OPA ao Benfica avança
2007-06-18 00:05
Como Berardo chegou aos 1,9 mil milhões
Chegou vestido de encarnado mas vestiu-se de preto para as fotografias. História, na primeira pessoa, de Berardo.
Bruno Faria Lopes
“Tive uma vez um motorista que um dia roubou a carteira de alguém que ia no carro comigo”, contou Joe Berardo, na entrevista que deu ao Diário Económico no sábado passado. Feita a descoberta, o milionário madeirense que se lança agora sobre o capital do Benfica foi rápido a decidir. “Pensei: é um homem novo, e disse à minha mulher que o ia mandar a um psiquiatra para o ver. Às vezes todos nós temos os nossos momentos mais infelizes”, admite.
O diagnóstico foi claro – o psiquiatra disse que não havia nada a fazer. “Mas porquê?, perguntei eu”. O jovem motorista era cleptomaníaco, um caso perdido. “Tive de mandar o homem embora. Mas eu gosto sempre de dar margem de progressão às pessoas e também margem para ‘mistakes’”, afirma. “Afinal, até Deus teve três enganos: pôs chuva a cair no mar, a lua durante o dia e‘mamas’ no homem!”, remata.
Joe Berardo, 62 anos, o homem que tritura o português, o inglês e o afrikaaner numa mesma sopa linguística, é assim: simples e descontraído, pragmático e implacável, nos negócios e nas decisões difíceis, rápido a escolher e a confiar nas pessoas que lhe interessam. É, também, o milionário do momento no pequeno país que é Portugal, onde uma fortuna avaliada em 570 milhões de euros, segundo a revista Exame, e um perfil pouco convencional são suficientes para ir causando pequenos terramotos mediáticos.
Sobre a dimensão da sua fortuna total – superior, segundo as contas do DE, a 1,9 mil milhões de euros, contando com as participações que detém na PT, no BCP e na Sonae, entre outros–, Berardo recusa-se a fazer medições e ironiza. “Se fosse a analisar essas coisas parava de trabalhar, e eu adoro o trabalho”.
Entre 2006 e 2007, Joe Berardo esteve envolvido enquanto accionista nas duas maiores batalhas empresariais dos últimos anos (as ofertas públicas de aquisição [OPA] lançadas pela Sonae e BCP sobre a Portugal Telecom e o BPI, respectivamente), comprou 30% da Sogrape (os accionistas da maior empresa portuguesa de vinhos e distribuição de bebidas tentam em tribunal contrariar a aquisição) e, na semana passada, lançou uma OPA surpreendente de 31,5 milhões de euros sobre o Benfica, o seu “clube do coração”.
Pelo caminho, sentou o Governo de Sócrates à mesa – o mesmo a quem propôs comprar a ‘golden-share’ na PT por 200 milhões de euros – e firmou um acordo que não só mantém a sua colecção de arte contemporânea (avaliada em 316 milhões de euros pela leiloeira Christie’s) em Portugal, como deixa ao Estado português uma opção de compra sobre o total.
Mas quem é e como trabalha este homem da Madeira que, aos 13 anos, largou a escola? De onde vem a sua fortuna? E o que o faz correr?
O início de Berardo
O comendador Joe Berardo – condecorado em 1979 por Ramalho Eanes e em 2004 por Jorge Sampaio – é o sétimo filho de uma família de princípios rígidos de uma Madeira onde a pobreza e o conservadorismo eram a norma.
Cedo, a família foi marcada por uma desgraça financeira: o Banco Henrique Figueira, onde o pai tinha grande parte das suas poupanças, abriu falência.
“O meu pai era um‘expert’ em contas romanas, mas não sabia ler. Enquanto foi buscar a minha mãe, que sabia ler, a Santa Luzia para assinar os papéis, o banco fechou as portas”, conta.
Uma meia hora fatídica, com marcas negativas no bolso, mas positivas na atitude. “Os meus pais nunca esqueceram, mas olharam sempre para a frente”, sublinha Berardo.
Desde cedo que, perante a riqueza exibida pelos emigrantes que visitavam a Madeira, o jovem José Manuel (Joe, de “Big Joe”, ficou dos tempos de África do Sul), sonhava com outras paragens.
“Enquanto adolescente, ia muitas vezes ao topo das montanhas mais altas da minha terra para poder alcançar um horizonte mais alargado”, conta na nota autobiográfica que acompanha a apresentação da sua colecção de arte.
