Enviado: Dom Dez 10, 2006 4:41 pm
TESTEMUNHO DE UMA ENFERMEIRA.
Berta Morais, 2o Tenente-Enfermeira. Voluntária da FEB, incorporada em 5 de abril de 1944. Natural de São Paulo. Cursos de Enfermagem Hospitalar e Enfermeira da Reserva do Exército. Embarcada em agosto de 1944, serviu principalmente no 38th Hospital e no 16th Evacuation. Desmobilizada em dezembro de 1945. Medalhas de Campanha e de Guerra.
Voluntariado feminino.
A nossa situação de Enfermeira na FEB iniciou-se, exatamente, no dia 9 de outubro de 1943, com uma notícia de jornal. Naquele dia, sábado, a última edição de um jornal oficial, “A Noite”, trazia uma pequenina notícia sobre a abertura de inscrição para as enfermeiras que acompanhariam o Corpo Expedicionário, então em cogitações, especificando dia, hora e local onde seriam prestadas informações às interessadas.
Na segunda-feira, dia 11 de outubro, dirigi-me à Diretoria de Saúde do Exército, no Palácio da Guerra, e, por uma dessas circunstâncias honrosas na vida de cada um de nós, tornei-me, para desassossego meu, a Voluntária n° 1, objeto, a partir daí, da bisbilhotice dos jornalistas cariocas: onde nasceu, sua idade? Conhecimentos? Que faz na vida? Por que se inscreveu?... No meu entusiasmo e ingenuidade de voluntária, eu declarava, então, a um repórter: “Sinto-me orgulhosa e espero que todas as mulheres de nossa terra venham colaborar no nosso esforço de guerra para que, onde houver um contingente brasileiro, haja um hospital brasileiro e enfermeiras brasileiras.” Naqueles dias, nem de longe iria supor que para 25.000 brasileiros enviados à Itália, mal haveria 67 patrícias ao lado deles! E que num hospital avançado, durante a guerra, seria preciso, acomodar numa escala de serviço 10 enfermeiras em 12 enfermarias, cada enfermaria com 64 homens acamados!
Já no dia seguinte, os jornais noticiavam haverem-se inscrito, nas primeiras horas após a abertura do expediente, 32 candidatas e publicavam as primeiras declarações das autoridades da Diretoria de Saúde do Exército: “tratava-se do conhecimento das nossas possibilidades técnicas nesse terreno” (sic) e “seria exigido das candidatas a qualificação de voluntárias socorristas”, declarações acompanhadas dos surrados elogios de praxe sobre “o entusiasmo das inúmeras adesões do primeiro dia de inscrição.”
Quatro meses se passaram: nada mais se disse sobre o assunto. Todavia, a Enfermeira n° 1 telefonava de vez em quando para a Diretoria de Saúde para saber se, depois da abertura de inscrição, as autoridades haviam tomado mais alguma decisão.
Certo é que, em 11 de janeiro de 1944, foi novamente aberta a inscrição e novamente apresentaram-se centenas de moças. Dessas centenas, só 67 seriam efetivamente convocadas e embarcadas para a Itália, sendo que na frente hospitalar nunca seríamos mais de 40, as outras, aproveitadas no serviço de transporte de feridos para o Brasil, ou recambiadas por doenças e outros motivos.
E, em 28 de janeiro de 1944, era solenemente iniciado o “Curso de Emergência da Reserva do Exército.”
Curso de emergência para as voluntárias.
Pela definição do regulamento interno, “o Curso destinava-se à formação de enfermeiras militares, mediante um trabalho de adaptação das profissionais civis, recrutadas entre moças diplomadas e entre aquelas que possuíssem longa prática de enfermagem devidamente comprovada.”
Porém, na rotina do “Curso de Emergência”, uma coisa logo se tornou visível: a heterogeneidade das candidatas quanto à instrução, pois, não tendo havido uma seleção inicial na abertura de inscrição, havia gente de nível intelectual abaixo das classes médias do curso primário. Espantará dizer, porém será oportuno lembrar, que algumas, mesmo nessas condições, foram aprovadas, convocadas e enviadas à Itália!... Só uma pequena proporção era composta de moças diplomadas ou de profissionais de longa prática, a maior parte compondo-se de meras voluntárias socorristas sem nenhuma prática hospitalar, sem mesmo conhecimentos básicos da arte de enfermagem.
Por que teria ocorrido isto, por que esse desinteresse das enfermeiras diplomadas ou profissionais em cooperar com a Força Expedicionária Brasileira?
Muitas razões existirão, certamente, porém, uma devemos relembrar porque ponderável, invocada, com razão, pela Escola Ana Néri, a escola-máter de enfermagem em nosso país e, sem dúvida, ainda a mais importante. Segundo informações, ouvidas por nós, das próprias autoridades superiores da Saúde do Exército, a diretoria da Escola Ana Néri, ao tomar conhecimento das condições de aproveitamento das enfermeiras e dos seus vencimentos, se recusou a colaborar por considerá-las abaixo do nível mínimo de amparo em que são universalmente admitidas profissionais dessa natureza. Tal a precariedade das condições oferecidas pelo Exército, que aquela Escola deu o assunto por encerrado!
O Curso teve a duração de seis semanas e para nós foram seis semanas de correrias sem fim, de canseiras inauditas, atropeladas pelos horários, pelas distâncias incríveis entre os diversos locais de instrução, pela falta de transporte, pela má alimentação, pela diversidade de matérias.
Para uma simples e primeira avaliação do esforço despendido, tome-se, um mapa do Rio e verifiquem-se as distâncias entre qualquer ponto da chamada zona sul e Benfica ou Triagem (Hospital Central do Exército), onde tínhamos de passar as manhãs, das 8 horas ao meio-dia, em estágios nas clínicas; de lá, íamos almoçar para chegar em tempo ao Palácio da Guerra, onde tínhamos aulas teóricas das 14 às 16 horas, saindo daí para o Forte São João, onde tínhamos, por fim, Educação Física e Ordem Unida, com exaustivos movimentos de meia-volta, volver! sentido, ordinário, marche! alto, descansar, sentido!...
Para as alunas que, na qualidade de funcionárias, tinham seus vencimentos assegurados e integrais e, também, para aquelas que, por possuírem família no Rio e não necessitarem trabalhar, tinham amparo e meio de subsistência – este horário já era apertadíssimo. Que dizer, então, das que, como a relatora desses fatos, não possuíam família no Rio, nem emprego que permitisse a livre freqüência ao Curso? Ou, como era ainda o meu caso, trabalhando no Serviço Nacional de Recenseamento, como extranumerária, com salário dependente de produção e freqüência? Nessas condições, tive de deixar o trabalho e viver de magras economias nessas amargas seis semanas de curso. Resultado: fazia grandes madrugadas para economizar no bonde que, por esse tempo, era de preço bem mais camarada. Do Exército nada recebíamos, nem mesmo condução que não teria sido difícil fornecer.
Foi no auge da apertura que algumas colegas solicitaram à Direção do Curso ordem para as mais necessitadas fazerem refeições no restaurante do SAPS, bem conhecido de todo carioca, na Praça da Bandeira. Depois de uma espera prolongada, recebemos um cartão que nos autorizava a fazer refeições, ali, a Cr$ 1,40 por pessoa. Aí, travamos conhecimento com a desgraça de ser necessitado. O mínimo que a gente esperava, no meio de operários sujos, maltrapilhos e desbocados, era quarenta minutos, quando a fila andava depressa. Tempo amargo que não vale a pena ser lembrado. Que teria custado ao Exército autorizar as enfermeiras mais necessitadas a fazerem a refeição do almoço no próprio Hospital Central, onde sempre tanta gente come de favor?
Quanto à orientação propriamente intelectual do Curso, sofreu os azares de todo curso de emergência, solicitado entre a premência do tempo, o volume de matérias a ser ensinado e... também a falta de oportunidade de muita coisa dada inutilmente!
