ENRIQUECIMENTO DE URÂNIO NO BRASIL
Desenvolvimento da tecnologia por ultracentrifugação
Othon Luiz Pinheiro da Silva[1]
André Luis Ferreira Marques[2]
Introdução
Após as iniciativas do Almirante Álvaro Alberto durante os anos 50 de realizar pesquisas científicas no Brasil, no setor nuclear, o governo brasileiro decidiu investir recursos, já no início dos anos 70, para dotar o país de capacitação plena no ciclo do combustível nuclear, produção de reatores de pesquisa e de potência e, finalmente, no reprocessamento de combustível nuclear utilizado nos reatores. Tal linha de ação visava garantir os meios necessários para o fortalecimento de nossa matriz energética, com a utilização dos recursos naturais existentes (minas de urânio e tório, cujas reservas estão entre as maiores no mundo) para a produção de energia elétrica, dentro da visão particular dos programas de desenvolvimento em vigor à época.
Dentro deste contexto, previu-se a construção de diversas usinas nucleares, em torno de 56 unidades do tipo PWR (pressurized water reactor). Além desse motivo, havia a necessidade estratégica de se colocar o setor nuclear do Brasil em grau de desenvolvimento no mesmo patamar que outros países de mesmo porte estavam perseguindo. Assim, diversas medidas foram tomadas, como a capacitação de pessoal no exterior, formação de empresas estatais para executar as atividades industriais e a criação e o fortalecimento dos institutos de pesquisas.
Neste cenário, em 1975, celebrou-se o Acordo Brasil-Alemanha de cooperação no setor nuclear, onde haveria a transferência alemã de tecnologia e alguns meios para os objetivos mencionados logo acima. Alguns itens derivados deste acordo são a fábrica de construção de reatores da NUCLEP (Nuclebrás Equipamentos Pesados, em Itaguaí) e a própria Usina Nuclear de Angra 2, ambos construídos no estado do Rio de Janeiro. No ciclo do combustível nuclear, a transferência tecnologia inicialmente prevista para o enriquecimento de urânio era a ultracentrifugação, a qual os alemães já dominavam há alguns anos. No entanto, por pressões internacionais, a transferência ao Brasil desta tecnologia foi vetada, oferecendo-se a alternativa do “jet-nozzle”, a qual ainda estava em fase de desenvolvimento laboratorial. O motivo de se enriquecer o urânio (aumento do teor de U235 em relação ao que se dispõe naturalmente) deve-se ao fato de que a probabilidade de ocorrer a fissão neste elemento químico ser muito maior do que em outros elementos químicos (da ordem de mil vezes).
Na mesma ocasião (final dos anos 70), a Marinha do Brasil (MB) identificou a necessidade de se operar com submarinos de propulsão nuclear, uma vez que estes são vetores com grande poder de dissuasão e vantagem tática, em função de seu alto poder de discrição (pode operar muito tempo submerso, dificultando sua detecção por forças aeronavais de superfície). Por causa da grande densidade de energia de seu reator nuclear, além de gerar oxigênio para sua tripulação, o submarino nuclear pode manter altas velocidades durante muito tempo, permitindo-se patrulhar grandes extensões de mar territorial.
É importante mencionar que um País pretendendo operar submarinos nucleares deve providenciar toda a infra-estrutura necessária (base de apoio, fabricação e manutenção de componentes principais, entre outros), porque a dependência externa em se obter componentes vitais, tais como o núcleo do reator nuclear naval, é uma hipótese descartada, devido à vulnerabilidade logística inerente desse tipo de dependência. Em passado não muito distante, vimos este tipo de situação no veto de exportação de suprimentos ingleses para a Argentina, durante a Guerra das Malvinas, o que diminuiu em muito a eficácia de sua Marinha.
Dentre os diversos métodos de enriquecimento de urânio (separação isotópica do U235 em razão maior do que 0,7%, que aquela que se encontra na Natureza), somente dois processos revelam-se atraentes para produção em escala industrial: a difusão gasosa e a ultracentrifugação.