Esse horizonte encontrou-o na África do Sul, para onde partiu aos 18 anos, depois de cinco anos na Madeira a ganhar dinheiro a rotular garrafas na Madeira Wine, a servir à mesa nas reuniões do conselho de administração da empresa e em biscates vários. Com esta experiência, contou ao DE, aprendeu o valor das gorjetas.
“Quando eu trabalhava na Madeira Wine, vinham muitos turistas americanos e os que me deixavam uma boa gorjeta eram sempre mais bem servidos que os outros. ‘As simples as that’”, lembra. Hoje, deixa boas gorjetas. “Dou a gorjeta sempre no princípio, não no fim”, sublinha.
Já na África do Sul, em 1968, passou uma fase inicial de travessia do deserto, durante a qual aprendeu as línguas locais (o inglês e o afrikaaner) e entrou como assalariado num negócio de venda de legumes.
“Conheci-o na década de 60, quando ele estava numa loja de frutas em Joanesburgo, chamada a Pérola”, recorda José Quintal, presidente da Casa da Madeira de Joanesburgo. “Era muito dinâmico, lembro-me que ia num camião Mercedes Benz para vender. Sempre foi um jovem de brincar com as miúdas”, revela.
Sobre essa fase, Berardo viria a confessar ao Expresso: “estava farto de festas, (…), a minha vida estava vazia, acordava com mulheres diferentes todos os dias, de quem nem sabia o nome”.
Tal iria acabar antes de 1969, com o namoro e casamento com a companheira de sempre, Carolina Gonçalves, a mais velha de doze irmãos, filha de emigrantes madeirenses. Os filhos, Renato (36 anos) e Cláudia (34) trabalham hoje com o pai e vão produzindo netos. “Vou ter mais dois, vai para cinco agora”, conta. “Espero que cheguem a uma dúzia. Não sou Opus Dei, quero é mais pessoas para trabalhar comigo”.
Berardo foi alargando o seu círculo de amizades – conquistar contactos e ter habilidade para fazer dinheiro são faces da mesma moeda. “As pessoas são tudo. Afinal o que é que eu sei fazer? Nem ler eu sei bem”, atira, provocador. Rui Cartaxana, ex-director do jornal Record, do qual Berardo foi proprietário, conhece este talento. “Tem muitos méritos, mas não dá uma ‘gravata’ a ninguém. Só entra onde pode fazer dinheiro e só apoia quem lhe pode ser útil”, diz. A sua azáfama social resultava sempre em convidados inesperados para as refeições em casa, a tal ponto que Carolina passou a ter sempre pronto um tacho de guisado para acomodar os convidados-surpresa.
Berardo acabou por conhecer quem queria: o ministro sul-africano das Minas, P. Botha, e um empresário judeu ligado ao negócio. Já há algum tempo que o português sonhava com o aproveitamento dos ‘gold dumps’, montes artificiais feitos da terra arrancada nas explorações mineiras – a ideia nasceu a partir das vendas de legumes para os trabalhadores das minas – e, com a ajuda de um engenheiro, apresentou um plano de negócio. A empresa arrancou em 1977 e o ouro foi aparecendo a partir daquilo que parecia ser apenas um monte de desperdício. No início dos anos 80, com a escalada do preço do ouro, Berardo soube que tinha acertado no vinte. “Foi o grande passo, o negócio que me salvou”, reconhece. Dos tempos da África do Sul – com contornos algo opacos e que renderam todo o tipo de história mais ou menos mitológicas – esta é aquela que Berardo gosta mais de recordar.
O instinto matador
A partir do golpe do ouro, dinheiro foi produzindo mais dinheiro, à medida que Berardo foi entrando em vários negócios: diamantes, petróleo, papel, banca, mármores, e outros. Cozinhar vários negócios ao mesmo tempo foi sempre um hábito, fruto do instinto e energia que os amigos lhe gabam. “É um inconformista nato, um homem alegre, cheio de iniciativa”, aponta Horácio Roque, presidente do Banif, amigo e companheiro de negócios.
O jovem empresário foi gozando da sua dose de sorte: no dia em que visitava a primeira mina de diamantes, acabada de comprar, foi encontrada uma pedra enorme que pagava de imediato grande parte do investimento. Mas Berardo não acredita na sorte. “Dá muito trabalho”, contrapõe.