O programa dado ia “da organização geral dos exércitos em campanha” às “complicações infecciosas das feridas de guerra”, com uma boa dose de regulamentos militares, de disciplina, de serviços, de continências, etc. Durante o Curso, fizemos estágios relâmpagos em todas as clínicas do Hospital Central do Exército, inclusive isolamento, excetuada apenas enfermaria-xadrez. Até no laboratório de Raio X, passamos, posto que rapidamente. Nas salas de operações, permaneceram por mais tempo as que mostravam maior aptidão para esse trabalho técnico. Aulas ultra-rápidas de natação ainda nos foram ministradas.
Como amostra de previsão intelectual, a direção do Curso nos obrigou a umas intoleráveis e ridículas aulas de francês, quando já naquela época éramos constantemente revistadas pelas autoridades militares norte-americanas. Não saberiam os responsáveis pelo Curso (ou teria sido difícil prever?) que iríamos viajar em transportes americanos, que iríamos ser empregados com tropas americanas, que iríamos permanecer dias e dias em bases americanas? Que, particularmente, nós enfermeiras, iríamos ser agregadas aos hospitais americanos? Fato é que nos obrigaram a cursar as aulas de francês elementar! Freqüência obrigatória, uma tarde perdida, num tempo em que os minutos eram preciosos. Será interessante deixar anotado que, a não ser em “tochas” pela França, no fim da guerra, jamais ouvimos uma palavra de francês. Nem mesmo na África Francesa, pois o pessoal nativo que trabalhava nas bases de aviação preferia falar a língua de Joe.
Fenômeno idêntico ocorreu com as intermináveis aulas sobre Epidemiologia e profilaxia da malária, da febre amarela, do tifo exantemático e do cólera. Foi um desfilar enorme de nomes complicados de famílias inteiras de mosquitos... enquanto aprendíamos com precisão rigorosa a composição da tribo do vetor da febre amarela, continuávamos a ignorar, por exemplo, o emprego do termômetro Fahrenheit que, como todos sabem, não é usado entre nós, nem existe mesmo à venda, porém é o único utilizado pelos americanos. Ora, admira que nossos instrutores, recém-chegados da América, onde haviam sido mandados estagiar, nem tivessem se preocupado com um assunto pequeno, porém de suma importância, pois é fácil deduzir que se a menor elevação térmica no acamado é motivo de alarme em tempo normal, que diremos de feridos nos hospitais vizinhos ao front? Mesmo depois de chegadas à Itália e uma vez trabalhando, nunca tivemos dos nossos superiores a menor explicação sobre a comparação de escalas, dificultosa até para muitos médicos, por falta de hábito, quanto mais para muitas das nossas enfermeiras que nem o curso ginasial possuíam!
Sobre a orientação do Curso, cabe ainda uma palavra sobre o favoritismo que perturbou muitas vezes a marcha dos trabalhos e o ânimo das candidatas de “boa vontade”. Assim, fomos testemunhas da amizade que a nossa ex-professora de Educação Física dedicava a algumas das suas alunas que, sempre alegando doenças ficavam todo o tempo de exercícios, deliciosamente reclinadas na varanda do pavilhão de física da fortaleza, apreciando os movimentos das companheiras, enquanto a Mestra, ante o nosso visível espanto, apressava-se em alegar que as felizardas não precisavam mesmo fazer os exercícios porque já as conhecia e já sabia que as mesmas já estavam a par do assunto. Como não podia deixar de acontecer, foi a uma dessas suas amigas e alunas que coube a nota máxima...
Ainda por ocasião do embarque se repetiria a mesma história. Havia sido estabelecido que as primeiras colocadas teriam prioridade no embarque. Para as cinco primeiras que seguiram, entretanto, vale lembrar que não foram nem as primeiras colocadas, nem as de melhores conhecimentos de línguas...
Decorridas seis semanas, em 11 de março de 1944, encerrava-se o Curso, eram feitas as nomeações e transferidas para o Quartel-General da FEB, onde, ainda, iríamos receber lições de ética social-militar e continuar os exercícios de ordem-unida no Colégio Militar. Uma vez nomeadas, passávamos a receber 550 cruzeiros mensais, desafogo para as que estavam dependendo desse dinheiro, mas ainda com tanta coisa para comprar e preparar a bagagem que a apertura ainda continuava, embora mais atenuada...
Assistência moral.
Sobre os estímulos de ordem moral, tão necessários numa fase como aquela de preparativos de embarque, seria injustiça dizer que nos tenham faltado inteiramente. A obra da CAEF ( Comissão de Assistência às Enfermeiras da FEB ) calou fundo em nossos corações, principalmente pelo contraste que oferecia, em meio de tanta indiferença ou hostilidade. Essa comissão, dirigida por Dona Mabel Shaw, Diretora do Posto 23 da Cruz Vermelha, no Largo da Glória, e integrada por moças da melhor sociedade carioca, fez muito para nos dar todo apoio moral e material. Aliás foi com essa comissão que ocorreu um episódio digno de nota como revelação do meio ambiente onde tínhamos que nos mover. Para dar maior relevo às suas atividades, como é usual nessas ocasiões, a Comissão resolveu convidar uma dama da alta sociedade para a Presidência de Honra e, balanceadas as conveniências, a escolha recaiu na esposa do então Ministro da Guerra, atarefado na organização da FEB. Duas moças foram escaladas para comunicar à eleita a distinção de que fôra alvo. A distinguida, porém, recebeu as moças da comissão na porta da rua e foi logo dizendo que em absoluto não aceitava, que era contra o fato de mulheres entrarem no exército e quanto mais para tomarem parte direta na guerra, que evidentemente não eram moças que prestassem as que já faziam parte da FEB e por aí afora... Recebidas na porta da rua, da porta da rua mesmo voltaram. Voltaram – por que não dizer? – cabisbaixas e amarguradas.
Um episódio pitoresco, também de ordem moral, aconteceu nas imediações do nosso embarque, vindo desfalcar o nosso já tão minguado corpo de enfermeiras. É que os namorados ou noivos das companheiras, premidos pelas indicações de embarque próximo e conseqüente separação, iam casando às pressas, de qualquer jeito. Chegou a tal ponto a devastação das nossas fileiras que, um dia, o nosso General, por intermédio de um Capitão, reuniu as moças e informou que se o fenômeno continuasse, teríamos, automaticamente dissolvido o Corpo de Enfermeiras Expedicionárias; pelo que pedia que todas examinassem suas respectivas situações e decidissem de vez o que pretendiam fazer, pois não era possível continuarmos naquele clima de “suspense”, numa época de embarque de tropa para teatros externos de operações.
Nossos uniformes.
A feitura dos nossos uniformes foi providenciada já nos últimos dias do Curso. Compunham-se de uma túnica de feitio idêntico ao dos oficiais, saia simples com apenas uma prega macho na frente e outra atrás. Camisa verde-oliva, igual à dos oficiais, gravata da mesma cor, boné com pala ( depois abolido ), casquete, meia de algodão, sapato preto; uniformes feitos de três tipos de fazenda: brim, lã e gabardina, os dois últimos bonitos e vistosos. Esses os uniformes de passeio. Agora a história triste dos uniformes de serviço. Imaginem um vestido de algodão ordinário, cinza, simples. Um avental, modelo comum usado pelas enfermeiras do Rio, também saia do mesmo tecido e um pavoroso pano – esse é o termo, pois não era lenço, nem touca – para ser amarrado na cabeça, cor verde-oliva. Quando vi semelhantes horrores, consolei-me pensando que iríamos usá-los na África, segundo se murmurava. Imaginava também que iríamos viver apenas no meio de tropas brasileiras. Calculem agora a triste figura, uma vez chegadas a Nápoles, das primeiras moças. O contraste com as americanas, nos seus frescos e graciosos uniformes de excelente fazenda de algodão, branco com listinhas miúdas de cor bege, meias de seda, sapatos marrons de ótima qualidade... Foi um choque. Felizmente o Chefe de Saúde da FEB percebeu o desastre e ordenou que fossem distribuídos imediatamente uniformes de trabalho idênticos aos das americanas.
A longa viagem de ida.
Arrumadas as bagagens e recebidas as ordens de embarque com o timbre de secreto, às seis horas da manhã de 4 de agosto de 1944, fomos colocadas num avião transporte americano e largadas no mundo. Imaginem quatro moças sem saber uma palavra de inglês, inteiramente sós e ainda por cima com ordens severas de só carregarem 200 cruzeiros no máximo e roupas para doze dias de viagem.