No primeiro, comprimi-se o gás hexafluoreto de urânio (UF6) através de membranas microporosas, associadas em série, de forma a se separar o U238 do U235, sendo este último mais interessante para a fissão com nêutrons. Na ultracentrifugação, a separação é feita pela força centrífuga agindo nas partículas de UF6, cujo princípio é idêntico àquele que conhecemos em nossa casa, concentrando-se o U238 em uma região mais externa do que o U235, porque o primeiro é mais pesado somente cerca de 1% em relação ao segundo. Daí aparecer o termo “ultra” centrifugação (operar em velocidades tangenciais muito altas), para separar dois elementos cujas massas são muito próximas.
Todos os demais processos (e.g. eletromagnético, colunas térmicas) não se aproximam em termos de eficiência (da ordem de pelo menos 100 vezes) em relação à ultracentrifugação, seja pelo consumo elevado de energia e/ou pela geração de grande quantidade de efluentes químicos. Além disso, há processos que ainda não saíram da fase laboratorial, como é o enriquecimento a laser. O “jet-nozzle” seguiu o mesmo caminho, não sendo industrialmente eficaz.
Com a negativa de importação da tecnologia de ultracentrifugação e com a transferência alemã de um método não eficaz em escala industrial, decidiu-se pelo desenvolvimento nacional do enriquecimento de urânio por ultracentrifugação pela Marinha e por laser pela FAB, também no final dos anos 70. É importante mencionar que dentre as atividades do ciclo do combustível, o enriquecimento de urânio é a que reúne a maior complexidade tecnológica, por lidar com exigências técnicas muito estritas, em termos de seleção e desenvolvimento de materiais, em controle de qualidade dimensional, diversos métodos e etapas de fabricação eletromecânica, entre outros aspectos.
Desenvolvimento
A tecnologia de ultracentrifugação foi desenvolvida na Alemanha, durante a Segunda Guerra Mundial, pela equipe do Prof. Zippe. Posteriormente, os russos a aperfeiçoaram com o auxílio do próprio Zippe e alguns de seus cientistas. Atualmente, menos de 10 países no mundo dominam esta tecnologia, sendo o Brasil um deles.
Na figura 1, baseando-se em fontes ostensivas e em linhas gerais, apresenta-se um esquema de uma ultracentrífuga, com as seguintes partes [1]:
a) Carcaça
b) Rotor
c) Motor
d) Distribuidor e coletores de hexafluoreto de Urânio
e) Mancais
Para se obter a separação isotópica mencionada acima, deve-se operar com as maiores rotações possíveis, uma vez que a força centrífuga é proporcional ao quadrado da velocidade angular. No entanto, deve-se respeitar os limites de resistência dos materiais (devido às altas tensões mecânicas ou esforços solicitantes decorrentes) e diminuir o consumo de energia ao máximo. Nesta ótica, quanto menor for o atrito entre as diversas partes, melhor será o rendimento da ultracentrífuga.
Para a diminuição do atrito, opera-se sob vácuo entre a carcaça e o rotor, ao mesmo tempo que se atenua o atrito nos mancais. Desenvolvido e homologado um modelo de ultracentrífuga, fabricam-se diversas delas para que sejam montadas em arranjos série e paralelo, os quais passam a se chamar “cascata de enriquecimento de urânio”, em função das condições de contorno do projeto (quantidade de massa e teor de enriquecimento). Para reatores do tipo de Angra 1 e 2, são necessárias toneladas de UF6 enriquecido entre 3 e 5%.
Por exemplo, os arranjos em paralelo objetivam a produção de grande massa, mas com baixo teor de enriquecimento. Por outro lado, o arranjo em série provê uma quantidade de massa muito pequena, mas com alto teor de enriquecimento. A figura 2 apresenta um arranjo em cascata, onde o produto de um determinado estágio segue para a alimentação do estágio seguinte, enquanto que o seu “rejeito” retorna para alimentação do estágio anterior. Observa-se que se recicla o UF6 o tempo todo ao longo do processo: o produto de um estágio de enriquecimento é direcionado para a alimentação do estágio seguinte, enquanto que o rejeito do estágio inicial retorna para a alimentação do estágio anterior.
