Re: A Questão Indigena
Enviado: Seg Jul 21, 2008 8:16 am
por Edu Lopes
Roraima e o Brasil
Denis Lerrer Rosenfield
Engana-se quem pensa que os problemas desse Estado do extremo norte do País digam respeito somente aos que lá vivem. Olhando de longe, poderíamos dizer: não é conosco! Midiaticamente, porém, eles terminaram ganhando relevo graças à ação de proprietários rurais, índios, militares e governantes que se insurgiram contra a política indigenista tal como está sendo conduzida pelo governo, por considerá-la prejudicial ao interesse nacional.
Sob a ótica do politicamente correto, é como se lá se travasse uma luta entre "arrozeiros" e "índios", em que os primeiros seriam os "maus" e os segundo, os "bons", num roteiro de péssima qualidade que relembra os filmes de faroeste de terceira classe. A especificidade, no caso, é que os "bons" seriam vítimas de fazendeiros perversos, necessitando da intervenção de outros "mocinhos", a força policial federal. Entre outras coisas, desatenta-se para o fato de que os índios se encontram nos dois lados, sendo em sua maior parte aculturados, de diferentes etnias (macuxis e jaricunas, entre outras), falando português e tendo uma longa interação cultural e social com os "brancos" - 20% da população de Boa Vista é constituída de índios. A população indígena total, dependendo das estimativas, varia entre 14.500 e 19 mil pessoas.
Roraima é um Estado pobre, embora rico do ponto de vista de seus recursos naturais. A sua pobreza é tributária da ausência de regularização fundiária das terras existentes, em boa medida resultado de anos de inércia deste governo e do anterior, que foram incapazes de titular essas terras. No processo de transição do então Território de Roraima para o novo Estado, a questão de se são terras da União ou do Estado não foi até hoje resolvida, criando uma insegurança jurídica, nociva para os que querem trabalhar e se desenvolver. O lado particularmente perverso consiste numa inatividade dos que almejam produzir, fazendo o contribuinte pagar anualmente mais de US$ 1 bilhão para que esse Estado possa funcionar. Incapazes de gerar riquezas, vivem da contribuição de todos os brasileiros. Todos estamos pagando pela incompetência governamental, que só tende a agravar o quadro atual.
Para se ter uma idéia dos números, com a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, o Estado de Roraima se inviabilizaria enquanto entidade federativa. Terras indígenas, preâmbulo para nações indígenas, constituiriam 46,74% de toda a área estadual. Se acrescentarmos as unidades de conservação estadual, federal e outras, chegaremos ao total de 74,6% de áreas destinadas. O que está sendo pleiteado pelos "arrozeiros", os "bandidos", seria uma área de apenas 4,76% da área demarcada, na verdade, algo insignificante, mas extremamente importante do ponto de vista econômico-social. Na verdade, são esses empreendedores e seus trabalhadores que estão viabilizando economicamente o Estado, de modo que ele possa vir a sobreviver somente com os seus meios. Trata-se de uma ilha de prosperidade, um pedaço de Primeiro Mundo, numa terra que clama por progresso. Sob esta ótica, o que está em jogo é uma luta entre os que querem a prosperidade e os que procuram inviabilizar essa unidade federativa. Tenderia a dizer que são invejosos, defendendo o atraso, não querendo o progresso de todos, aí incluindo os índios.
Manter simplesmente o status quo, como pretendem as ONGs nacionais e internacionais, assim como um setor governamental, equivaleria a colocar sérios entraves ao seu desenvolvimento, como se o seu destino fosse tornar-se um zoológico internacional, bancado pelos pagadores de impostos, para ser visitado por turistas que, logo após, iriam embora. A questão, no entanto, reside nos administradores do zoológico, que poderá ser dito decisivo para a humanidade no seu conjunto, em cujo caso os seus gestores poderiam ser uma entidade ou ONG internacional. Assim colocada, essa questão não é meramente retórica, pois os defensores da demarcação contínua fundamentam a sua ação numa consideração dos povos indígenas como nação. Ou seja, poderão ser amanhã considerados como uma nação propriamente dita, independente em sua administração e vindo a ter reconhecimento internacional. Não é casual que a questão indígena brasileira se tenha tornado uma questão propriamente internacional, como se a soberania brasileira fosse relativa, como a propriedade dos empreendedores rurais.
