O "Novo século americano": interrupção por 92 anos
por Mike Whitney [*]
O tempo da América como superpotência está a chegar ao fim. A crise financeira foi a última gota. Seja qual for a boa fé que tenha restado após a invasão do Iraque, o desprezo par com tratados internacionais e o desavergonhado desprezo pelo direitos humanos, está agora acabado. Os Estados Unidos poluíram o sistema económico global com papéis sem valor: títulos apoiados por hipotecas. E, ao assim fazê-lo, empurraram seis mil milhões de pessoas para uma longa e penosa recessão. Isso é algo que não se pode esquecer facilmente.
A ira para com os EUA parece estar a emergir por toda a parte em simultâneo. Foi particularmente perceptível na recente abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas. Tipicamente, esta é um evento tedioso cheio de verborragia política vazia e de cerimónias pretensiosas. Mas não desta vez. Com o mundo a escorregar rumo a uma recessão criada pelos EUA, a paciência esgotou-se, e líderes estrangeiros começaram a atacar os EUA com mais veemência. Os discursos foram ásperos e acrimoniosos. Hugo Chavez, da Venezuela, resumiu o estado de espírito das reuniões assim:
"Penso que, mais cedo ou mais tarde, este império cairá – em benefício de todo o mundo, permitindo um equilíbrio no mundo a ser criado: policêntrico e multipolar. Isto garantirá paz no mundo. Para a criação deste mundo multipolar estamos a dar a nossa pequena contribuição".
Chavez gosta do povo americano mas opõe-se ao Império Americano; é simples. Ele foi o primeiro líder estrangeiro a oferecer assistência médica e alimentar às vítimas do Furacão Katrina. (Bush recusou sua oferta) Ele também fornece toneladas de óleo de aquecimento a famílias de baixo rendimento no Nordeste dos EUA.
A objecção de Chavez é o modelo "unipolar" de governação global de Bush pelo qual todas as decisões cruciais do mundo – sobre todas as coisas, desde aquecimento global a proliferação nuclear – são tomadas por Washington. Ninguém gosta que lhe digam o que fazer, assim como ninguém gosta que os EUA imiscuam-se constantemente nos seus assuntos. Eis porque ninguém dos que compareceram à assembleia da ONU parecesse particularmente incomodada pelo facto de os mercados financeiros dos EUA estarem em queda livre. Isto chama-se schadenfreude, ter prazer com o infortúnio de outro, e na semana passada houve muito disto nas Nações Unidas.
Muitos dos notáveis que ali compareceram pareciam acreditar que a súbita baixa da América representa oportunidades para uma mudança no modo como o mundo é dirigido. Isso é o que toda gente quer, mudança. Mudança real. Ninguém quer mais outros oito ano como os últimos. Eis porque o tema central do discurso de Chavez foi reiterado múltiplas vezes pelos outros líderes mundiais. Eles rejeitam o sistema actual e querem um papel maior na modelação do futuro do mundo.
Isto não significa que o mundo odeie a América. Significa apenas que todos querem uma pausa nas torturas, nos sequestros, no bombardeamento de civis e, agora, no contágio financeiro que os EUA disseminaram através de todo o sistema global. A falta de regulamentação dos EUA e as políticas monetárias de juros baixos aumentaram a inflação, desencadearam tumultos alimentares e dispararam os preços do petróleo. Chega. Os Estados Unidos são como o convidado para jantar que não sabe quando chega a hora de voltar para casa. Talvez um toque de recessão ajude a reequilibrar a abordagem de Washington e torne os seus líderes mais sensíveis às necessidades do resto do mundo. Em todo caso, outros países já estão a preparar-se para um mundo em que o papel da América será grandemente reduzido.
O jornalista John Gray resumiu isto assim no seu artigo em The Observer, "A Shattering Moment in America's fall from Power":
"O controle dos acontecimentos já não está em mãos americanas ... Tendo criado as condições que produziram a maior bolha da história, os líderes políticos da América parece incapazes de entender a magnitude dos perigos que o país agora enfrenta. Atolados na sua rancorosa cultura de guerras e a brigarem entre si por coisas sem importância, eles parecem inconscientes do facto de que a liderança americana global está em declínio rápido. Um novo mundo que está a vir passa quase desapercebido, um mundo em que a América é apenas uma das várias grandes potências, a enfrentar um futuro incerto que ela já não pode moldar".
Os EUA está prestes a juntar-se à família das nações e a aprender como lidar com os seus vizinhos, quer queira quer não. Simplesmente não há outra opção; o dólar está em queda, os défices estão a subir, e os mercados financeiros estão um desastre. A América ou aprenderá a cooperar ou ficará isolada num mundo que está rapidamente a integrar-se. "Entenda-se ou saia", é a mensagem que Washington precisa aprender rapidamente de modo a adaptar-se a um novo paradigma de poder.