Em Natal, começou a nossa amargura. Não sabíamos quantos dias iríamos permanecer na base, tanto poderia ser um dia, como poderia ser algumas semanas. Devíamos pagar dez cruzeiros por refeição; que, fazer? Recorremos ao General-Comandante da Região que, apesar de toda a boa vontade manifestada, nada pode fazer de prático. Passamos a reduzir o número das nossas refeições: tomávamos café e jantávamos.
Felizmente, durou poucos dias essa aflitiva situação. Partimos para a África e nas diversas escalas ou paradas, quando havia possibilidade de uma visita às cidades, ficávamos amarguradas por nada podermos adquirir, tanto mais com os preciosos adornos de marfim trabalhados à mão. A oportunidade era única, mas onde os recursos, embarcando para tão longa viagem com 200 cruzeiros conosco?
Assim decorreu a viagem, em 12 dias de jornada, com numerosas paradas no norte da África, de Costa de Ouro até a Tunísia, nossa última escala antes de Nápoles. Estávamos sujas, exaustas e famintas, loucas por chegar. E dolorosa surpresa: ninguém nos esperava em Nápoles, ninguém sabia que estava em caminho mais uma turma de enfermeiras. Desconhecidas, sozinhas, perdidas, mofamos assim algumas horas no aeroporto de Nápoles até que um americano compadecido, resolveu descobrir nosso destino. Chegando àquela cidade pouco antes das 15 horas, só às 22 horas, iríamos chegar às acomodações de um hospital. Nosso cansaço era maior que a fome: assim que a enfermeira americana indicou-nos aposentos, caímos na cama até o dia seguinte.
Dois dias aguardamos transporte. Nessa época, já o 6o RI, de São Paulo, se deslocava para o Norte e se achava em vias de emprego. Recebida ordem para estarmos prontas às oito horas da manhã, no dia e hora determinados, esperamos o dia inteiro, até às 18 horas, quando novamente um americano, compadecido, arranjou carona para o dia seguinte. Triste ironia que muitas e muitas vezes aconteceu, quando recebíamos amarguradas o auxílio do irmão rico e previdente. Previdente, principalmente, porque nossa gente possuía elementos para, com um mínimo de organização, evitar esses contratempos que tão mal nos recomendavam. Evidentemente, se o Comando brasileiro ordenava que as enfermeiras se deslocassem para o Norte, marcando dia e hora, natural que providenciasse a condução, sabendo que não havia nenhuma espécie de tráfego civil. Esse dissabor se repetiria mais de uma vez, com dolorosa agravante. Assim, por meios de fortuna, fomos nos deslocando sem tréguas até Livorno, onde acampamos e fomos anexados ao 64th Hospital, situado na linda praia de Ardenza. Anotemos logo que este foi o único hospital que nos tratou muito mal, nos hostilizando mesmo. É que era composto, em sua maioria, de gente do Sul dos EUA, gente orgulhosa que pouca vontade tinha de manter contatos com os nativos do Rio Grande para baixo. Os oficiais ficaram acampados ao lado e as enfermeiras, como não havia outro recurso, admitidas junto às americanas, nas mesmas dependências comuns: dormitórios, refeitórios, banheiros, etc.
A ação de presença de um chefe.
Nossa situação, porém, logo iria sensivelmente melhorar graças à simples ação de presença de um grande Chefe. Por ocasião da apresentação das tropas brasileiras ao General Mark Clark, fomos convidadas para almoçar em companhia dos dois oficiais ajudantes de ordem do General. Eles, como sempre faziam, perguntaram logo como estávamos sendo tratadas ( nessa época nosso grupo já compreendia 15 enfermeiras ). Coube a uma das nossas colegas, culta e corajosa que manejava o inglês correntemente, dar-lhes a resposta e contar-lhes as nossas peripécias. O almoço terminou às 15 horas; nesse mesmo dia, 25 de agosto, antes das 17 horas, o nosso grande amigo General Clark, em pessoa, chamava à ordem o Comandante do Hospital e a Enfermeira-Chefe americana. E às primeiras horas do dia 26, deslocávamo-nos para Santa Luce, próximo de Vada, agregadas ao 38o Hospital.
Ao chegarmos ao 38o Hospital, já lá encontramos um dos ajudantes de ordem do general Clark. Desnecessário dizer que fomos recebidas de braços abertos, com todas as honras. A adorável Miss Almond, Enfermeira-Chefe, recebia-nos com as maiores atenções. Passamos, então, a morar em tendas de loa, sobre chão limpo. Recebemos camas de vento, mantas e travesseiros; enfim, nos instalávamos dignamente, para começar o nosso trabalho.
A rotina do hospital.
Todos podem imaginar a rotina, a dura rotina de uma enfermeira num hospital próximo da linha de frente. Rotina feita de sacrifícios ignorados, de esforços insuspeitos, de presença de espírito e, principalmente, de amor à humanidade...
O 38o era todo de tendas de lona, inclusive salas de operações, a única parte assoalhada. As enfermarias eram compridas barracas, repartidas ao meio pela sala da enfermeira e pelo pequenino compartimento da cama da morte. Era confrangedor transportar para lá um companheiro desenganado! Quando se perdiam as esperanças e a fim de evitar a amarga presença da morte aos outros pacientes, o doente era conduzido àquele recanto sinistro. Um silêncio esmagador caía, então, sobre a enfermaria, habitualmente tão tagarela e tão animada! Havia, ainda, no Hospital o costume de toque de silêncio após a morte dos soldados. Mas era de tal forma devastador o efeito das notas tristes do clarim em nosso espírito que logo foi abolido pelo Comando Americano do Hospital.
Há episódios curiosos nesse contato de mentalidade com as americanas. Por exemplo, o choque provocado em nós, pelo hábito norte-americano de ter as instalações sanitárias e chuveiros em comum, para todas as enfermeiras. Quanto às instalações sanitárias, não seria tanto, porque sempre era possível contornar; mas, quanto aos chuveiros, era impossível. Uma colega nossa, profundamente religiosa, Filha de Maria, não se conformava, conservando sempre, durante o banho que era em comum e na mesma hora, uma peça de roupa. As americanas, intrigadas, comentavam o fato, até que um dia a Enfermeira-Chefe entrou a indagar se a moça não estava escondendo alguma doença. A pobre não teve outra alternativa senão concordar.
Do nosso contato com a tropa brasileira, fora das tendas de feridos, guardamos algumas recordações amáveis. Por exemplo, a lembrança de nos convidarem algumas vezes para ir visitá-los, gentis convites para festas e jantares onde dividíamos a alegria de rever a nossa gente, comermos da cozinha deles, e bater um bom papo em nossa saudosa língua portuguesa, alegria creio que era muito dos pracinhas de ouvirem a nossa língua falada por mulheres.
Em contraste, quando estávamos ainda em Santa Luce, aparecia de vez em quando um ou outro oficial brasileiro, a título de visitar o hospital ou procurar conhecidos, porém talvez mais animados de outras intenções. Uma noite, estávamos de serviço na enfermaria, eu e outra colega conhecida por seus excepcionais dotes de beleza. Para surpresa nossa, diante da hora absolutamente avançada para visitas, aparecem dois majores, Major J. P. U. C., * filho de importantíssima personagem nacional acompanhado pelo Major M. Passam pela enfermaria, cumprimentam-nos e pedem para falar ao Oficial-Médico de serviço. Pouco depois, vimos nosso oficial despedir, zangadíssimo, tão ilustres personagens. É que eles tinham pedido ao Oficial-Médico para “ajeitar” para eles as duas enfermeiras de serviço que, na opinião deles, não seriam de todo más...
Hospitais de Pisa e Pistóia: combatentes de Camaiore, do Vale do Serchio, dos ataques frustrados ao Castello, das vitórias de Castelnuovo, Montese, Zocca! Era a fila interminável de ambulâncias em comboio, trazendo a sua carga de sofrimento. Era o sofrimento no que ele tinha de mais doloroso ao coração. Sofria-se vendo nossos rapazes estraçalhados, morrendo numa caridosa indiferença, proporcionada pelos grãos de morfina do “primeiro socorro”. Creio nunca ter rezado com mais sinceridade e fervor: “Senhor! Fazei que se acabe esta guerra. Poupai-nos desse sofrimento sem par!”