Exemplo particularmente claro disso foi a visita feita por dois índios da região a vários países europeus, com todo o apoio da Igreja Católica. Não é, aliás, de estranhar esse engajamento da Igreja, porque, na verdade, é ela que termina dirigindo a política indigenista, por intermédio do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em nome de seu direito à "autodeterminação", fizeram esse périplo, sendo recebidos pelo papa, na culminação dessa busca pelo reconhecimento. Reconhecimento de quê? Reconhecimento de uma "nação" que passaria a se determinar autonomamente, sendo, em contrapartida, reconhecida pelos estrangeiros. Ressalte-se que essa "missão" fala por si mesma, pois exibe, pelo seu comportamento, o que eles almejam no futuro: ser membros de uma entidade que se relacionaria, enquanto nação, com outras nações.
Como poderia um ente federativo, chamado Estado, sobreviver se praticamente 50% do seu território seria constituído por nações indígenas? Suas ilhas de prosperidade seriam aniquiladas, pois têm a conotação negativa de pertencerem a "fazendeiros", tidos praticamente por não-brasileiros. Na verdade, o Estado de Roraima seria constituído progressivamente de distintas nações, que, mesmo para a exploração do subsolo, rico em minérios, deveriam ser previamente consultadas. E se dissessem não, o que aconteceria? Mandaria o governo a Polícia Federal para desalojá-los, como fez contra os proprietários, os trabalhadores, os brancos e os índios, numa demonstração ostensiva e truculenta de força?
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na UFRGS.
E-mail:
denisrosenfield@terra.com.br
Fonte: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje ... 9336,0.php
Re: A Questão Indigena
Enviado: Seg Ago 04, 2008 1:30 pm
por Edu Lopes
Mato Grosso do Sul
Denis Lerrer Rosenfield
Parece não haver mais limites para a ação da Funai de demarcação de terras indígenas, como se o País fosse um imenso território virgem suscetível de qualquer reconfiguração territorial. Um Estado federativo passaria a reger-se por portarias e atos administrativos do Poder Executivo que criariam "nações" que, doravante, conviveriam com "outros Estados". Não estaria longe o dia em que essas "nações" passariam a tratar a "nação brasileira" em pé de igualdade, solicitando, inclusive, reconhecimento internacional e autonomia política.
Em 14 de julho deste ano, a Funai editou seis portarias visando à demarcação de terras indígenas em Mato Grosso do Sul. As portarias abrangem 26 municípios e dizem respeito a uma área potencial total de 12 milhões de hectares, correspondendo aproximadamente a um terço do território estadual. Em sua redação, as portarias não visam especificamente a uma propriedade ou área determinada, mas têm abrangência tal que qualquer propriedade poderia vir a ser atingida. Há uma ameaça real que paira sobre toda essa região, criando uma insegurança jurídica prejudicial aos produtores, aos trabalhadores, aos investimentos e à própria autonomia do Estado de Mato Grosso do Sul.
Observe-se que se trata de uma área extremamente fértil, povoada, rica em recursos, com produtores lá instalados há décadas, com títulos de propriedade e uma situação perfeitamente estabelecida. De repente, o que se considerava uma situação estável, segura, se vê subitamente em perigo graças a atos administrativos da Funai, que passa a considerar esse Estado como um molde aguardando uma nova forma, imposta de fora. Ressalte-se que uma portaria, que é um ato do Poder Executivo, passa a legislar sobre o direito de propriedade e o pacto federativo, sem que o Poder Legislativo interfira minimamente nesse processo. Um funcionário de terceiro escalão passa a valer mais do que um deputado, um senador e, mesmo, um governador de Estado. Há, evidentemente, uma anomalia em questão.
Imagine-se um Estado que pode ser repentinamente amputado de um terço de seu território, o qual passaria à legislação federal indígena graças a portarias e estudos ditos antropológicos. O poder concentrado nessas poucas mãos é francamente exorbitante. Não se trata de uma questão pontual, relativa, por exemplo, a uma aldeia indígena em particular, mas de uma questão que envolve um conjunto macro, que atinge fortemente o direito de propriedade, base de uma sociedade livre, e a configuração territorial de um ente federativo. Da forma como as portarias foram publicadas, elas podem acarretar uma demarcação que produziria, entre outras conseqüências, desemprego para os trabalhadores dessa região, a anulação de títulos de propriedade, a perda de arrecadação tributária, a retração de investimentos, a desvalorização das terras legitimamente adquiridas e uma completa desorganização territorial.