Como em aplicações de alto desempenho (e.g. aeroespacial, biomedicina), os materiais potencialmente aplicáveis em sistemas de separação isotópica devem reunir grande resistência mecânica, baixa densidade e resistência ao meio corrosivo (constituído pelo UF6). No quesito da resistência mecânica, considera-se para efeitos didáticos que a tensão mecânica associada seja proporcional ao quadrado do módulo de elasticidade (N/m2) dividido pela densidade (kg/m3). Consultando-se referências ostensivas, na tabela 1 evidencia-se que os materiais poliméricos são extremamente desejáveis, apesar de sua fabricação ser mais trabalhosa, assim como o seu projeto, uma vez que tais materiais exibem grande “anisotropia”, i.e. variação acentuada das propriedades, principalmente mecânicas, com as direções. Os materiais metálicos, como os aços “maraging” ou as ligas de titânio são também atraentes, mas sua densidade diminui sensivelmente o desempenho, quando se compara com os materiais compósitos.
Legenda:
A – Alimentação (com urânio natural)
P – Produto (ou parte enriquecida)
R – Rejeito (ou parte empobrecida)
Figura 2 – Esquema de cascata
O poder de separação de uma ultracentrífuga é medido em kg de UTS, ou Unidade de Trabalho Separativo, por ano (kg UTS/ano). Esta unidade advém da teoria de operação de meios em cascata, onde se emprega o conceito matemático de função de valor. Em linhas gerais, a equação 1 expressa esse poder [2].
Poder de Separação ~ L x rotação n x D x (DM) 2 x Temp –2 (1)
Onde:
L – comprimento vertical
D – coeficiente de difusão do UF6
DM – diferença de massa entre isótopos (U238 – U235)
Temp – temperatura do UF6
n – coeficiente entre 4 e 5.
Como se pode notar, quanto maior a rotação maior será o poder separativo, assim como o comprimento do rotor, e menor for a temperatura do UF6. Entretanto, é digno de nota que o ponto triplo deste gás é muito próximo das condições normais de temperatura e pressão (CNTP), fazendo com que este dessublime (passe do estado gasoso para sólido) facilmente naquelas condições, o que pode entupir tubulações de processo. Além disso, em contato com o ar, o hexafluoreto de urânio reage com a umidade produzindo o ácido fluorídrico (HF), que é perigoso.
Identificados os principais aspectos técnicos do desenvolvimento da ultracentrifugação, o programa nuclear da MB construiu todos os meios laboratoriais e industriais necessários para se desenvolver e implantar esta tecnologia no Brasil. Como sempre feito pela MB, mobilizaram-se alguns dos melhores talentos e meios existentes no Brasil, reunindo-se equipes de vários setores: engenharia mecânica, mecatrônica, engenharia eletrônica, engenharia de processos, engenharia de materiais, entre outros. Para a gerência dos recursos materiais e humanos, a MB criou a Coordenadoria para Projetos Especiais (COPESP), em 1986, posteriormente renomeada como Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP), com sede no campus da Universidade de São Paulo (USP) e o Centro Experimental ARAMAR (CEA) na região do município de Iperó/SP. A escolha recaiu no Estado de São Paulo por ser o estado que dispõe do melhor parque industrial, contando também com escolas de engenharia e centros de pesquisa de primeira grandeza.
Como se sabe, os fenômenos de transporte (gás dinâmica) e transferência de calor associados aos fluidos que escoam em velocidades muito altas apresentam-se como não lineares, sendo muito difícil a sua simulação por meios puramente analíticos e numéricos, mesmo com a atual disponibilidade de recursos computacionais de grande capacidade.
