Sugiro que releia algumas vezes a parte que Marx explica a reprodução do capital na economia capitalista antes de falar uma aberração dessas. O sistema financeiro e moeda é essencial para justificar a reprodução do capital. Sem isso vira teoria neoclassica.
Uma pequena luz. Observem como uma marxista renomada pensa.
MOLLO, Maria de Lourdes Rollemberg (2004). Ortodoxia e Heterodoxia Monetárias: a Questão da Neutralidade da Moeda. Revista de Economia Política, vol. 24, nº 3 (95), julho-setembro/2004.
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Para Marx, a moeda é responsável pela divisão social do trabalho que só se faz por meio dela e, neste sentido, numa economia capitalista produtora de merca-
dorias, articula etapas e processos de produção separados e insere socialmente as classes sociais por meio da venda da força de trabalho e da realização do lucro monetário.
Para os marxistas, o crédito potencializa a acumulação de capital ao permitir o aumento de ritmo e da escala da produção, ao reduzir custos de circulação e ao
antecipar, sincronizando, tanto a etapa de produção quanto a de circulação, já que com o crédito não é mais necessário esperar a realização de lucros para financiar aumentos de capacidade, e já que também o consumo pode ser antecipado via cré dito e, com ele, a realização de lucros. (Marx, 1974; Foley, 1986; Mollo, 1994)
A concepção marxista admite uma idéia monetária de inflação, a de inflação causada por moeda extra, mas esta, como veremos, é uma idéia bastante diferente
da idéia monetarista de inflação, e implica ainda a não neutralidade da moeda. Esta concepção foi discutida por vários autores marxistas, destacando-se, para sua compreensão, os trabalhos de Aglietta (1979), De Brunhoff e Cartelier (1974), De Vroey (1984) e Lipietz (1983).
A idéia básica é a de que embora a moeda potencialize a produção, a forma como a moeda é criada e demandada não garante que as proporções de sua criação
sejam exatamente as adequadas e necessárias ao atendimento da demanda. Além disso, é possível que a moeda se destine a setores cuja resposta em termos de aumento da capacidade produtiva não seja imediata ou não responda às necessidades de demanda, em vista da chamada “anarquia da produção”, o que representa impacto inflacionário. A moeda pode, por exemplo, fluir para setores onde não há capacidade ociosa ou onde os mercados estiverem saturados (De Vroey, 1984), ou ainda pode não provocar aumento suficiente ou suficientemente rápido da capacidade produtiva que, aumentando a produção, permita a formação de rendas efetivas necessárias ao cancelamento de dívidas referentes à criação de moeda, ou produção que compense o poder de compra adicional criado (Mollo e Saad Filho, 2001 e Saad Filho e Mollo, 2000). A possibilidade de crescimento dos preços a partir de um aumento de moeda que eleve a demanda está nos limites para o crescimento da oferta, como lembra Shaikh (1999): “se por qualquer razão o hiato entre a taxa de crescimento efetiva e os limites produtivos se estreita, haverá menos e menos espaço para o crescimento do produto e, conseqüentemente mais e mais pressão sobre os preços. A taxa de acumulação até o limite produtivo que chamo de coeficiente produtivo é então um índice de pressão inflacionária”. (p. 99)
Segundo este tipo de concepção, quando as mercadorias circulam, ou se trocam por dinheiro, na venda, convertem-se trabalhos privados em trabalho social,
o que implica ver a moeda como representante social do trabalho (De Brunhoff, 1979; Mollo, 1991). O processo de criação monetária, porém, é um processo de criação de dívidas privadas ou públicas que, de imediato, ao serem criadas, não cumprem o papel social que a moeda tem que ter e, por isso, não socializam de per se a produção privada, ou o conteúdo de trabalho privado contido nas mercadorias. Para que isso ocorra de forma final ou definitiva, é preciso uma sansão social que envol-va uma hierarquia de moedas criadas e sancionadas na sociedade como um todo. (De Brunhoff, 1974; Lipietz, 1983)
As dívidas, correspondentes à criação monetária pelos bancos, são o reconhecimento prévio de que em algum tempo posterior o tomador de créditos consegui-