Sim, muito dinheiro ainda irá para operações encobertas e truques sujos patrocinados pela CIA só para manter viva a esperança de que a superpotência será restaurada. Isso é de esperar. Os prósperos patifes na família real britânica ainda sonham com a reconstrução do Império, eles também. Mas, realistas, sabem que é apenas uma fantasia inócua. Dela nada sairá. Os impérios têm uma vida útil curta e é-lhes impossível voltar atrás. Eles habitualmente acabam num campo de batalha juncado de cadáveres ou num incêndio financeiro grandioso que não deixa nada atrás de si excepto um monte de cinzas e cacos de vidro. Podemos apenas ter esperança de que o abismo económico escancarado à frente de todos nós implique menos adversidades do que prevemos. Mas quando uma nação incita à briga, ela não deveria esperar uma colheita de peras doces.
O jornalista Steve Watson relata em Infowars:
"Um membro do Council on Foreign Relations e ex-planeador politico sob o eminente Henry Kissinger do Grupo Bilderberger escreveu uma peça no Financial Times de Londres apelando a uma "nova autoridade monetária global" que teria o poder de monitorar todas as autoridades financeiras nacionais e todas as grandes companhias financeiras globais.
"Mesmo que a operação de resgate financeiro maciço dos EUA tenha êxito, ela deveria ser seguida por algo com ainda maior alcance – o estabelecimento da uma Autoridade Monetária Global para supervisionar mercados que se tornaram sem fronteiras", escreve Jeffrey Garten, tambem um ex-director administrador da Lehman Brothers.
A maiores companhias financeiras globais teriam de registar-se junto à Autoridade Monetária Global (Global Monetary Authority, GMA) e ficarem sujeitas ao seu monitoramento, ou irem para a lista negra. Isto inclui companhias comerciais e bancos, mas também fundos de riqueza soberana, hedge funds gigantes e firmas de private equity [1] . A direcção da GMA teria de incluir banqueiros centrais não só dos EUA, Reino Unidos, eurozona e Japão como também da China, Arábia Saudita e Brasil. Ele seria financiado por contribuições obrigatórias de todos os países capazes e por prémios tipo seguros de companhias financeiras globais – listadas publicamente, possuídas por governos e de capital fechado". (Infowar.com)
O sonho de um governo mundial não morre facilmente, mas ainda assim está morto. O centro do actual sistema financeiro global é o Federal Reserve. Seus rebentos incluem o Council on Foreign Relations, o FMI, o Banco Mundial, o cartel bancário do G-7 e milhares de ONGs predatórias que expandiram as garras da cabala bancária de Washington e o sistema dolarizado por todo o planeta. O neoliberalismo está em colapso. O que estamos a assistir agora são os espasmos erráticos de um paciente cardíaco terminal a entrar nas etapas finais de uma paragem cardíaca. Não há droga ou procedimento médico que possa restaurar a boa saúde da vítima.
Ninguém está a olhar para os EUA ou os seus "pistoleiros económicos" a fim de traçar uma rota para o futuro económico do seu país. Esses dias estão ultrapassados. Os EUA terão de sair por si próprios dos escombros e recomeçar sem as infusões maciças de capital a baixo juro da China, do Japão e dos Estados do Golfo. As torneiras do dinheiro foram fechadas. São de papas ralas e árduos os tempos pela frente. Esse é o preço que se paga por burlar o mundo com a banha da cobra sem valor apoiada por hipotecas e por outros luxos "ilíquidos".
O presidente russo Vladimir Putin resumiu assim os acontecimentos recentes nos mercados financeiros:
"Tudo o que está a acontecer na esfera económica e financeira começou nos Estados Unidos. Isto é uma crise real que todos nós estamos a enfrentar, e o que é realmente triste é que vemos uma incapacidade para tomar decisões adequadas. Isto já não é irresponsabilidade da parte de alguns indivíduos, mas irresponsabilidade do sistema no seu todo, o qual como você sabe tem pretensões à liderança (global".
Ao voltar das Nações Unidas, o ministro das Finanças da Alemanha Peer Steinbrück reflectiu sentimentos semelhantes quando disse:
"Os Estados Unidos são os únicos a serem culpados pela crise financeira. Eles são a causa da crise e ela não está na Europa e nem na República Federal da Alemanha. O impulso anglo-saxão para lucros com dois dígitos e bónus maciços para banqueiros e executivos de companhias foram responsáveis pela crise financeira".
E acrescentou: "As consequências a longo prazo da crise não são claras, mas há uma coisa que me parece provável: os EUA perderão seu status de superpotência no sistema financeiro global. O sistema financeiro mundial está a tornar-se multipolar".
Steinbuck esta simplesmente a reiterar os sentimentos da ministra Angela Merkel que utilizou linguagem mais diplomática na sua crítica:
"A crise actual mostra-nos que se pode fazer algumas coisas a nível nacional, mas a maioria esmagadora deve ser acordada a nível internacional. Devemos pressionar por regulamentações mais claras de modo a que uma crise como a actual não possa repetir-se".
