O artigo inteiro pra quem não leu a 2.a parte:
http://www.msia.org.br/ibero-am-rica-ib ... l/861.html
Parceria França-Brasil: implicações estratégicas
24 September, 2009 03:58:00 Editoria
De forma compreensível, as discussões públicas sobre a parceria França-Brasil estão se centrando no pacote de armamentos, mas as suas repercussões estratégicas na presente reconfiguração do cenário mundial vão muito além do salto qualitativo que a incorporação dos novos submarinos, helicópteros e aviões de combate avançados irá por si só proporcionar às Forças Armadas brasileiras (no caso da licitação do Projeto FX2, embora a decisão oficial ainda não tenha sido anunciada, poucos acreditam que ela poderá mudar depois que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou a sua preferência pelo Dassault Rafale).
O Brasil tem antigas relações com a França nas áreas de organização e tecnologia militares. Entre 1918 e 1940, coube à Missão Militar Francesa catalisar uma importante atualização organizacional e na visão estratégica do Exército brasileiro, inclusive no tocante ao emprego militar da aviação. No final da década de 1920, foi lá que estudou Engenharia Aeronáutica o tenente do Exército Antonio Guedes Muniz, que projetou os primeiros aviões brasileiros construídos em série, os biplanos de treinamento Muniz M-7. Mais tarde, na década de 1960, o engenheiro Max Holste chefiou o projeto do Bandeirante, o avião que motivou a criação da Embraer. E também foi a França que proporcionou à Força Aérea Brasileira (FAB) um dos grandes saltos tecnológicos de sua história, com os caças supersônicos Dassault Mirage III, na década de 1970. Assim, os aspectos tecnológicos e militares da parceria estratégica estabelecida entre os dois países em dezembro de 2008, assim oficialmente denominada e referendada pelos presidentes Lula e Nicolas Sarkozy, em 7 de setembro, têm antecedentes históricos e relevância própria, mas o alcance potencial da proposta ultrapassa em muito as repercussões daquelas iniciativas anteriores e dos armamentos em si.
De fato, não é todo dia que um megapacote de aquisição de armamentos como esse é anunciado e este tem sido o aspecto mais ressaltado pela mídia brasileira e internacional, principalmente a francesa, que deu grande destaque às declarações de Lula favoráveis ao caça francês, no que seria a primeira venda do Rafale no exterior. Em termos estritamente militares, embora os aviões de combate costumem chamar mais atenção da mídia e do público em geral, e os 51 helicópteros Eurocopter EC-725 irão sem dúvida proporcionar um importante upgrade às três forças singulares quanto ao uso deste tipo de aeronave, os submarinos são os destaques do acordo.
De um lado, pode-se discutir se as opções feitas foram as melhores, quanto à aquisição dos submarinos convencionais da classe Scorpène e de um casco pronto para o futuro submarino nuclear nacional, em vez de aceitar os desafios de desenvolver a tecnologia convencional alemã dos atuais submarinos da Marinha do Brasil (MB) e projetar o casco do nuclear no País, a exemplo do que fez a Índia com o seu projeto da classe Arihant (que teve assistência russa, mas apenas para o reator nuclear da belonave, já dominado pelo Brasil).
Do outro, porém, fait accompli, é indiscutível que a posse de dez submarinos - um deles nuclear (com a possibilidade de construção de mais um ou dois) - dará à MB e uma capacidade estratégica sem precedentes em sua história, conferindo-lhe a possibilidade efetiva de interditar o acesso à margem ocidental do Atlântico Sul a qualquer configuração de eventuais forças aeronavais hostis, por mais poderosas que sejam. Tal capacidade será ainda maior se parte da futura flotilha de submarinos ficar sediada em uma segunda base operacional, no Nordeste ou no Norte (como prevê a Estratégia Nacional de Defesa), e estiver integrada a um sistema de vigilância que inclua satélites de reconhecimento - outra possibilidade contida na parceria com a França, que deveria ser explorada. O artigo seguinte do nosso correspondente em Wiesbaden, Michael Liebig, reflete em grande medida essa percepção com que o acordo franco-brasileiro está sendo recebido em círculos estratégicos europeus.