rá cancelá-las com o que obtiver de renda no processo produtivo, ou como lucro ou como salário. Uma vez feito isso estará socializado o trabalho privado dos que elaboraram a mercadoria vendida a crédito. As decisões de emissão de dívidas que circulam permitindo a socialização dos trabalhos privados são tanto privadas (dos bancos que concedem crédito) quanto públicas (das autoridades monetárias que sancionam os créditos privados via emissão monetária e concessão de crédito aos bancos), e em nenhum caso há a onisciência do que ocorre nas várias unidades e processos produtivos de forma a bem avaliar o conteúdo de trabalho a socializar, ou de rendas a gerar para permitir o cancelamento final das dívidas. Assim, tanto a criação privada da moeda quanto a pública podem ser excessivas, se não proporcionarem aumento da produção e/ou da capacidade produtiva suficiente para gerar rendas que permitam compensar as dívidas correspondentes à criação monetária privada. No caso do não cancelamento destas dívidas há dois tipos de possibilidades. Ou as falências privadas conduzem à redução do poder de compra excessivo decorrente da criação da moeda extra e a inflação é evitada, ou a autoridade monetária sanciona tal poder de compra excessivo e a inflação decorrente é a forma da socializar perdas. A moeda extra corresponde então ao gasto de renda sem correspondência em formação da mesma no processo produtivo. (De Vroey, 1984)
Outra relação da moeda extra com a inflação é o caráter permissivo da primeira: sem moeda para viabilizar aumento de demanda não proporcional à oferta
não há como os preços subirem.
A idéia de moeda extra aqui exposta distingue-se da ortodoxa porque, em primeiro lugar, não há uma concepção de pleno emprego nem a curto nem a longo prazo, o que abre a possibilidade não apenas de aumento de produção, mas de aumento da capacidade produtiva. Em segundo lugar, a moeda pode ou não afetar a produção, afetando em maior ou menor medida os diferentes setores, o que altera os preços relativos (economia real) necessariamente, não sendo, portanto, neutra. Além disso, nesse tipo de concepção monetária, a formação do valor é um processo que se verifica tanto na produção, pelo conteúdo de trabalho necessário à produção das mercadorias, quanto na circulação, onde é determinado de forma final o trabalho socialmente necessário ou as condições sociais médias de produção por meio de um “tateamento social” quando as mercadorias se confrontam umas com as outras (De Brunhoff, 1973 e 1974). Assim, quando o Banco Central sanciona a criação priva da de moeda, está sujeito a sancionar preços e rendas decorrentes deles no processo de circulação, que são expressões imperfeitas dos valores, estes últimos responsáveis pela formação das rendas no processo de produção (De Brunhoff 1973; De Brunhoff e Cartelier, 1974; Mollo e Saad Filho, 2001). Tais divergências ou incompatibilidades entre produção e circulação afetam diferentemente os vários setores, e são fontes de crises (Mollo, 1989), o que é outra forma de analisar a não neutralidade da moeda. Em terceiro lugar, a moeda é endógena (Mollo, 1999), criada pelosbancos e autoridade monetárias, e a criação da moeda extra e a possível inflação não são, pois, de responsabilidade apenas do Banco Central, como quer a ortodoxia.
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Conclusão
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Assim, tanto no caso dos marxistas quanto no dos pós-keynesianos, não é possível a chamada independência do Banco Central no sentido de impor como prioritário o controle monetário e a estabilidade de preços. A idéia, para os marxistas, é de que o Banco Central “tateia socialmente” entre os objetivos de garantir moeda suficiente para expandir a acumulação de capital e a necessidade de garantir o reconhecimento social da moeda como equivalente geral, reconhecimento que podeser comprometido se o processo de emissão monetária por meio de sanção de dívidas privadas distorcer as relações credor-devedor ou sancionar preços e rendas sistematicamente divergentes dos valores criados e das rendas formadas na criação de valores. Este “tateamento social” só é possível se a sociedade como um todo manifestar demandas, o que não se faz com o Banco Central independente para cumprir objetivos de emissão monetária previamente definidos. Ao contrário dos ortodoxos, que querem ver o Banco Central protegido da ação dos políticos, para os heterodoxos importa criar canais legítimos de pressão, de forma que o Banco Central apreenda a partir deles as necessidades monetárias da economia, podendo assim intervir de forma adequada sobre o crescimento e a evolução da atividade produtiva real.
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