Pense-se num novo investimento que estaria por vir para esse Estado e, por analogia, para qualquer outro ente federativo. Poderiam os investidores aplicar os seus recursos em propriedades que estão sob litígio judicial? É a mesma situação de um cidadão que estaria pronto para comprar um apartamento. Colocaria os seus recursos num imóvel que fosse objeto de disputa judicial? Certamente preferiria comprar um outro imóvel que lhe desse segurança jurídica. Se, porventura, ainda decidisse fazer o negócio, exigira um preço menor pelo risco corrido, com perda para o vendedor, que veria o valor do seu bem esvair-se de suas mãos. O paradoxal é que a Funai diz fazer "justiça" e o "faz" com os recursos alheios! Não se repara uma "injustiça" criando outra!
Engana-se quem pensa que se trata de uma questão que afeta somente os produtores rurais. Trata-se de uma questão muito mais ampla, que concerne a todos os cidadãos sul-mato-grossenses e, através destes, os cidadãos brasileiros em geral. Na recente demarcação da Raposa Serra do Sol, em Roraima, o problema estava localizado numa distante região do País, como se outras regiões e outros Estados não estivessem implicados. Ora, estamos vendo que o longínquo se torna próximo e o particular se torna de interesse geral.
A Constituição brasileira, nos artigos relativos às terras indígenas, estabelece claramente que se trata de terras que os índios "tradicionalmente ocupam", sendo o verbo conjugado no presente. Ele não está conjugado no passado, como se o que estivesse em questão fossem terras que fariam ancestralmente parte de tribos que teriam vivido em tal território. No entanto, há hoje uma tendência antropológica e política de fazer outra leitura, claramente inconstitucional, como se uma portaria e um estudo antropológico valessem mais do que a Constituição. Assim, passam à identificação de um processo de demarcação conjugado no passado, para o qual qualquer "prova" passa a valer, apagando toda a História brasileira.
Hipoteticamente, consideremos, porém, que esse argumento antropológico-político tivesse validade e se aplicasse a qualquer porção do território nacional. Quais foram as primeiras cidades a que chegaram os portugueses? Salvador e Rio de Janeiro. É de todos conhecido, por relatos históricos e quadros, que se tratava de regiões tradicionalmente ocupadas por indígenas. Se fôssemos seguir esse argumento à risca, chegaríamos à conclusão de que estamos diante de terras indígenas, que deveriam ser demarcadas. Até poderíamos dizer que as provas seriam mais contundentes do que aquelas relativas à região sul do Estado de Mato Grosso do Sul. O que pensa a Funai fazer? Expropriar essas cidades? O que faria com as suas populações, seus empregos, suas propriedades, suas escolas, seus hospitais, seus postos de saúde, suas ruas e seus parques? Criaria ela uma "nova nação" nesses territórios "liberados"?
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia
na UFRGS. E-mail: denisrosenfield@terra.com.br
Fonte: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje ... 7040,0.php
Re: A Questão Indigena
Enviado: Qua Ago 27, 2008 10:12 am
por PQD
É hoje!
Demarcação de reserva preocupa ministros do STF
Cinco dos 11 integrantes da Corte, entre eles seu presidente, temem que modelo contínuo prejudique Roraima
Carolina Brígido
BRASÍLIA. Pelo menos cinco dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) estão preocupados com a demarcação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Na reserva estão localizados dois municípios, outros povoados de não-índios, uma rodovia federal, plantações de arroz importantes para a economia do estado e um terreno destinado à construção de uma hidrelétrica. No julgamento que começa hoje, essas áreas poderão ser excluídas da reserva, preservando a convivência de índios com outras pessoas.
Três ministros manifestaram essa opinião ao GLOBO em caráter reservado. Outros dois - o presidente, Gilmar Mendes, e Celso de Mello - declararam a preocupação com o tipo de demarcação da reserva em entrevistas concedidas em abril.