Igualmente relevante é o compromisso francês com a compra de 10-12 aviões de transporte KC-390, projeto desenvolvido em conjunto pela Embraer e a FAB, com a possibilidade de participação direta no mesmo. A se confirmar a intenção, seria um forte apoio para as perspectivas de vendas da aeronave no mercado internacional, pois não há muitas "vitrines" como o Armée de l'Air, a Força Aérea francesa.
Ainda mais importante é o aspecto da transferência tecnológica, que obrigará o Brasil a se preparar adequadamente para um processo que poderá proporcionar um efeito multiplicador numa escala bem maior do que a obtida, por exemplo, na parceria com a Itália no projeto do caça-bombardeiro AMX, na década de 1980, que alavancou a Embraer ao seu padrão tecnológico atual. Sem uma contrapartida nacional no estabelecimento de um sólido arcabouço institucional, financeiro e científico-tecnológico para a base industrial de defesa, com a multiplicação de sinergias entre os diversos setores governamentais, militares e civis envolvidos, qualquer acordo do gênero se inviabiliza, deixando o País na condição de mero operador de equipamentos estrangeiros. Para tanto, será imprescindível que as lideranças nacionais de todas as áreas (em especial a tecnocracia fazendária) deixem de olhar a defesa nacional e o reequipamento das F.As. como meros sorvedouros de recursos orçamentários ou luxos de economias avançadas.
Para tais propósitos de integração de esforços, uma "tecnologia" organizacional francesa de grande relevância é a da Delegação Geral do Armamento (DGA), agência subordinada diretamente ao Ministério da Defesa com o mesmo nível hierárquico das demais forças singulares, encarregada do planejamento e coordenação de todos os programas de equipamento das Forças Armadas. Criada em 1961 pelo presidente Charles de Gaulle (que precisou usar de energia para neutralizar a forte resistência dos comandos das forças singulares, melindrados quanto à transferência de atribuições), a DGA é considerada a "quarta força" na estrutura militar francesa e executa uma interface fundamental com a indústria de defesa, os centros de pesquisa militares e civis e ainda supervisiona as escolas de engenharia vinculadas ao Ministério da Defesa, como a célebre Escola Politécnica. Para o Brasil, no impulso da pretendida reforma da estrutura militar, o exemplo da DGA poderia ser seguido no estabelecimento de uma agência semelhante, que não se limitasse meramente às compras de equipamentos, mas desempenhasse um papel integrador e sinérgico, tanto entre as próprias forças singulares, como com os setores civis envolvidos na estrutura de defesa em geral.
Além de todas essas considerações, o impacto estratégico-político da parceria franco-brasileira tem uma dimensão que poucos começaram a avaliar: a criação de uma "manobra de flanco" com um enorme potencial para reforçar o processo dinâmico de reconfiguração da ordem de poder mundial centrada na hegemonia do eixo anglo-americano. E aqui não se está sugerindo que o acordo entre Paris e Brasília seja "antiamericano"; porém, ele representa um importante vetor para o estabelecimento de um novo sistema de relações internacionais que não seja predominantemente influenciado pela visão de mundo anglo-americana, baseada na supremacia militar e financeira (neste particular, é de grande relevância a posição conjunta de Sarkozy e Lula em favor da re-regulamentação financeira e das restrições aos paraísos fiscais). Dada a densidade econômica e política dos dois países nos respectivos continentes, a parceria franco-brasileira poderá desempenhar um papel crucial no estabelecimento de um eixo estratégico Europa-América do Sul em uma dimensão bastante superior à de meros arranjos comerciais. Tal perspectiva se torna ainda mais relevante no âmbito dos entendimentos estratégicos entre a França e a Federação Russa, em curso em várias áreas, cruciais para a consolidação de um eixo eurasiático, o outro "flanco dinâmico" da reconstrução mundial pós-crise global.