Assim sendo, no desenvolvimento da tecnologia de ultracentrifugação de urânio, foram construídos diversos laboratórios, relacionando-se estes com muitos institutos de pesquisas, empresas e universidades em todo o território nacional. Em poucas palavras, tal desenvolvimento é fundamentado em experimentação e simulação em diversas escalas (inclusive a natural ou 1:1), de forma a se homologar um componente ou sistema para a produção e montagem industriais. Nas diversas parcerias firmadas, a interação procura a otimização contínua de aspectos multidisciplinares, incorporando-se às máquinas o que se há de mais avançado nas diversas áreas tecnologias com materiais avançados, técnicas de fabricação, malhas de controle e eletrônica.
O produto deste esforço nacional pode ser visto nas duas instalações de enriquecimento de urânio da MB no CEA: o Laboratório de Enriquecimento de Urânio (LEI) e a Usina de Demonstração Industrial de Enriquecimento (USIDE), as quais operam desde o final dos anos 80 e início dos 90. Mais recentemente, o esforço do desenvolvimento da tecnologia de ultracentrifugação se faz notar no contrato celebrado entre a MB e as Indústrias Nucleares do Brasil (INB) para a instalação de cascatas de enriquecimento de urânio na unidade de Resende/RJ, para a fabricação de combustível nuclear para as usinas de Angra 1 e 2. Outras informações sobre o processo de enriquecimento de urânio no mundo podem ser encontradas nas referências 4 e 5.
Conclusão
O desenvolvimento da tecnologia de ultracentrifugação de urânio é um marco de sucesso na história tecnológica do Brasil. Do interesse inicial do Almirante Álvaro Alberto, o qual tentou trazer centrífugas da Alemanha no pós-Guerra, enfrentando forte resistência externa, conseguiu-se com o esforço, dedicação, criatividade e obstinação de técnicos e engenheiros brasileiros, ao longo de 15 anos, conceber e aperfeiçoar uma série de máquinas para produção de material para uso no combustível nuclear, emprego pacífico da energia nuclear, como estabelece nossa Constituição Federal.
A decisão tomada no final dos anos 70 pela escolha da ultracentrifugação foi acertada, por ser um método muito eficiente, em termos de consumo de energia elétrica, e modular, trabalhando com unidades padronizadas e organizadas em arranjos em série e paralelo, o que garante boa flexibilidade operacional. Prova do acerto da decisão é visto na recente evolução tecnológica dos países que usavam a difusão gasosa, como os EUA e a França, para o processo da ultracentrifugação.
Como produtos do desenvolvimento da implantação da tecnologia de ultracentrifugação, foi desenvolvida no Brasil a produção de aços de alta resistência, assim como de válvulas especiais para operar com substâncias corrosivas. Igualmente importante, vários componentes de satélites e mísseis têm sido fabricados e testados usando recursos laboratoriais e industriais do CEA, originalmente estabelecidos para o desenvolvimento do programa nuclear conduzido pela Marinha. Recentemente, identifica-se também como resultado expressivo o trabalho conjunto da MB, Força Aérea Brasileira (FAB), universidades e institutos de pesquisa, para a produção no país de fibra de carbono de alto desempenho, por meio de convênio com a Financiadora de Projetos (FINEP), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT).
O sucesso alcançado pelo projeto de enriquecimento, dentro do lema do CTMSP de que “Tecnologia Própria é Independência”, constitui-se em exemplo de que o caminho de acreditar no potencial dos brasileiros e utilizá-lo para suplantar obstáculos ao desenvolvimento nacional é, em alguns casos, o único viável e, em muitos outros, aquele que poderá garantir às futuras gerações maior autonomia e independência.
[1] Vice-Almirante (Engenheiro Naval – Ref.), foi o criador e coordenador do Programa Nuclear da Marinha de 1979-1994. Atualmente é Diretor-Presidente da ELETRONUCLEAR.
[2] Capitão-de-Fragata (Engenheiro Naval), é o Coordenador do Programa de Separação Isotópica do Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo - CTMSP