Também há polêmica em torno das fronteiras com a Guiana e a Venezuela, zona propícia a conflitos e ao narcotráfico. Será discutido se essas áreas poderão fazer parte da reserva indígena, com a possibilidade de atuação do Exército na segurança local, ou se serão também excluídas de Raposa Serra do Sol.
- Deve ser discutido o modelo (de demarcação) em ilhas de preservação. Precisamos discutir opções minimamente viáveis. O que não pode é você criar um estado e depois criar uma reserva que tenha 50%, 60% do seu tamanho. Esse processo será um aprendizado para o país - disse Gilmar, em abril.
- Parece-me quase certo que (a demarcação da reserva) significaria a falta de uma base física para que o Estado de Roraima exerça sua autonomia - completou Celso de Mello.
Há 19 mil habitantes na reserva, dos quais pouco mais de uma centena não são índios. A área, de 1,67 milhão de hectares, é registrada em cartório como de propriedade da União. Em 1998, o governo Fernando Henrique Cardoso declarou o local como de posse permanente indígena. Em 2005, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou decreto homologando a demarcação das terras de forma contínua. Em abril deste ano, a PF começou a retirada de não-índios, mas o STF determinou a suspensão da operação, até que a demarcação fosse julgada pelo tribunal. Ontem, um grupo de índios a favor da demarcação em área contínua fez uma manifestação na frente do STF.
'A gente não vai aceitar limite de arrozeiro'
Índios avisam que STF não os impedirá de ocupar as terras
BOA VISTA e BRASÍLIA. Na véspera da sessão do Supremo Tribunal Federal sobre Raposa Serra do Sol, representantes dos 18 mil índios que vivem na reserva avisam que não deixarão de ocupar nenhuma área, mesmo que a Corte autorize a permanência de arrozeiros e agricultores brancos. A Polícia Federal recebeu reforço para monitorar a área nos próximos dias e a Força Nacional de Segurança está na região.
- O STF pode tomar qualquer decisão que seja, mas aquela terra ali nós vamos continuar ocupando. Os povos indígenas não vão sair de lá, sendo a demarcação em área continua ou em ilhas. A gente não vai aceitar limite de arrozeiro ou de alguém que queira limitar nossa terra - disse o coordenador-geral do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Dionito José de Souza.
O ministro da Justiça, Tarso Genro, voltou a afirmar que, se o STF anular a homologação da reserva em terras contínuas, poderá provocar revisões em massa de outros territórios indígenas já demarcados pelo governo federal. O decreto foi assinado pelo presidente Lula em 2005 e, desde então, tem sido encarado com um marco da política indigenista do governo federal.
- A revisão abre um precedente que pode levar instabilidade às decisões tomadas pelo governo em demarcações chanceladas - disse Tarso.
O ministro disse que o governo manterá tropas da Força Nacional e da Polícia Federal em locais estratégicos na reserva pelo tempo que for necessário. O governo teme que, qualquer que seja o resultado da sessão de amanhã, grupos extrapolem em protestos.
- Não será por falta de pessoal que teremos instabilidade na região - disse Tarso.
Marina apela por demarcação contínua
A senadora Marina Silva (PT-AC) apelou ao Supremo para que aprove a demarcação contínua. Ela disse que uma decisão favorável aos arrozeiros, que querem preservar ilhas para a atividade agrícola, pode pôr em risco a segurança dos índios em centenas de outras reservas.
- Aceitar a ação dos fazendeiros seria um precedente muito grave, que pode gerar um efeito-dominó sobre outras reservas. A expectativa da sociedade é que não haja retrocesso - disse a ex-ministra do Meio Ambiente.
Para ela, a aprovação da faixa contínua, demarcada originalmente pela Funai no governo Fernando Henrique Cardoso, não põe em risco a soberania do país.
- Não há incompatibilidade entre a defesa do território e a presença tradicional indígena. Em muitas regiões, o que assegura a nossa soberania é justamente a presença dos índios, que são tão brasileiros quanto os brancos.
Opinião
A quem interessa
O julgamento final da forma de delimitação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, que se inicia hoje no Supremo Tribunal Federal (STF), vai além da causa em questão. E não é apenas porque, como admitem ministros da Corte, o veredicto balizará o desfecho de outros processos idênticos - há 114 litígios do tipo tramitando na Justiça. Tanto quanto isso, está em discussão o alcance do poder do Estado brasileiro de preservar a Federação, diante de interesses de comunidades indígenas em torno das quais orbitam grupos ideologizados com ramificações no mundo inteiro, incluindo organismos internacionais.