Uma tarde, indo ao clube dos soldados em tratamento, encontrei-os, excitadíssimos, ouvindo mensagens das famílias do Brasil, retransmitidas pela rádio Tupi. De repente a angústia se apossou dos nossos corações ao se anunciar a voz clara e ansiosa de uma pobre mãe, chamando pelo nome do seu filho, desejando-lhe saúde e breve regresso: exatamente aquele filho, naquele mesmo dia, jazia inerte no necrotério, vítima de uma bala inimiga. Foi um choque tão grande que não precisou de comentários. Um a um, os soldadinhos foram se retirando para suas enfermarias, deitaram-se, cobriram as cabeças e ninguém mais disse palavra naquela tarde.
Foi no 16o que assisti a uma das cenas mais fortes que me foi dado ver em toda a guerra. Num encontro de patrulhas, um pracinha do 6o RI foi ferido e o estilhaço, atingindo-o no braço esquerdo, inutilizou-o para sempre. Pouco depois, em novo encontro, os remanescentes da patrulha alemã eram feitos prisioneiros e, com eles, um ferido grave, um rapaz de 18 anos. Atingido em cheio, perdera os dois antebraços e a gangrena progressiva obrigara à amputação de ambos os braços. Era doloroso ver o pobre rapaz, devorado pela febre, agitando dolorosamente aqueles cotos sangrentos. Por coincidência fôra colocado na mesma enfermaria do nosso pracinha ferido no primeiro encontro e logo identificado, por este, como “o tedesco que me acertou”. Por isso dizia: “ele me paga – que eu tiro a desforra, lá isso eu tiro” – é o que ele vivia a dizer. Na noite seguinte, estava eu de plantão na sala de operações e, pela madrugada, aproveitando uma folga dei um pulo até à enfermaria para ver um doente grave. Ao entrar, percebi logo um vulto curvado sobre o pobre alemão tão gravemente ferido; pensei, com um choque no coração, no pracinha e nas ameaças que sempre fazia. Aproximei-me cautelosamente, sem ser pressentida e o que me estarreceu? Curvado sobre o alemão, os olhos cheios de lágrimas, o nosso pracinha, um mulato, dizia: -“Fume, seu desgraçado! Fume o cigarro com gosto – brasileiro é “bão” e tem dó de quem está padecendo.” E colocava, piedosamente, o cigarro nos lábios escaldantes de febre do alemão ferido. O pobre exauria com sofreguidão as baforadas frescas de fumaça e sorria feliz...
Outro quadro doloroso de sofrimento: o das criancinhas feridas, vítimas indefesas das minas e dos bombardeios! Com que mágoa infinita se via a amputação de uma perna pequenina ou de um pézinho minúsculo: eram espetáculos que nos faziam odiar a guerra.
De Pisa a Pistóia, onde ficamos todo o inverno. Daí para o Vale do Pó, na ofensiva da primavera: quantos acontecimentos, quantas sensações de descoberta que não cabe descrever aqui!
A longa viagem de volta
De Salsomaggiore, Norte da Itália, empreendemos a nossa viagem de volta, uma longa e tenebrosa viagem. Iniciou-se com o dissabor de uma ordem de regresso, sem a correspondente condução. Nove oficiais, um capelão e uma enfermeira praticamente largados e isolados, sem qualquer meio para cumprir a ordem. Um americano percebendo nossas dificuldades arrumou uma ambulância que iria nos deixar em Bolonha, nas ruínas da estação ferroviária local, onde devíamos tomar um trem. Três dias em Bolonha e, afinal, um trem e um carro à nossa disposição. O “carro” era um vagão de transporte de carga todo desmantelado, vagão vazio, sem portas, sem luz, sem água, sem instalações sanitárias. Seis dias e seis noites, vagarosamente, esse trem foi rolando de Bolonha em direção ao sul. Apanhávamos água quando parava, por acaso, perto de alguma bica ou ribeirão. Alimentação tínhamos apenas uma caixa de ração que teve de ser parcimoniosamente distribuída. Definhava-se a olhos vistos com as provações e a fome. Próximo a Tarquínia é que um polícia americano iria salvar a situação: por acaso, passou próximo ao nosso vagão e ao perceber-me, olhou-me espantadíssimo. Passados uns quinze minutos aparecia um major americano indagando pela enfermeira assinalada pelo polícia militar, pois, para eles não seria possível supor uma enfermeira viajando em tais condições. Muito espantado ficou com a nossa explicação e, em seu automóvel, seguíamos, d aí a pouco, o capelão e eu, para Roma.
Em 21 de setembro de 1945, embarcávamos no porto de Nápoles, no “James Parker”, com o 4o e último Escalão da FEB. Esse foi, sem dúvida, o “navio negreiro” da FEB. As acomodações eram insuficientes, havia grande número de convalescentes a bordo e diariamente baixava uma grande quantidade de gente atacada de pneumonia, pois, as praças viajando ao relento, dormindo nos conveses e com a chuvinha miúda que caía, eram presa de gripe e pneumonia. Havia ainda o regime de duas refeições, por dia: o café da manhã, às 7 horas e o jantar às 18 horas e nada mais. A água também racionada. O espetáculo do navio era a presença da traidora Margarida Hirschmann, locutora da “Auri-verde”, estação alemã montada em Milão para a tropa brasileira. Espetáculo de descaramento e quase certeza de impunidade.
Depois, a melancólica arribada ao porto do Rio: chegar tropa da Itália já era coisa vista e não interessava mais. O desejo insopitável era agarrar a bagagem o mais cedo possível e sumir. E foi assim que, ali, no armazém 13 do cais do porto do Rio, desliguei-me para sempre, melancólica e silenciosamente do que restava da FEB. Ainda envolvi o “James Parker” num último olhar de pesar e de saudade: ele representava o ponto final numa história de sacrifícios, sem nenhuma paga, a não ser a consciência do dever cumprido.
Reflexões finais.
A criação do quadro de enfermeiras militares é uma necessidade imediata que salta à vista. A experiência da organização da FEB deve ser meditada. Os resultados obtidos com o parco contingente feminino enviado à Itália devem ser pesados, assim como as lições dos outros exércitos com que convivemos em campanha.
Assim, ocorre-nos indagar: por que as autoridades militares não tratam de organizar imediatamente um quadro de enfermeiras profissionais e de comprovada competência?
Por que não existe uma Escola de Enfermeiras Militares, como existe uma Escola de Saúde para os médicos e sargentos enfermeiros?
Por que não cercar desde logo de todos os estímulos morais e materiais, dando-lhes o lugar que compete na hierarquia militar, às enfermeiras? Por que não se procura desde logo dar-lhes um padrão de vida condizente com suas nobilíssimas responsabilidades?
Os bons exemplos devem ser imitados e um bom exemplo é a organização militar americana, pelo menos, na parte que nos interessa aqui, no Serviço de Saúde e dos seus componentes. Não só deveríamos criar nossa organização feminina, como deveríamos trazer algumas especialistas para nos orientarem de início. Sem essa orientação geral, nada conseguiremos, pois, para termos um quadro de enfermeiras adequado serão precisos anos de estudo, de trabalho e entusiasmo. Uma coisa importante observada em campanha foi a necessidade das equipes cirúrgicas e dos seus resultados hospitalares, entendendo-se e ficando praticamente demonstrado que do perfeito entendimento entre médicos e enfermeiras, treinados para trabalharem juntos, depende em grande parte o sucesso de uma operação.
E nunca mais se diga que a zona de combate não é lugar para mulher! Venham ver o que uma enfermeira pode fazer de bom e milagroso a um homem ferido! Muitas e muitas vezes, uma mão carinhosa sobre uma testa escaldante, um lençol bem esticado, um sorriso, uma face de mulher fazem mais pelo ferido do que um litro de plasma.
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Extraído de “Depoimento dos Oficiais da Reserva sobre a FEB”. 2a Ed. São Paulo, 1950.
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* : Putz! Há uns 20 anos que eu morro de curiosidade pra saber quem eram esses espertinhos “papa-enfermeiras”...
