A retirada americana do Afeganistão
Alexandre Reis Rodrigues
Não obstante as “reservas” dos militares americanos sobre o estabelecimento de um calendário de retirada do Afeganistão, o Presidente Obama confirmou o que tinha anunciado em Dezembro de 2009, no célebre discurso que então fez em West Point: que a retirada se iniciaria em Julho deste ano. Não poderia ser de outra forma, a menos que surgisse uma situação inesperada. Não surgiu.
No entanto, por momentos, dada a pressão feita sobre o Presidente, ainda se pensou que a decisão pudesse ser revista. O Partido Republicano, em especial Mc Cain, nunca deixou de tentar levar o general Petraeus a tornar pública a sua discordância, mas este não foi mais longe do que deixar transparecer algumas reservas e mostrar-se surpreendido com a dimensão ambiciosa da retirada, tal como anunciada a 22 de Junho. O secretário-geral da NATO ao declarar, por altura da Cimeira de Lisboa, que não havia alternativa a continuar no terreno e que a Aliança deveria ir até onde necessário pareceu dar também uma ajuda ao ponto de vista dos militares americanos; mas como está visto, neste processo, a NATO pouco conta.
A opção política do Presidente estava feita. Só faltava preparar o caminho para a sua concretização. Segundo alguns observadores próximos da Casa Branca, a substituição do general James Jones por Thomas Donilon, próximo do Vice-Presidente Joe Biden (que se mostrou contrário ao “surge” anunciado no discurso de West Point) pode ter sido o primeiro passo. O último, muito recente, foi o convite para Petraeus tomar o lugar de Director da CIA e a substituição de Robert Gates por Leon Panetta.
A morte de Bin Laden, por acção de um comando de forças de operações especiais, a dois de Maio, acabou por ajudar a criar na opinião pública a ideia de que a retirada começava a fazer sentido. Mas, não obstante a decisão estar tomada, o assunto continua a ser discutido. Alguns mantêm a expectativa de que seria possível vencer os talibãs; estão abertamente contra a retirada. Outros, os que não reconhecem existir essa possibilidade, dividem-se entre os que admitem que o prolongar o esforço militar por mais algum tempo permitiria enfraquecer mais o inimigo e os que não imaginam ser de esperar qualquer alteração radical nas poucas expectativas de uma solução política. O futuro dirá quem tinha razão.
Os talibãs sabem que, mais tarde ou mais cedo, os EUA retirarão. Basta-lhes, portanto, esperar pelo seu momento de regressar ao poder; entretanto, não farão cedências que diminuam as suas possibilidades. No entanto, mal grado a radicalização instalada no processo, aparentemente há ainda espaço para negociações. Aliás, a Alemanha está presentemente a mediar mais uma tentativa, por enquanto, apenas ao nível de representantes das partes.
Há nesse processo um jogo perigoso que é preciso evitar; ceder à tentação de procurar os moderados, tirando partido do facto de os talibãs não serem um grupo monolítico. Deixar de lado os radicais pode facilitar, de momento, o processo mas, a prazo, é, com certeza, receita para o desastre; isto é, para a guerra civil. Negociações sérias terão necessariamente que incluir Mullah Omar, o único com influência suficiente para se comprometer em nome do conjunto e, assim, evitar uma guerra entre facções.
A questão, no entanto, não é apenas interna do Afeganistão; é, em grande parte, um problema regional onde se jogam interesses divergentes e do qual os vizinhos não se irão alhear. Os três principais a ter em conta são o Irão, a Índia e o Paquistão; mas muito próximos estão também a China, a Rússia, a Arábia Saudita e os Emiratos Árabes Unidos. Todos, de uma forma ou de outra, terão que ser parte do processo se o que se procura é uma solução duradoura, mesmo sabendo-se que daí virão mais dificuldades para a procura de um quadro de entendimento.
Irão, Índia e Rússia, por exemplo, estão sobretudo preocupados com o regresso dos talibãs ao poder; em especial a Índia que vê nessa situação uma ameaça aos seus interesses de segurança regional. O que prefeririam seria unirem-se numa aliança anti-talibã, fazendo renascer a Aliança do Norte. O Paquistão e a Arábia Saudita estão no extremo oposto; o primeiro porque não pode dispensar o “peão” talibã como forma de compensar a inferioridade militar perante a Índia e porque precisa de controlar o Afeganistão para ter mais profundidade estratégica (uma espécie de “back door”); a Arábia Saudita porque não quer um desfecho que facilite a ascensão do Irão como potência regional.
Admitindo, apesar de tudo, que as negociações progridem, os dois temas principais de debate serão a constituição de um governo de coligação e a completa retirada da presença militar estrangeira. Kissinger acrescenta mais um: a adopção de um mecanismo de verificação do acordo que for feito. Provavelmente tem razão porque os talibãs não vão certamente confiar num governo a que falta credibilidade e praticamente nada fez para combater o flagelo da corrupção. Mas um mecanismo de verificação implica uma presença internacional ou a manutenção de uma força residual dos EUA o que os talibãs dificilmente aceitarão.
Neste contexto é difícil antecipar o desfecho desta longa crise; estamos perante um puzzle complexo cuja solução não depende de “a” ou de “b” mas sim de um conjunto de interesses que vai ser difícil fazer convergir para o mesmo fim. Mas ainda estamos no início do processo e, portanto, com várias hipóteses em aberto; para que não descambe para o lado errado será necessário que a coligação que constitui a ISAF resista à tentação de começar a retirar desde já em números significativos, pois daí viria perda de poder negocial para o Ocidente.
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