Um primeiro aspecto do conflito entre a delimitação da reserva em terras contínuas e em ilhas - desta maneira para preservar a produção agrícola do estado (arroz) - é o destino de Rondônia. Delimitada em bloco, Raposa Serra do Sol e mais a reserva dos ianomâmi distribuída entre Brasil e Venezuela abrangerão cerca de 50% do território de Rondônia, reduzindo a arrecadação do estado de tal maneira que ele será rebaixado a território e voltará aos subsídios do Executivo federal. Há, portanto, nessa hipótese, um ônus para o contribuinte.
Na visão politicamente correta, por definição maniqueísta, índios, os "bons", estão em choque com brancos, os "maus", na defesa de um alegado patrimônio antropológico. Não é verdade: há grupos de índios também ao lado dos fazendeiros, pois sobrevivem da agricultura local.
Além de ONGs, políticos, índios e fazendeiros, também militares acompanharão de perto o julgamento. Aquela é uma região estratégica, fronteiriça à "bolivariana" Venezuela - país em vias de se converter em potência militar - e rota de traficantes. A reserva binacional dos ianomâmis há tempos causa ruídos em função de pressões internacionais para que haja a possibilidade da criação de "nações indígenas". O risco, segundo alertou em artigo ontem no GLOBO o embaixador Rubens Barbosa, está na Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, negociada durante mais de uma década na ONU, aceita pelo Brasil em 1993 e ratificada pelo país no ano passado. O tratado internacional estaria em conflito com a Constituição brasileira.
O governo não está unido em torno do assunto. Mas o aparelho indigenista existente no Estado é ativo. Chegou mesmo o momento de a Justiça estabelecer parâmetros para proteger os interesses nacionais, e não de grupos, nessas delimitações.
O autor desta matéria se equivocou quanto à localização da reserva Raposa Serra do Sol. A referida reserva localiza-se no estado de Roraima.
CONTRA A DEMARCAÇÃO
Coronel vê risco de surgir "nação étnica" na fronteira
Para Fregapani, homologação criaria um "Curdistão"
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
Gélio Fregapani, 72, diz conhecer como poucos o Estado de Roraima, onde pisou pela primeira vez no início dos anos 1960. Coronel reformado do Exército, foi um dos fundadores do Cigs (Centro de Instrução de Guerra na Selva), trabalhou por dez anos na Abin (Agência Brasileira de Inteligência). Diz que o Exército é "fervorosamente contra" a demarcação contínua da reserva.
Apontado pela PF como um dos responsáveis por municiar os arrozeiros que atacaram índios, disse que, se isso tivesse ocorrido, a PF não estaria mais na região. "Esse pessoal não pode competir comigo." (LF E SL).
FOLHA - Por que a Raposa/ Serra do Sol deve ser demarcada em ilhas?
GÉLIO FREGAPANI - A demarcação contínua de uma grande área indígena, com diferentes etnias e culturas, provoca a criação de algo parecido com o Curdistão, uma nova nação étnica separada dos países. Se for em ilhas, não tem problema nenhum.
FOLHA - Há pressão internacional para formar uma nova nação?
FREGAPANI - Sim. Essa história de índios nômades é falácia. Claro que existe possibilidade de migrações, mas os índios não são nômades. Não é necessária uma área do tamanho de Portugal para isso tudo. Na fronteira é o perigo.
FOLHA - O sr. defende que os índios não levem em conta sua cultura e se considerem apenas brasileiros?
FREGAPANI - Sim. Se nós [fizermos isso], damos [permissão] à criação de nações dentro do Brasil, estamos contribuindo para desagregar o país. Os EUA desejam isso, a Inglaterra, a Alemanha. Porque querem aquelas jazidas que têm lá e querem lidar com um governo mais dócil, não com o governo brasileiro. Se o Brasil ganhar a Raposa, haverá condições de contestarmos outras [terras].
FOLHA - O governo diz que pode entrar a qualquer tempo nas terras.