Berta Morais, 2o Tenente-Enfermeira. Voluntária da FEB, incorporada em 5 de abril de 1944. Natural de São Paulo. Cursos de Enfermagem Hospitalar e Enfermeira da Reserva do Exército. Embarcada em agosto de 1944, serviu principalmente no 38th Hospital e no 16th Evacuation. Desmobilizada em dezembro de 1945. Medalhas de Campanha e de Guerra.
Voluntariado feminino.
A nossa situação de Enfermeira na FEB iniciou-se, exatamente, no dia 9 de outubro de 1943, com uma notícia de jornal. Naquele dia, sábado, a última edição de um jornal oficial, “A Noite”, trazia uma pequenina notícia sobre a abertura de inscrição para as enfermeiras que acompanhariam o Corpo Expedicionário, então em cogitações, especificando dia, hora e local onde seriam prestadas informações às interessadas.
Na segunda-feira, dia 11 de outubro, dirigi-me à Diretoria de Saúde do Exército, no Palácio da Guerra, e, por uma dessas circunstâncias honrosas na vida de cada um de nós, tornei-me, para desassossego meu, a Voluntária n° 1, objeto, a partir daí, da bisbilhotice dos jornalistas cariocas: onde nasceu, sua idade? Conhecimentos? Que faz na vida? Por que se inscreveu?... No meu entusiasmo e ingenuidade de voluntária, eu declarava, então, a um repórter: “Sinto-me orgulhosa e espero que todas as mulheres de nossa terra venham colaborar no nosso esforço de guerra para que, onde houver um contingente brasileiro, haja um hospital brasileiro e enfermeiras brasileiras.” Naqueles dias, nem de longe iria supor que para 25.000 brasileiros enviados à Itália, mal haveria 67 patrícias ao lado deles! E que num hospital avançado, durante a guerra, seria preciso, acomodar numa escala de serviço 10 enfermeiras em 12 enfermarias, cada enfermaria com 64 homens acamados!
Já no dia seguinte, os jornais noticiavam haverem-se inscrito, nas primeiras horas após a abertura do expediente, 32 candidatas e publicavam as primeiras declarações das autoridades da Diretoria de Saúde do Exército: “tratava-se do conhecimento das nossas possibilidades técnicas nesse terreno” (sic) e “seria exigido das candidatas a qualificação de voluntárias socorristas”, declarações acompanhadas dos surrados elogios de praxe sobre “o entusiasmo das inúmeras adesões do primeiro dia de inscrição.”
Quatro meses se passaram: nada mais se disse sobre o assunto. Todavia, a Enfermeira n° 1 telefonava de vez em quando para a Diretoria de Saúde para saber se, depois da abertura de inscrição, as autoridades haviam tomado mais alguma decisão.
Certo é que, em 11 de janeiro de 1944, foi novamente aberta a inscrição e novamente apresentaram-se centenas de moças. Dessas centenas, só 67 seriam efetivamente convocadas e embarcadas para a Itália, sendo que na frente hospitalar nunca seríamos mais de 40, as outras, aproveitadas no serviço de transporte de feridos para o Brasil, ou recambiadas por doenças e outros motivos.
E, em 28 de janeiro de 1944, era solenemente iniciado o “Curso de Emergência da Reserva do Exército.”
Curso de emergência para as voluntárias.
Pela definição do regulamento interno, “o Curso destinava-se à formação de enfermeiras militares, mediante um trabalho de adaptação das profissionais civis, recrutadas entre moças diplomadas e entre aquelas que possuíssem longa prática de enfermagem devidamente comprovada.”
Porém, na rotina do “Curso de Emergência”, uma coisa logo se tornou visível: a heterogeneidade das candidatas quanto à instrução, pois, não tendo havido uma seleção inicial na abertura de inscrição, havia gente de nível intelectual abaixo das classes médias do curso primário. Espantará dizer, porém será oportuno lembrar, que algumas, mesmo nessas condições, foram aprovadas, convocadas e enviadas à Itália!... Só uma pequena proporção era composta de moças diplomadas ou de profissionais de longa prática, a maior parte compondo-se de meras voluntárias socorristas sem nenhuma prática hospitalar, sem mesmo conhecimentos básicos da arte de enfermagem.
Por que teria ocorrido isto, por que esse desinteresse das enfermeiras diplomadas ou profissionais em cooperar com a Força Expedicionária Brasileira?
Muitas razões existirão, certamente, porém, uma devemos relembrar porque ponderável, invocada, com razão, pela Escola Ana Néri, a escola-máter de enfermagem em nosso país e, sem dúvida, ainda a mais importante. Segundo informações, ouvidas por nós, das próprias autoridades superiores da Saúde do Exército, a diretoria da Escola Ana Néri, ao tomar conhecimento das condições de aproveitamento das enfermeiras e dos seus vencimentos, se recusou a colaborar por considerá-las abaixo do nível mínimo de amparo em que são universalmente admitidas profissionais dessa natureza. Tal a precariedade das condições oferecidas pelo Exército, que aquela Escola deu o assunto por encerrado!
O Curso teve a duração de seis semanas e para nós foram seis semanas de correrias sem fim, de canseiras inauditas, atropeladas pelos horários, pelas distâncias incríveis entre os diversos locais de instrução, pela falta de transporte, pela má alimentação, pela diversidade de matérias.
Para uma simples e primeira avaliação do esforço despendido, tome-se, um mapa do Rio e verifiquem-se as distâncias entre qualquer ponto da chamada zona sul e Benfica ou Triagem (Hospital Central do Exército), onde tínhamos de passar as manhãs, das 8 horas ao meio-dia, em estágios nas clínicas; de lá, íamos almoçar para chegar em tempo ao Palácio da Guerra, onde tínhamos aulas teóricas das 14 às 16 horas, saindo daí para o Forte São João, onde tínhamos, por fim, Educação Física e Ordem Unida, com exaustivos movimentos de meia-volta, volver! sentido, ordinário, marche! alto, descansar, sentido!...
Para as alunas que, na qualidade de funcionárias, tinham seus vencimentos assegurados e integrais e, também, para aquelas que, por possuírem família no Rio e não necessitarem trabalhar, tinham amparo e meio de subsistência – este horário já era apertadíssimo. Que dizer, então, das que, como a relatora desses fatos, não possuíam família no Rio, nem emprego que permitisse a livre freqüência ao Curso? Ou, como era ainda o meu caso, trabalhando no Serviço Nacional de Recenseamento, como extranumerária, com salário dependente de produção e freqüência? Nessas condições, tive de deixar o trabalho e viver de magras economias nessas amargas seis semanas de curso. Resultado: fazia grandes madrugadas para economizar no bonde que, por esse tempo, era de preço bem mais camarada. Do Exército nada recebíamos, nem mesmo condução que não teria sido difícil fornecer.
Foi no auge da apertura que algumas colegas solicitaram à Direção do Curso ordem para as mais necessitadas fazerem refeições no restaurante do SAPS, bem conhecido de todo carioca, na Praça da Bandeira. Depois de uma espera prolongada, recebemos um cartão que nos autorizava a fazer refeições, ali, a Cr$ 1,40 por pessoa. Aí, travamos conhecimento com a desgraça de ser necessitado. O mínimo que a gente esperava, no meio de operários sujos, maltrapilhos e desbocados, era quarenta minutos, quando a fila andava depressa. Tempo amargo que não vale a pena ser lembrado. Que teria custado ao Exército autorizar as enfermeiras mais necessitadas a fazerem a refeição do almoço no próprio Hospital Central, onde sempre tanta gente come de favor?
Quanto à orientação propriamente intelectual do Curso, sofreu os azares de todo curso de emergência, solicitado entre a premência do tempo, o volume de matérias a ser ensinado e... também a falta de oportunidade de muita coisa dada inutilmente!
O programa dado ia “da organização geral dos exércitos em campanha” às “complicações infecciosas das feridas de guerra”, com uma boa dose de regulamentos militares, de disciplina, de serviços, de continências, etc. Durante o Curso, fizemos estágios relâmpagos em todas as clínicas do Hospital Central do Exército, inclusive isolamento, excetuada apenas enfermaria-xadrez. Até no laboratório de Raio X, passamos, posto que rapidamente. Nas salas de operações, permaneceram por mais tempo as que mostravam maior aptidão para esse trabalho técnico. Aulas ultra-rápidas de natação ainda nos foram ministradas.
