Aqui discordo do professor do Bolovo:
Ministério da Utopia
DEMÉTRIO MAGNOLI - SOCIÓLOGO E DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP
Intelectuais tendem à utopia, pois ela precisa de uma descrição e eles são seus autores. Isaiah
Berlin não está entre os filósofos mais célebres precisamente porque é um pensador antiutópico. “As
utopias têm o seu valor — nada amplia de forma tão assombrosa os horizontes imaginativos
das potencialidades humanas —, mas como guias da conduta elas podem se revelar literalmente
fatais”, anotou Berlin. As utopias almejam a completa realização de um conjunto de premissas, com a
exclusão de todas as outras. É um caminho muito perigoso, “pois, se realmente acreditamos que tal
solução é possível, então com certeza nenhum preço será alto demais para obtê-la”.
A democracia constitui um sistema político avesso à utopia porque, por definição, rejeita atribuir
estatuto de verdade incontestável a qualquer conjunto de premissas ideológicas. Os intelectuais utópicos
têm um lugar na democracia — o de instigadores do debate público. Mas o sistema democrático de
convivência de ideias contraditórias se estiola quando eles são alçados à posição de sábios oficiais e
suas utopias são convertidas em verdades estatais.
Samuel Pinheiro Guimarães, até outro dia secretário-geral do Itamaraty, foi guindado à
Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). No novo cargo, elaborou um documento intitulado “O mundo
em 2022”, ainda em versão preliminar, que circula no governo e no Itamaraty. Trata-se de um
delineamento das tendências do sistema internacional, com propostas de políticas
estratégicas do Brasil. Dito de modo direto, é a plataforma de uma utopia ultranacionalista, a ser aplicada
num hipotético governo de Dilma Rousseff, que colide com os valores e as tradições da democracia
brasileira.
Num texto escrito em português claudicante, o intelectual utópico expõe uma doutrina
antiamericana que solicita uma curiosa articulação estratégica entre Brasil, Rússia, Índia e China “para
reformar o sistema internacional e torná-lo menos arbitrário”. Os BRICs, acrônimo cunhado no interior de
um banco de investimentos, constituem um “bloco” apenas na acepção restrita de que seus integrantes
passaram a influenciar a governança econômica global. Eles, porém, não compartilham interesses
geopolíticos relevantes — uma evidência clamorosa que escapa por completo à percepção de
Guimarães, moldada por um obsessivo antiamericanismo.
Os equívocos teóricos pouco significam, perto das prescrições políticas. Nostálgico do “Brasil
Potência” dos tempos de Ernesto Geisel, Guimarães atribui ao Estado os papéis de “estimular o
fortalecimento de megaempresas brasileiras (...) para que possam atuar no cenário mundial globalizado”
e de conduzir um programa de investimentos em pesquisa e desenvolvimento de amplas implicações
militares. Os significados desta última proposição podem ser entrevistos na passagem em que o autor
define o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) como o “centro” de um processo ameaçador de
“concentração de poder militar”. A leitura do documento oferece indícios sugestivos para a
compreensão da lógica subjacente à aproximação entre Brasil e Irã e à operação diplomática brasileira
de cobertura do programa nuclear iraniano.
No programa ultranacionalista, ausências falam tanto quanto presenças. Ao longo de 54 itens,
não há nenhuma menção aos direitos humanos. Não é surpreendente: um livro de Samuel Pinheiro,
publicado em 2006, qualificou a defesa dos “direitos humanos ocidentais” como uma forma de dissimular
“com sua linguagem humanitária e altruísta as ações táticas das Grandes Potências em defesa de seus
próprios interesses estratégicos”. A militância do governo Lula contra a política internacional de direitos
humanos — expressa na ONU, em Cuba, no Irã, no Sudão, na China e em tantos outros lugares — não
é um fenômeno episódico, mas reflete uma visão de mundo bem sedimentada. Lastimavelmente, as
ONGs brasileiras de direitos humanos financiadas pela Fundação Ford trocaram a denúncia de tal
militância pela aliança com o governo na difusão da doutrina dos “direitos raciais”.
A utopia regressiva de Samuel Pinheiro colide com a Constituição, que veta a busca de armas
nucleares e situa a promoção dos direitos humanos no alto das prioridades de política externa do Brasil.
Se a sua plataforma política aparecesse na forma de artigo, isso não seria um problema — e, talvez, nem
mesmo uma fonte de debates interessantes. As coisas mudam de figura quando ela emerge como
documento de Estado, produzido num ministério encarregado de formular as diretrizes estratégicas do
país.
O governo Lula exibe, sistematicamente, a inclinação para partidarizar o Estado. A
contaminação ideológica da política externa é uma dimensão notória dessa inclinação. Há, contudo, um
antídoto contra a doença, que é a supervisão parlamentar das diretrizes estratégicas de política externa.
Nos EUA, uma nação presidencialista como a nossa, as prioridades e os orçamentos do Departamento
de Estado são submetidos ao crivo do poderoso Comitê de Relações Exteriores do Senado, expressão
do controle social, bipartidário, sobre uma política de Estado. O Senado brasileiro tem uma Comissão
de Relações Exteriores e Defesa Nacional. Entretanto, sua gritante ineficácia, que exprime uma carência
quase absoluta de poder real, proporciona ao governo as condições para a continuidade da folia
ideológica em curso.
A SAE foi concebida como uma jaula dourada para acomodar (e ridicularizar) Roberto
Mangabeira Unger, quando ele aderia ao governo que definira como “o mais corrupto da história”. Agora,
sob Guimarães, a jaula transformase em linha de montagem de uma utopia ultranacionalista que
funcionaria como a régua e o compasso da inserção internacional do Brasil. A nação tem o direito
inalienável de se proteger contra o Ministério da Utopia, sujeitando a política externa ao
escrutínio democrático dos parlamentares.
DEMÉTRIO MAGNOLI
E-mail:
demetrio.magnoli@terra.com.br