FREGAPANI - O governo está dividido. Há uma parcela de traidores no governo. Além do mais, o Exército é fervorosamente contra essa reserva, a ponto de poder haver motins se a demarcação for contínua.
FOLHA - Quem são os traidores?
FREGAPANI - Não vou citar. Há um esforço para dividir o Brasil. Chega um momento em que nem o Exército consegue entrar. Nenhuma fronteira é sagrada. Só ficam razoavelmente definidas quando habitadas. Fala-se da floresta, mas é para desviar o assunto. Querem é a serra que separa o Brasil da Venezuela e das Guianas, por causa do potencial mineral.
FOLHA - Os índios não têm direito?
FREGAPANI - Eles têm toda a terra de que precisam. Aquilo é grande. É terra demais e os índios não estão ligados a isso. Isso é coisa de estrangeiro.
FOLHA - A PF o acusa de ajudar os arrozeiros com táticas de guerrilha.
FREGAPANI - Se tivesse ensinado táticas de guerrilha não tinha um policial federal lá. E quem afirmou isso estaria morto. Esse pessoal não pode competir comigo. Agora, quando a região se declarar independente, aí sim vou fazer guerrilhas.
JANIO DE FREITAS
Velha expectativa
A probabilidade de conflitos sangrentos em Roraima é a mesma história que aqui se reproduz há 500 anos
A probabilidade de conflitos sangrentos em Roraima entre indígenas e, de outra parte, cinco grandes arrozeiros, empregados seus e 21 famílias de pequenos agricultores, motivados pela ocupação de terras a ser julgada hoje pelo Supremo Tribunal Federal, é a mesma e ininterrupta história que aqui se reproduz há 500 anos, 186 de país livre para construir sua identidade, 119 anos de República para instalar Ordem e Progresso. É quase inacreditável que todo esse passado de séculos ainda esteja tão presente, jamais confrontado por um propósito verdadeiro e nacional de dar aos indígenas o respeito por sua condição humana.
Das 258 famílias que concordaram em deixar a área oficializada como reserva indígena Raposa/Serra do Sol, o governo falta indenizar perto de 50. A expectativa, porém, é que estes e outros ainda remanescentes na área não se envolvam nas reações previstas, qualquer que seja a decisão do STF. Dadas as providências preventivas, enfrentamentos mais preocupantes para o futuro próximo do que em reação imediata ao julgamento, segundo deduções da Polícia Federal a respeito dos grandes arrozeiros e vários pequenos agricultores.
Deixar, portanto, o futuro próximo entregue aos cuidados do governo de Roraima, de notória parcialidade em favor dos grandes arrozeiros, será uma temeridade do governo Lula. Tanto mais que os comandos locais do Exército opõem-se à reserva como definida no governo Fernando Henrique e homologada no atual, em 2005.
Índios a favor de reserva ameaçam fazer invasões
À espera de julgamento de homologação de reserva, indígenas preparam festividades
O CIR (Conselho Indígena de Roraima) diz que repassou determinação aos índios de manter a paz, seja qual for a decisão do Supremo hoje
LUCAS FERRAZ
ENVIADO ESPECIAL À RAPOSA/SERRA DO SOL (RR)
Indígenas favoráveis à demarcação contínua da Raposa/Serra do Sol preparam uma série de festividades e alguns já falam que, seja qual for o resultado do julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal), vão invadir as fazendas dos arrozeiros dentro da reserva.
"Vai morrer índio ou vai morrer branco, mas vamos lutar por nossa terra", afirmou o macuxi Pedro Brasil, 28, que ajudava ontem na organização dos festejos na Vila Surumu (226 km de Boa Vista), porta de entrada da Raposa/Serra do Sol. O CIR (Conselho Indígena de Roraima), contudo, afirma que a determinação repassada aos índios é de manter a paz.
A declaração de Pedro Brasil, porém, ecoa com a preocupação do governo de como a decisão do STF será recebida pelos indígenas, que esperam há ao menos dez anos uma definição sobre a área.
Na Vila Surumu são várias faixas espalhadas sobre a demarcação, algumas clamando pelo direito dos povos indígenas àquelas terras, outras com dizeres como "pátria ou morte, venceremos!", esta pregada na frente da subprefeitura da vila, administrada pela Prefeitura de Pacaraima, sob o comando de Paulo César Quartiero (DEM), o líder dos rizicultores.