Como amostra de previsão intelectual, a direção do Curso nos obrigou a umas intoleráveis e ridículas aulas de francês, quando já naquela época éramos constantemente revistadas pelas autoridades militares norte-americanas. Não saberiam os responsáveis pelo Curso (ou teria sido difícil prever?) que iríamos viajar em transportes americanos, que iríamos ser empregados com tropas americanas, que iríamos permanecer dias e dias em bases americanas? Que, particularmente, nós enfermeiras, iríamos ser agregadas aos hospitais americanos? Fato é que nos obrigaram a cursar as aulas de francês elementar! Freqüência obrigatória, uma tarde perdida, num tempo em que os minutos eram preciosos. Será interessante deixar anotado que, a não ser em “tochas” pela França, no fim da guerra, jamais ouvimos uma palavra de francês. Nem mesmo na África Francesa, pois o pessoal nativo que trabalhava nas bases de aviação preferia falar a língua de Joe.
Fenômeno idêntico ocorreu com as intermináveis aulas sobre Epidemiologia e profilaxia da malária, da febre amarela, do tifo exantemático e do cólera. Foi um desfilar enorme de nomes complicados de famílias inteiras de mosquitos... enquanto aprendíamos com precisão rigorosa a composição da tribo do vetor da febre amarela, continuávamos a ignorar, por exemplo, o emprego do termômetro Fahrenheit que, como todos sabem, não é usado entre nós, nem existe mesmo à venda, porém é o único utilizado pelos americanos. Ora, admira que nossos instrutores, recém-chegados da América, onde haviam sido mandados estagiar, nem tivessem se preocupado com um assunto pequeno, porém de suma importância, pois é fácil deduzir que se a menor elevação térmica no acamado é motivo de alarme em tempo normal, que diremos de feridos nos hospitais vizinhos ao front? Mesmo depois de chegadas à Itália e uma vez trabalhando, nunca tivemos dos nossos superiores a menor explicação sobre a comparação de escalas, dificultosa até para muitos médicos, por falta de hábito, quanto mais para muitas das nossas enfermeiras que nem o curso ginasial possuíam!
Sobre a orientação do Curso, cabe ainda uma palavra sobre o favoritismo que perturbou muitas vezes a marcha dos trabalhos e o ânimo das candidatas de “boa vontade”. Assim, fomos testemunhas da amizade que a nossa ex-professora de Educação Física dedicava a algumas das suas alunas que, sempre alegando doenças ficavam todo o tempo de exercícios, deliciosamente reclinadas na varanda do pavilhão de física da fortaleza, apreciando os movimentos das companheiras, enquanto a Mestra, ante o nosso visível espanto, apressava-se em alegar que as felizardas não precisavam mesmo fazer os exercícios porque já as conhecia e já sabia que as mesmas já estavam a par do assunto. Como não podia deixar de acontecer, foi a uma dessas suas amigas e alunas que coube a nota máxima...
Ainda por ocasião do embarque se repetiria a mesma história. Havia sido estabelecido que as primeiras colocadas teriam prioridade no embarque. Para as cinco primeiras que seguiram, entretanto, vale lembrar que não foram nem as primeiras colocadas, nem as de melhores conhecimentos de línguas...
Decorridas seis semanas, em 11 de março de 1944, encerrava-se o Curso, eram feitas as nomeações e transferidas para o Quartel-General da FEB, onde, ainda, iríamos receber lições de ética social-militar e continuar os exercícios de ordem-unida no Colégio Militar. Uma vez nomeadas, passávamos a receber 550 cruzeiros mensais, desafogo para as que estavam dependendo desse dinheiro, mas ainda com tanta coisa para comprar e preparar a bagagem que a apertura ainda continuava, embora mais atenuada...
Assistência moral.
Sobre os estímulos de ordem moral, tão necessários numa fase como aquela de preparativos de embarque, seria injustiça dizer que nos tenham faltado inteiramente. A obra da CAEF ( Comissão de Assistência às Enfermeiras da FEB ) calou fundo em nossos corações, principalmente pelo contraste que oferecia, em meio de tanta indiferença ou hostilidade. Essa comissão, dirigida por Dona Mabel Shaw, Diretora do Posto 23 da Cruz Vermelha, no Largo da Glória, e integrada por moças da melhor sociedade carioca, fez muito para nos dar todo apoio moral e material. Aliás foi com essa comissão que ocorreu um episódio digno de nota como revelação do meio ambiente onde tínhamos que nos mover. Para dar maior relevo às suas atividades, como é usual nessas ocasiões, a Comissão resolveu convidar uma dama da alta sociedade para a Presidência de Honra e, balanceadas as conveniências, a escolha recaiu na esposa do então Ministro da Guerra, atarefado na organização da FEB. Duas moças foram escaladas para comunicar à eleita a distinção de que fôra alvo. A distinguida, porém, recebeu as moças da comissão na porta da rua e foi logo dizendo que em absoluto não aceitava, que era contra o fato de mulheres entrarem no exército e quanto mais para tomarem parte direta na guerra, que evidentemente não eram moças que prestassem as que já faziam parte da FEB e por aí afora... Recebidas na porta da rua, da porta da rua mesmo voltaram. Voltaram – por que não dizer? – cabisbaixas e amarguradas.
Um episódio pitoresco, também de ordem moral, aconteceu nas imediações do nosso embarque, vindo desfalcar o nosso já tão minguado corpo de enfermeiras. É que os namorados ou noivos das companheiras, premidos pelas indicações de embarque próximo e conseqüente separação, iam casando às pressas, de qualquer jeito. Chegou a tal ponto a devastação das nossas fileiras que, um dia, o nosso General, por intermédio de um Capitão, reuniu as moças e informou que se o fenômeno continuasse, teríamos, automaticamente dissolvido o Corpo de Enfermeiras Expedicionárias; pelo que pedia que todas examinassem suas respectivas situações e decidissem de vez o que pretendiam fazer, pois não era possível continuarmos naquele clima de “suspense”, numa época de embarque de tropa para teatros externos de operações.
Nossos uniformes.
A feitura dos nossos uniformes foi providenciada já nos últimos dias do Curso. Compunham-se de uma túnica de feitio idêntico ao dos oficiais, saia simples com apenas uma prega macho na frente e outra atrás. Camisa verde-oliva, igual à dos oficiais, gravata da mesma cor, boné com pala ( depois abolido ), casquete, meia de algodão, sapato preto; uniformes feitos de três tipos de fazenda: brim, lã e gabardina, os dois últimos bonitos e vistosos. Esses os uniformes de passeio. Agora a história triste dos uniformes de serviço. Imaginem um vestido de algodão ordinário, cinza, simples. Um avental, modelo comum usado pelas enfermeiras do Rio, também saia do mesmo tecido e um pavoroso pano – esse é o termo, pois não era lenço, nem touca – para ser amarrado na cabeça, cor verde-oliva. Quando vi semelhantes horrores, consolei-me pensando que iríamos usá-los na África, segundo se murmurava. Imaginava também que iríamos viver apenas no meio de tropas brasileiras. Calculem agora a triste figura, uma vez chegadas a Nápoles, das primeiras moças. O contraste com as americanas, nos seus frescos e graciosos uniformes de excelente fazenda de algodão, branco com listinhas miúdas de cor bege, meias de seda, sapatos marrons de ótima qualidade... Foi um choque. Felizmente o Chefe de Saúde da FEB percebeu o desastre e ordenou que fossem distribuídos imediatamente uniformes de trabalho idênticos aos das americanas.
A longa viagem de ida.
Arrumadas as bagagens e recebidas as ordens de embarque com o timbre de secreto, às seis horas da manhã de 4 de agosto de 1944, fomos colocadas num avião transporte americano e largadas no mundo. Imaginem quatro moças sem saber uma palavra de inglês, inteiramente sós e ainda por cima com ordens severas de só carregarem 200 cruzeiros no máximo e roupas para doze dias de viagem.