Merkel sabe que a Europa foi cegada pelo sistema desregulamentado da América, o qual permitiu a dominação de vigaristas e trapaceiros. Mesmo agora – em meio ao maior escândalo financeiro da história – nem um presidente de conselho de administração ou director financeiro de um grande banco de investimento foi processado ou levado a uma prisão. Os mercados estado-unidenses são um lugar sem lei e "livre para todos" onde ninguém é responsabilizado não importa quão grande o crime ou quantas pessoas são prejudicadas. Mas há um preço a ser pago por manter um sistema deformado e espoliar investidores, e os EUA pagarão tal preço. A compra de títulos do Tesouro já se reduziu a um engatinhar. Nos próximos meses, a máquina que mantém a América em vida será desconectada totalmente e a tenda de oxigénio será removida. O protegido de Kissinger não está preocupado acerca disso, mas a classe trabalhadora americana deveria estar. Há uma série de ruínas pela frente e muitas pessoas sofrerão desnecessariamente.
Eis como a Spiegel Online apresenta isto:
"A crise bancária está a perturbar a dominância americana dos mercados financeiros e da política mundial. Os países industrializados estão a deslizar para a recessão, a era do turbo-capitalismo está a chegar ao fim e o poder militar estado-unidense está a decair ... Este já não é os Estados Unidos musculoso e arrogante que o mundo conhece, a superpotência que estabelece as regras para todos os demais e que considera o seu modo de pensar e fazer negócios como o único caminho para o êxito.
Uma nova América está no écran, um país que já não confia nos seus antigos valores e ainda menos nas suas elites: os políticos que deixaram de ver os problemas no horizonte, e os líderes económicos, que tentaram vender um mundo fictício de prosperidade aos americanos ... Também está no écran o fim da arrogância. Os americanos estão agora a pagar o preço do seu orgulho". (Spiegel Online, "America loses its Dominant Economic Role")
O presidente Dmitry Medvedev não esteve presente nas cerimónias de abertura nas Nações Unidas, mas vale a pena considerar as suas visões sobre o nascente mundo "multipolar". Numa entrevista recente ele disse:
"Não podemos ter um simples mundo polar. O mundo tem de ter vários pólos. Um mundo policêntrico é o único meio de garantir segurança nos anos futuros. De modo que penso ser esta uma direcção muito prometedora para o nosso país ... O mundo é mais estável quando há um conjunto de grandes e importantes actores políticos. Num mundo multipolar, todos influenciam todos. Trabalharemos para estendê-lo.
Não penso que o mundo bipolar que existiu entre a NATO e o Pacto de Varsóvia (Guerra Fria) tenha quaisquer perspectivas futuras. Mas é claro hoje que o mundo de um pólo único é totalmente incapaz de administrar situações de crise".
Ambos os candidatos presidenciais prometeram continuar a unilateralista Doutrina Bush. Obama está tão ansioso quanto McCain para violar fronteiras soberanas, invadir países que não apresentam nenhuma ameaça iminente à segurança nacional dos EUA, e executar as muitas flagrantes violações de direitos humanos e do direito internacional desde que isso promova os objectivos políticos de mandarins ocidentais. Não há dúvida de que o iminente colapso financeiro trará os nossos líderes de volta à razão e ajudará a restaurar a república. Os EUA precisam de uma política externa que não exija a carnificina de povos nos seus países ou o roubo das suas poupanças para aposentadoria a fim de manter o nosso padrão de vida.
A guerra que Bush lançou contra o mundo – a guerra ao terror – persistirá durante anos depois de o sistema financeiro estado-unidense desmoronar num monte de detritos. A vontade de poder é alimentada pela arrogância, consciência de classe, e um "senso de merecimento" que ainda é mais forte do que a vontade de sobreviver. Isto é a força que anima os impulsos destrutivos e suicidas do conflito actual. E é por isso que a guerra continuará. O tecido social dentro dos EUA será despedaçado muito antes de cessar o combate. Um forte sentido de merecimento cria a crença de que "O mundo é meu para fazer com ele o que quiser; as reclamações dos outros não têm consequência". Estes sentimentos não podem ser mudados através da lógica ou da discussão racional; eles devem ser erradicados com um escalpelo do mesmo modo como seria removido um tumor canceroso.
Há perturbações pela frente. O mundo multipolar está prestes a colidir de frente com o mundo unipolar "baseado na fé" e milhões estão destinados a sofrer. Mas não há dúvida acerca do resultado final. As placas geopolíticas estão a mudar inexoravelmente para longe de Washington. A capacidade da América para travar a guerra será fortemente desgastada quando o capital e os recursos secarem. É só uma questão de tempo antes de a máquina de guerra arrebentar até parar e as tropas retornarem para casa. Quando parar a matança, começará uma verdadeira nova ordem mundial.
02/Outubro/2008
[1] Private equity: Firmas que investem essencialmente em empresas ainda não inscritas em bolsa de valores a fim de alavancar o seu desenvolvimento.
O original encontra-se em
http://www.informationclearinghouse.inf ... e20926.htm