Quartiero viajou a Brasília para acompanhar o julgamento -assim como o governador de Roraima, José Anchieta Júnior (PSDB). "A decisão será um divisor de águas para o Estado", disse Anchieta. "Não sou contra os índios, mas sim a favor do desenvolvimento econômico do Estado." A produção de arroz responde por 6% da economia roraimense.
Apesar das tensões, a véspera do início do julgamento transcorreu sem incidentes. A Vila Surumu amanheceu com o som de música sertaneja, que tocou durante horas. Crianças nadavam no rio Surumu, e o descanso da tarde em redes, após almoço servido em fila e distribuído após a entrega de fichinhas, só foi interrompido pelos sobrevôos de helicópteros da Polícia Federal e do Exército, que monitoram a área.
Na Vila Surumu, considerada um barril de pólvora pela presença de índios (pró e contra demarcação contínua) e arrozeiros, há homens da Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança. Outros agentes, prontos para atuar a qualquer momento, estão de plantão em Boa Vista e Pacaraima.
Há um temor porque o local também foi o escolhido para manifestação hoje de índios que apóiam os arrozeiros.
"Mas vamos esperar o resultado pacificamente", adiantou o tuxaua (espécie de cacique) José Brazão de Braga, do Sodiur (Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima), organização ligada aos evangélicos e aos seis rizicultores que ainda estão na área, que tem quase 1,7 milhão de hectares -espaço em que caberia 12 cidades de São Paulo.
"Vamos dar uma aula para o Supremo, como sempre fazemos aos brancos", disse o índio macuxi Martinho, este do CIR e próximo dos católicos. Ele também organiza as festividades dos índios. "Mas o STF é a nossa última esperança", admitiu.
A festa terá cantos e danças tradicionais dos índios macuxi, etnia predominante na Raposa, que engloba também outras quatro etnias, além de rezas (católicas), passeata e muita comida -só para esta semana 15 bois foram abatidos, além de muita batata e mandioca.
Um grupo de 25 índios da reserva foi de avião a Brasília para acompanhar o julgamento. Ontem, os indígenas protestaram na Praça dos Três Poderes. Júlio Macuxi, um dos líderes dos índios, espera para hoje a presença de mais 150 indígenas de outros Estados e representantes de sindicatos que apóiam a demarcação contínua.
Colaborou FERNANDA ODILLA , da Sucursal de Brasília
Planalto espera hoje saída intermediária no Supremo
Jobim diz a Lula que tendência na corte é modificar demarcação contínua em Roraima
Eventuais reclamações, se alteração no modelo atual acontecer, irão recair mais sobre o STF do que sobre o Executivo, avalia o Planalto
KENNEDY ALENCAR
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi avisado pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, de que a tendência do STF (Supremo Tribunal Federal) é modificar o modelo de demarcação contínua proposto pelo governo para a reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima.
Ex-presidente do Supremo, Jobim mantém laços com ministros da corte. A decisão do STF, que deverá ficar num meio-termo entre o desejo dos índios e dos produtores de arroz, é conveniente politicamente ao Planalto.
Jobim alertou Lula a respeito da tendência do STF de reconhecer "ilhas não-indígenas", como diz reservadamente um dos ministros do tribunal, na reserva. O presidente, então, recuou e deixou todo o eventual ônus político da decisão nas mãos do STF.
As esperadas manifestações de descontentamento das partes em litígio na reserva recairão mais sobre o Supremo do que sobre o Executivo na hipótese de alteração do modelo de demarcação contínua.
A tendência do Supremo espelha contradições do próprio governo. O ministro da Justiça, Tarso Genro, e o antecessor dele, Márcio Thomaz Bastos, trabalharam pela demarcação contínua. Eles temem que o STF dê respaldo jurídico para ruralistas de outras áreas indígenas reverem demarcações.
Já o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR), e o ministro da Agricultura, o peemedebista Reinhold Stephanes, fizeram pressões nos bastidores em prol dos produtores de arroz e de comunidades não-indígenas que gravitam economicamente em torno dessa produção agrícola na área. Ambos alegaram que parte dos índios é favorável à presença dos arrozeiros na região.
Lula já fez um discurso em favor dos interesses indígenas.