A propósito, vale observar uma instigante nota divulgada em 8 de setembro no sítio franco-belga De Defensa, especializado em temas estratégicos, com o sugestivo título "O eixo Brasília-Moscou, símbolo da 'força das coisas'". A nota comenta as repercussões e possíveis desdobramentos do pacote franco-brasileiro e a surpreendente intenção da Rússia de adquirir na França um navio de desembarque anfíbio da classe Mistral e construir outros dois, anunciada em 26 de agosto pelo chefe do Estado-Maior russo, general Nikolai Makarov. Diz o texto:
Não estamos falando aqui de quinquilharias, nem de contas de exportações de boticário, nem mesmo de concorrência comercial e industrial. Falamos da alta política. Somos conduzidos pela simultaneidade das duas notícias sobre as chances de que a França... se torne exportadora de sistemas de armas de altas tecnologias para dois países de grande poder, dois países que se afirmam ou se reafirmam, cada qual à sua maneira, contra a ordem ocidentalista e americanista, dois países que integram o grupo BRIC, que já se manifestou em Ekaterimburgo, há dois meses e meio. (...)
O Brasil e a Rússia são dois países que, por razões diferentes e com abordagens diferentes, estão na primeira linha de batalha contra o sistema do americanismo. Não se nos exija a enunciação de uma teoria política, ou mesmo a sugestão de um complô de aliança, porque pensamos que o que está falando é "a força das coisas" - palavras do general de Gaulle para designar a potência da História - e que a "força das coisas" começa a falar de uma maneira tonitruante, para colocar à luz do dia a realidade de que o sistema americanista está corroído pelos cupins e à beira do colapso. (...)
Para a França, não diremos que "é uma oportunidade" que será seguida pela digitação nas calculadoras dos valores das exportações, ou mesmo do chauvinismo satisfeito pelo valor do material francês... Para a França, essas possíveis exportações para o Brasil e a Rússia abrem (ou reabrem) o caminho para uma época crítica, caracterizada por uma "estrutura de crise", para a reafirmação do seu papel histórico - ou meta-histórico - de fornecedor de soberania e de identidade (enfatizando: para ela e para os outros). Não se exija dos atuais dirigentes franceses que eles expliquem isso... Eles não têm importância, mas trata-se de que as circunstâncias dominantes fazem com que a França continue a ser relevante no essencial - em um sentido e sem hesitação, malgrado os franceses e, sobretudo, as elites francesas, cujas mediocridade e pobreza de espírito são de um prodígio inusitado (sejamos justos: "prodígio", sobretudo, é o fato de que a França ainda possa desempenhar tal papel, a despeito dessa mediocridade e dessa pobreza; mas, também, reconhecimento da potência da "força das coisas").
(...) O país que é um dos mais avançados do sistema do americanismo, que, por detrás das aparências e pelas inclinações de suas elites, o mais sensível à fascinação depreciativa com as quimeras do sistema, está sendo inelutavelmente levado a desempenhar um papel de resistência de primeira linha aos últimos sobressaltos de agressão da derrocada catastrófica do sistema desestruturador do americanismo. As marchas dos armamentos são um meio poderoso dessa resistência. É sem dúvida um fato notável que essa quinquilharia, apesar do seu alto custo e da sua inutilidade fundamental nas guerras de hoje, representem um formidável meio político de resistência à mais terrível ameaça jamais enfrentada pela Civilização. O eixo Moscou-Brasília (aqui mencionado, entenda-se, como símbolo dos acontecimentos) passa por Paris [grifos no original].
Como afirma a maldição chinesa, parece que estamos condenados a viver tempos deveras interessantes - tempos providenciais, poder-se-ia dizer em outras circunstâncias. Não se trata da qualidade das lideranças disponíveis, que deixa muito a desejar em toda parte. Nem Lula e nem mesmo Sarkozy (embora este leve vantagem por conta da superior tradição republicana gaulesa) são homens de Estado com uma visão das suas responsabilidades históricas que pelo menos se aproxime da de líderes como de Gaulle, Kennedy e outros. Não obstante, o quadro de crise estratégica mundial se caracteriza pelo esgotamento das ideologias motrizes das elites hegemônicas do eixo anglo-americano, que está provocando um vácuo que, por sua vez, tende a ser preenchido simplesmente pelo mero efeito da densidade e dimensões das nações maiores, seja em território e população - caso do grupo BRIC - ou em capacidade tecnológico-industrial e iniciativa estratégica, como a França. É essa dinâmica que está permitindo desdobramentos que seriam impensáveis até há bem pouco tempo, como a própria parceria França-Brasil. E é por isso que essa oportunidade histórica não pode ser desperdiçada.
------------------------------------
Sds