeiros abriam no meio da mata, e tinha que ir, porque se não fosse, um outro piloto fazia, e, na obrigação de sobreviver, era um mais louco do que o outro. A gente dependia daquilo para sobreviver, tinha que enfrentar essas bocadas".
Ele carregava basicamente tudo o que era necessário para um garimpo, incluindo um burro, combustível, que dividia espaço com os passageiros, e até prostitutas contratadas em uma cidade maranhense. "Um garimpeiro precisava levar 10 prostitutas ele me disse: 'tenho uma carga pra você, uns 500 kg mais ou menos'. Daí ele fez um cálculo do peso das meninas, mas até hoje eu não sei como consegui colocar 10 mulheres em um avião onde só cabiam quatro pessoas".
Violência nos garimpos
No meio da mata, os pilotos se arriscavam no ar e no chão, já que os garimpos eram locais extremamente competitivos e violentos. "Tinha muita matança, roubo... Quando um piloto roubava cliente do outro, ele colocava açúcar no tanque de combustível do rival". Niltinho conta que uma vez foi procurado pela polícia para fazer um "lançamento". "Eles me disseram que precisavam fazer um lançamento e quando perguntei o que era, eles me disseram que era voar com um prisioneiro e atirá-lo lá de cima, mas não tive coragem de fazer isso, fiz muita coisa, mas não conseguiria fazer isso".
Com a proibição da exploração de mogno, a criação de reservas indígenas e áreas de proteção, as autoridades passaram a apertar o cerco contra madeireiros e garimpeiros. Niltinho conta que já precisou sair correndo de alguns lugares para fugir da Polícia Federal.
"Nessa época, o Ibama queria pegar os madeireiros porque a extração de mogno já estava proibida. A Polícia Federal apreendeu o equipamento e o pessoal me contratou para ajudar a resgatar. Nós pousamos e, enquanto eles foram lá buscar, fiquei comendo, mas quando percebi, eles voltaram correndo da Polícia Federal, e corri junto, mas com o prato na mão. Eles me diziam: 'larga esse prato', mas não larguei. Conseguimos entrar no avião e decolar, e lá em cima, terminei minha refeição", lembra.
Personagem de um outro período da história brasileira, quando o extrativismo com seus garimpos e a exploração de madeira eram considerados desenvolvimento da região Amazônica, comandante Niltinho lembra com saudosismo daquela época. Em tempos recentes, a mudança na política de preservação da floresta acabou fazendo com que ele perdesse sua fonte de renda e paixão, o avião. "Fomos castrados, não temos possibilidade de sobreviver. Aqueles que possuíam aviões pequenos com quatro ou seis lugares deixaram de ter condição de voar com o extermínio dos garimpos, dos fazendeiros e madeireiras", reclama.
O presidente da Associação Brasileira de Táxis Aéreos (Abtaer), Milton Arantes, afirma que a região Amazônica tem a característica de ter formado muitos aviadores no garimpo, mas que isso faz parte do passado. "Eles tiveram seu momento histórico porque decolavam de lugares difíceis, voavam sem GPS, em condições extremamente complicadas, mas hoje a situação é bem diferente, já existe uma regulação, um controle, a situação técnica das aeronaves é mais controlada, mas eles tiveram seu valor histórico no contexto da aviação. Mas hoje não se atua mais com esse tipo de profissional, hoje é exigido um conhecimento mais técnico", diz. Segundo Arantes, os aviadores de garimpo eram conhecidos como 'pé e mão' (em referência ao controle da aeronave).
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