No final dos anos 80, com o clima social a ficar mais agreste e o regime sul-africano a entrar em desagregação, o empresário começa a diversificar os investimentos e a aproximar-se de Portugal. Berardo já era, então, uma destacada figura no país, tendo no currículo o facto de ser o único português a ter integrado o conselho consultivo do presidente Pieter Botha.
Seguindo a estratégia de ir buscar pontas-de-lança madeirenses para investir na região, Alberto João Jardim foi o primeiro a seduzir o português – assim como Horácio Roque e Dionísio Pestana – para regressar. Berardo respondeu afirmativamente ao convite, passando a contar mais com a ajuda do irmão e braço-direito Jorge, que passou a ser o seu representante na ilha (ver “O outro Berardo”). Ao líder político da Madeira, o empresário não poupa, elogios. “A Madeira deve ao Alberto João Jardim o sacrifício que fez para dirigir a região”. Significa que gosta de líderes autoritários? A resposta é clara: “Nos negócios em que eu ando só pode haver um patrão”.
Pleno da liquidez gerada em África, Berardo entra em força num Portugal a renascer das cinzas: com Horácio Roque compra, em 1987, a Empresa Madeirense de Tabacos, entra no capital da Caixa Económica do Funchal (Banif) e compra o Monte Palace, uma quinta abandonada que restaurou e que atrai hoje mais de 200 mil turistas por ano. Compra, também com Roque, o Hotel Savoy, o negócio mais emotivo em Portugal. “Quando era miúdo fui lá e fiquei muito impressionado. Lembro-me de pensar que um dia, o hotel seria meu”.
Ao mesmo tempo que vai diversificando pelo mundo fora - Canadá, Nicarágua - reforça a aposta em Portugal, desta feita no continente. Compra 20% dos supermercados Inô à Jerónimo Martins, passo que lhe renderia mais de 3,5 milhões de euros de mais-valias em dois meses. Nada que o tenha impressionado: “Os negócios em Portugal nunca têm uma escala internacional”. Vira-se em 1995 para a comunicação social, área da sua apetência, comprando a falida Investec – dona do Record e da revista Máxima – ao Estado. Mais tarde venderia a empresa – juntamente com a participação de 18% na SIC de Pinto Balsemão – à Cofina do empresário Paulo Fernandes. “O Francisco Capelo é que fez todo o planeamento do investimento e preparou o pacote”, conta Rui Cartaxana.
Francisco Capelo (ex-membro do partido comunista), Jorge Berardo e o advogado André Luiz Gomes (da Gonçalves Pereira Castelo Branco) fazem parte do núcleo duro de decisão de Berardo que, contudo, recusa revelar nomes. “Houve uma altura em que comecei a dizer quem me ajudava e numa semana perdi oito pessoas! No way!”, atira.
Além dos incondicionais, Berardo tem por hábito recolher opiniões de quem sabe sobre os assuntos nos quais se envolve – quando encontra alguém com capacidade, não hesita. “Este é o ‘gift’ que ‘God gave me: to choose people to be with me”, admite, em mistura bilingue. “Quando tenho confiança na pessoa, é confiança, não tenho meio termo”, diz. “Se estou como accionista a pagar a alguém para dirigir o meu negócio, ‘let them fucking work!’”. Em todos os negócios que tem – nas várias empresas, em ramos tão diferentes como a cortiça, as rações, o cabo, o turismo ou a paixão dos vinhos (JP Vinhos, proprietária da Quinta da Bacalhôa, entre outras) –, Berardo coloca os avançados e, apesar da margem que confessa dar, pede-lhes resultados. “Quero é pessoas que gostem do que estão a fazer.” Só não delega quando se trata de especular na bolsa, onde se dá muito bem desde os tempos de África do Sul. “Isso é tratado por mim e pelo meu filho”, diz.
No meio de toda a hiperactividade sobra sempre algum tempo para as maiores paixões: a família, os vinhos e, claro, a arte, que colecciona avidamente. Berardo é, aliás, um coleccionador compulsivo: tem a maior colecção privada de azulejos do mundo e uma extensa colecção de cruzes e cristos de marfim. Sobra também tempo para as férias: nunca mais de uma semana seguida. Miami e Caraíbas fazem parte dos destinos eleitos, mas Porto Santo é o local favorito, onde tem uma casa em cima do mar. “Agora já não se poderia construir ali”, confessa.