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Mensagem
por Marino » Sáb Nov 29, 2008 12:58 pm
Equador expõe divisão sul-americana
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Por mais que o governo brasileiro não queira "esquentar mais a panela" da crise com o Equador, como diz Marco Aurélio Garcia, assessor especial da Presidência, o fato é que a "albanização" do litígio na quarta não só o esquentou mais como acabou por formalizar uma nítida divisão entre os governantes sul-americanos.
Recapitulando: no dia 21, o governo brasileiro chamou para consultas seu embaixador em Quito, Antonino Marques-Porto, em protesto pelo fato de o presidente Rafael Correa ter decidido recorrer a um tribunal internacional para não pagar crédito de US$ 243 milhões concedido pelo BNDES para hidrelétrica igualmente embargada pelo Equador. A iniciativa foi considerada inamistosa pelo governo brasileiro.
No dia 26, Correa esquentou um pouco a panela ao oferecer-se para participar de uma reunião de cúpula da Alba (Alternativa Boliviariana para as Américas, um conglomerado formado por Venezuela, Bolívia, Nicarágua, Honduras, Cuba e Dominica).
Deles obteve solidariedade contra o Brasil, ainda que o país não tenha sido expressamente mencionado. Mas o presidente do Equador jogou o Brasil no saco dos "mesmos de sempre", que estariam pressionando o país que luta pelo não-reconhecimento "da clamorosa ilegalidade da dívida".
"Mesmos de sempre" é um bordão usualmente adotado pela esquerda para referir-se aos Estados Unidos ou ao "imperialismo", vilão permanente em todas as crises da região.
Marco Aurélio Garcia, por mais que ressalve que não comenta declarações que não leu, não se contém e rebate: "Se ele acha que o Brasil está entre os mesmos de sempre, está completamente equivocado".
A divergência apenas leva para a vida real uma divisão que a mídia internacional vem fazendo há tempos entre uma esquerda supostamente moderada, liderada por Lula, e uma esquerda supostamente populista, comandada por Hugo Chávez, o presidente da Venezuela.
Agora, a divergência ideológica ficou ainda mais nítida. Basta lembrar que, na cúpula da Alba, Chávez foi enfático, como de hábito: "Já basta de livre mercado" (a cúpula fora convocada para discutir respostas "bolivarianas" à crise global).
Já Lula assinou, na cúpula do G20 em Washington um texto que diz exatamente o oposto: "Nosso trabalho será guiado pela crença compartilhada de que os princípios de mercado, de comércio e regimes de investimento abertos (...) estimulam o dinamismo, a inovação e o empreendedorismo que são essenciais para o crescimento econômico, o emprego e a redução da pobreza".
Não há, portanto, a mais leve sombra de algum ponto em comum entre "basta de livre mercado" e a crença nos "princípios de mercado".
É claro que retórica é uma coisa e a vida real pode ser outra. Por muito que critique os Estados Unidos, Chávez aumentou de 68%, em 2001, para 72%, em agosto de 2008, a porcentagem do petróleo venezuelano que exporta para os EUA.
O conflito com o Equador trouxe para a vida real o confronto retórico. Se Quito não honrar, como ameaça, os pagamentos dos US$ 243 milhões concedidos pelo BNDES, põe em risco os CCRs (Convênios de Crédito Recíproco) -espécie de câmara de compensação entre os bancos centrais dos países da Associação Latino-Americana de Integração. Quando uma transação comercial é inscrita no CCR, o banco central do país importador responsabiliza-se ante o banco central do país exportador pelo pagamento da operação.
"Se a situação com o Equador afetasse o mecanismo dos CCRs, não teríamos mais um instrumento para facilitar a exportação de serviços", diz Marco Aurélio. Exportação de serviços é parte essencial do processo de integração sul-americana, prioridade um da diplomacia brasileira.
A divergência tem também um lado cênico: o governo brasileiro acha errado o método Correa de levar os problemas "para o microfone", em vez de para a "mesa de negociações".
No mês que vem, todos os lados que acabaram se envolvendo direta ou indiretamente no episódio estarão reunidos na Cúpula da América Latina e do Caribe, na Costa do Sauípe. À disposição, tanto mesa de negociações como microfones. A ver se predomina a divisão cada vez mais nítida ou se há uma acomodação que a disfarce.
"A reconquista da soberania perdida não restabelece o status quo."
Barão do Rio Branco