Em Natal, começou a nossa amargura. Não sabíamos quantos dias iríamos permanecer na base, tanto poderia ser um dia, como poderia ser algumas semanas. Devíamos pagar dez cruzeiros por refeição; que, fazer? Recorremos ao General-Comandante da Região que, apesar de toda a boa vontade manifestada, nada pode fazer de prático. Passamos a reduzir o número das nossas refeições: tomávamos café e jantávamos.
Felizmente, durou poucos dias essa aflitiva situação. Partimos para a África e nas diversas escalas ou paradas, quando havia possibilidade de uma visita às cidades, ficávamos amarguradas por nada podermos adquirir, tanto mais com os preciosos adornos de marfim trabalhados à mão. A oportunidade era única, mas onde os recursos, embarcando para tão longa viagem com 200 cruzeiros conosco?
Assim decorreu a viagem, em 12 dias de jornada, com numerosas paradas no norte da África, de Costa de Ouro até a Tunísia, nossa última escala antes de Nápoles. Estávamos sujas, exaustas e famintas, loucas por chegar. E dolorosa surpresa: ninguém nos esperava em Nápoles, ninguém sabia que estava em caminho mais uma turma de enfermeiras. Desconhecidas, sozinhas, perdidas, mofamos assim algumas horas no aeroporto de Nápoles até que um americano compadecido, resolveu descobrir nosso destino. Chegando àquela cidade pouco antes das 15 horas, só às 22 horas, iríamos chegar às acomodações de um hospital. Nosso cansaço era maior que a fome: assim que a enfermeira americana indicou-nos aposentos, caímos na cama até o dia seguinte.
Dois dias aguardamos transporte. Nessa época, já o 6o RI, de São Paulo, se deslocava para o Norte e se achava em vias de emprego. Recebida ordem para estarmos prontas às oito horas da manhã, no dia e hora determinados, esperamos o dia inteiro, até às 18 horas, quando novamente um americano, compadecido, arranjou carona para o dia seguinte. Triste ironia que muitas e muitas vezes aconteceu, quando recebíamos amarguradas o auxílio do irmão rico e previdente. Previdente, principalmente, porque nossa gente possuía elementos para, com um mínimo de organização, evitar esses contratempos que tão mal nos recomendavam. Evidentemente, se o Comando brasileiro ordenava que as enfermeiras se deslocassem para o Norte, marcando dia e hora, natural que providenciasse a condução, sabendo que não havia nenhuma espécie de tráfego civil. Esse dissabor se repetiria mais de uma vez, com dolorosa agravante. Assim, por meios de fortuna, fomos nos deslocando sem tréguas até Livorno, onde acampamos e fomos anexados ao 64th Hospital, situado na linda praia de Ardenza. Anotemos logo que este foi o único hospital que nos tratou muito mal, nos hostilizando mesmo. É que era composto, em sua maioria, de gente do Sul dos EUA, gente orgulhosa que pouca vontade tinha de manter contatos com os nativos do Rio Grande para baixo. Os oficiais ficaram acampados ao lado e as enfermeiras, como não havia outro recurso, admitidas junto às americanas, nas mesmas dependências comuns: dormitórios, refeitórios, banheiros, etc.
A ação de presença de um chefe.
Nossa situação, porém, logo iria sensivelmente melhorar graças à simples ação de presença de um grande Chefe. Por ocasião da apresentação das tropas brasileiras ao General Mark Clark, fomos convidadas para almoçar em companhia dos dois oficiais ajudantes de ordem do General. Eles, como sempre faziam, perguntaram logo como estávamos sendo tratadas ( nessa época nosso grupo já compreendia 15 enfermeiras ). Coube a uma das nossas colegas, culta e corajosa que manejava o inglês correntemente, dar-lhes a resposta e contar-lhes as nossas peripécias. O almoço terminou às 15 horas; nesse mesmo dia, 25 de agosto, antes das 17 horas, o nosso grande amigo General Clark, em pessoa, chamava à ordem o Comandante do Hospital e a Enfermeira-Chefe americana. E às primeiras horas do dia 26, deslocávamo-nos para Santa Luce, próximo de Vada, agregadas ao 38o Hospital.
Ao chegarmos ao 38o Hospital, já lá encontramos um dos ajudantes de ordem do general Clark. Desnecessário dizer que fomos recebidas de braços abertos, com todas as honras. A adorável Miss Almond, Enfermeira-Chefe, recebia-nos com as maiores atenções. Passamos, então, a morar em tendas de loa, sobre chão limpo. Recebemos camas de vento, mantas e travesseiros; enfim, nos instalávamos dignamente, para começar o nosso trabalho.
A rotina do hospital.
Todos podem imaginar a rotina, a dura rotina de uma enfermeira num hospital próximo da linha de frente. Rotina feita de sacrifícios ignorados, de esforços insuspeitos, de presença de espírito e, principalmente, de amor à humanidade...
O 38o era todo de tendas de lona, inclusive salas de operações, a única parte assoalhada. As enfermarias eram compridas barracas, repartidas ao meio pela sala da enfermeira e pelo pequenino compartimento da cama da morte. Era confrangedor transportar para lá um companheiro desenganado! Quando se perdiam as esperanças e a fim de evitar a amarga presença da morte aos outros pacientes, o doente era conduzido àquele recanto sinistro. Um silêncio esmagador caía, então, sobre a enfermaria, habitualmente tão tagarela e tão animada! Havia, ainda, no Hospital o costume de toque de silêncio após a morte dos soldados. Mas era de tal forma devastador o efeito das notas tristes do clarim em nosso espírito que logo foi abolido pelo Comando Americano do Hospital.
Há episódios curiosos nesse contato de mentalidade com as americanas. Por exemplo, o choque provocado em nós, pelo hábito norte-americano de ter as instalações sanitárias e chuveiros em comum, para todas as enfermeiras. Quanto às instalações sanitárias, não seria tanto, porque sempre era possível contornar; mas, quanto aos chuveiros, era impossível. Uma colega nossa, profundamente religiosa, Filha de Maria, não se conformava, conservando sempre, durante o banho que era em comum e na mesma hora, uma peça de roupa. As americanas, intrigadas, comentavam o fato, até que um dia a Enfermeira-Chefe entrou a indagar se a moça não estava escondendo alguma doença. A pobre não teve outra alternativa senão concordar.
Do nosso contato com a tropa brasileira, fora das tendas de feridos, guardamos algumas recordações amáveis. Por exemplo, a lembrança de nos convidarem algumas vezes para ir visitá-los, gentis convites para festas e jantares onde dividíamos a alegria de rever a nossa gente, comermos da cozinha deles, e bater um bom papo em nossa saudosa língua portuguesa, alegria creio que era muito dos pracinhas de ouvirem a nossa língua falada por mulheres.
Em contraste, quando estávamos ainda em Santa Luce, aparecia de vez em quando um ou outro oficial brasileiro, a título de visitar o hospital ou procurar conhecidos, porém talvez mais animados de outras intenções. Uma noite, estávamos de serviço na enfermaria, eu e outra colega conhecida por seus excepcionais dotes de beleza. Para surpresa nossa, diante da hora absolutamente avançada para visitas, aparecem dois majores, Major J. P. U. C., * filho de importantíssima personagem nacional acompanhado pelo Major M. Passam pela enfermaria, cumprimentam-nos e pedem para falar ao Oficial-Médico de serviço. Pouco depois, vimos nosso oficial despedir, zangadíssimo, tão ilustres personagens. É que eles tinham pedido ao Oficial-Médico para “ajeitar” para eles as duas enfermeiras de serviço que, na opinião deles, não seriam de todo más...
Hospitais de Pisa e Pistóia: combatentes de Camaiore, do Vale do Serchio, dos ataques frustrados ao Castello, das vitórias de Castelnuovo, Montese, Zocca! Era a fila interminável de ambulâncias em comboio, trazendo a sua carga de sofrimento. Era o sofrimento no que ele tinha de mais doloroso ao coração. Sofria-se vendo nossos rapazes estraçalhados, morrendo numa caridosa indiferença, proporcionada pelos grãos de morfina do “primeiro socorro”. Creio nunca ter rezado com mais sinceridade e fervor: “Senhor! Fazei que se acabe esta guerra. Poupai-nos desse sofrimento sem par!”
Uma tarde, indo ao clube dos soldados em tratamento, encontrei-os, excitadíssimos, ouvindo mensagens das famílias do Brasil, retransmitidas pela rádio Tupi. De repente a angústia se apossou dos nossos corações ao se anunciar a voz clara e ansiosa de uma pobre mãe, chamando pelo nome do seu filho, desejando-lhe saúde e breve regresso: exatamente aquele filho, naquele mesmo dia, jazia inerte no necrotério, vítima de uma bala inimiga. Foi um choque tão grande que não precisou de comentários. Um a um, os soldadinhos foram se retirando para suas enfermarias, deitaram-se, cobriram as cabeças e ninguém mais disse palavra naquela tarde.
Foi no 16o que assisti a uma das cenas mais fortes que me foi dado ver em toda a guerra. Num encontro de patrulhas, um pracinha do 6o RI foi ferido e o estilhaço, atingindo-o no braço esquerdo, inutilizou-o para sempre. Pouco depois, em novo encontro, os remanescentes da patrulha alemã eram feitos prisioneiros e, com eles, um ferido grave, um rapaz de 18 anos. Atingido em cheio, perdera os dois antebraços e a gangrena progressiva obrigara à amputação de ambos os braços. Era doloroso ver o pobre rapaz, devorado pela febre, agitando dolorosamente aqueles cotos sangrentos. Por coincidência fôra colocado na mesma enfermaria do nosso pracinha ferido no primeiro encontro e logo identificado, por este, como “o tedesco que me acertou”. Por isso dizia: “ele me paga – que eu tiro a desforra, lá isso eu tiro” – é o que ele vivia a dizer. Na noite seguinte, estava eu de plantão na sala de operações e, pela madrugada, aproveitando uma folga dei um pulo até à enfermaria para ver um doente grave. Ao entrar, percebi logo um vulto curvado sobre o pobre alemão tão gravemente ferido; pensei, com um choque no coração, no pracinha e nas ameaças que sempre fazia. Aproximei-me cautelosamente, sem ser pressentida e o que me estarreceu? Curvado sobre o alemão, os olhos cheios de lágrimas, o nosso pracinha, um mulato, dizia: -“Fume, seu desgraçado! Fume o cigarro com gosto – brasileiro é “bão” e tem dó de quem está padecendo.” E colocava, piedosamente, o cigarro nos lábios escaldantes de febre do alemão ferido. O pobre exauria com sofreguidão as baforadas frescas de fumaça e sorria feliz...
Outro quadro doloroso de sofrimento: o das criancinhas feridas, vítimas indefesas das minas e dos bombardeios! Com que mágoa infinita se via a amputação de uma perna pequenina ou de um pézinho minúsculo: eram espetáculos que nos faziam odiar a guerra.
De Pisa a Pistóia, onde ficamos todo o inverno. Daí para o Vale do Pó, na ofensiva da primavera: quantos acontecimentos, quantas sensações de descoberta que não cabe descrever aqui!
A longa viagem de volta
De Salsomaggiore, Norte da Itália, empreendemos a nossa viagem de volta, uma longa e tenebrosa viagem. Iniciou-se com o dissabor de uma ordem de regresso, sem a correspondente condução. Nove oficiais, um capelão e uma enfermeira praticamente largados e isolados, sem qualquer meio para cumprir a ordem. Um americano percebendo nossas dificuldades arrumou uma ambulância que iria nos deixar em Bolonha, nas ruínas da estação ferroviária local, onde devíamos tomar um trem. Três dias em Bolonha e, afinal, um trem e um carro à nossa disposição. O “carro” era um vagão de transporte de carga todo desmantelado, vagão vazio, sem portas, sem luz, sem água, sem instalações sanitárias. Seis dias e seis noites, vagarosamente, esse trem foi rolando de Bolonha em direção ao sul. Apanhávamos água quando parava, por acaso, perto de alguma bica ou ribeirão. Alimentação tínhamos apenas uma caixa de ração que teve de ser parcimoniosamente distribuída. Definhava-se a olhos vistos com as provações e a fome. Próximo a Tarquínia é que um polícia americano iria salvar a situação: por acaso, passou próximo ao nosso vagão e ao perceber-me, olhou-me espantadíssimo. Passados uns quinze minutos aparecia um major americano indagando pela enfermeira assinalada pelo polícia militar, pois, para eles não seria possível supor uma enfermeira viajando em tais condições. Muito espantado ficou com a nossa explicação e, em seu automóvel, seguíamos, d aí a pouco, o capelão e eu, para Roma.
Em 21 de setembro de 1945, embarcávamos no porto de Nápoles, no “James Parker”, com o 4o e último Escalão da FEB. Esse foi, sem dúvida, o “navio negreiro” da FEB. As acomodações eram insuficientes, havia grande número de convalescentes a bordo e diariamente baixava uma grande quantidade de gente atacada de pneumonia, pois, as praças viajando ao relento, dormindo nos conveses e com a chuvinha miúda que caía, eram presa de gripe e pneumonia. Havia ainda o regime de duas refeições, por dia: o café da manhã, às 7 horas e o jantar às 18 horas e nada mais. A água também racionada. O espetáculo do navio era a presença da traidora Margarida Hirschmann, locutora da “Auri-verde”, estação alemã montada em Milão para a tropa brasileira. Espetáculo de descaramento e quase certeza de impunidade.
Depois, a melancólica arribada ao porto do Rio: chegar tropa da Itália já era coisa vista e não interessava mais. O desejo insopitável era agarrar a bagagem o mais cedo possível e sumir. E foi assim que, ali, no armazém 13 do cais do porto do Rio, desliguei-me para sempre, melancólica e silenciosamente do que restava da FEB. Ainda envolvi o “James Parker” num último olhar de pesar e de saudade: ele representava o ponto final numa história de sacrifícios, sem nenhuma paga, a não ser a consciência do dever cumprido.
Reflexões finais.
A criação do quadro de enfermeiras militares é uma necessidade imediata que salta à vista. A experiência da organização da FEB deve ser meditada. Os resultados obtidos com o parco contingente feminino enviado à Itália devem ser pesados, assim como as lições dos outros exércitos com que convivemos em campanha.
Assim, ocorre-nos indagar: por que as autoridades militares não tratam de organizar imediatamente um quadro de enfermeiras profissionais e de comprovada competência?
Por que não existe uma Escola de Enfermeiras Militares, como existe uma Escola de Saúde para os médicos e sargentos enfermeiros?
Por que não cercar desde logo de todos os estímulos morais e materiais, dando-lhes o lugar que compete na hierarquia militar, às enfermeiras? Por que não se procura desde logo dar-lhes um padrão de vida condizente com suas nobilíssimas responsabilidades?
Os bons exemplos devem ser imitados e um bom exemplo é a organização militar americana, pelo menos, na parte que nos interessa aqui, no Serviço de Saúde e dos seus componentes. Não só deveríamos criar nossa organização feminina, como deveríamos trazer algumas especialistas para nos orientarem de início. Sem essa orientação geral, nada conseguiremos, pois, para termos um quadro de enfermeiras adequado serão precisos anos de estudo, de trabalho e entusiasmo. Uma coisa importante observada em campanha foi a necessidade das equipes cirúrgicas e dos seus resultados hospitalares, entendendo-se e ficando praticamente demonstrado que do perfeito entendimento entre médicos e enfermeiras, treinados para trabalharem juntos, depende em grande parte o sucesso de uma operação.
E nunca mais se diga que a zona de combate não é lugar para mulher! Venham ver o que uma enfermeira pode fazer de bom e milagroso a um homem ferido! Muitas e muitas vezes, uma mão carinhosa sobre uma testa escaldante, um lençol bem esticado, um sorriso, uma face de mulher fazem mais pelo ferido do que um litro de plasma.
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Extraído de “Depoimento dos Oficiais da Reserva sobre a FEB”. 2a Ed. São Paulo, 1950.
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* : Putz! Há uns 20 anos que eu morro de curiosidade pra saber quem eram esses espertinhos “papa-enfermeiras”...