Asfixia Energética
Tensão na América do Sul
ENTREVISTA / EVO MORALES
"Lula deveria pensar na Bolívia, não só no Brasil"
Boliviano desconfia das multinacionais e vê entendimento difícil com Petrobras
MERCEDES IBAIBARRIAGA
O presidente da Bolívia, Evo Morales, desconfia das multinacionais porque acha que elas não têm interesse em investir no país e considera que o "entendimento é difícil" com essas empresas, "especialmente a Petrobras". Avalia que as relações com o Brasil seriam mais difíceis se não fosse sua amizade com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas acha que Lula "deveria pensar também na Bolívia, e não só no Brasil". Foi o que disse em entrevista no Palácio Quemado, em La Paz, na última segunda-feira: "Os brasileiros, e Lula, precisam compreender que o gás natural pertence aos bolivianos e que nos cabia corrigir um mau negócio anterior".
Na entrevista, Morales avaliou seus 18 meses de governo com uma mistura de otimismo e preocupação. Os governadores da parte leste do país, mais próspera, se opõem ao seu projeto-símbolo: a declaração de um Estado plurinacional, com autonomia para os povos indígenas, como parte da nova Constituição, em elaboração pela Assembléia Constituinte -que acaba de adiar outra vez a entrega do projeto de Carta.
Alguns governadores apelaram às Forças Armadas e à resistência civil em defesa de outro modelo de autonomia, a provincial. Morales garante que as duas são compatíveis. Ele reconheceu que o país sofrerá escassez interna de gás natural e precisará importá-lo da Venezuela. Terminou com a garantia de que um dia a Bolívia se igualará à Suíça. Abaixo, trechos da entrevista.
PERGUNTA - O presidente Lula criticou sua agressividade verbal em relação à Petrobras e ao comércio de gás natural com seu país. As relações são tensas?
EVO MORALES - Não, sempre nos comunicamos. Bem... talvez Lula esteja chateado, mas não fui agressivo com ele, nem com a Petrobras e ainda menos com o Brasil. Se tivéssemos sido agressivos, isso significaria bloquear a saída de gás natural para o Brasil, e isso é algo que nunca faremos. Garantimos gás ao Brasil e cumpriremos os novos contratos.
Mas os brasileiros, e Lula, precisam compreender que o gás natural pertence ao Estado bolivianos e que nos cabia corrigir um mau negócio anterior. Lula deveria pensar também na Bolívia, e não só no Brasil. Não confiscamos os bens da Petrobras, o que significa que não fomos agressivos. Mas estamos procurando uma maneira de trabalhar juntos, na indústria petroquímica.
PERGUNTA - E em que ponto está o diálogo a esse respeito?
EVO MORALES - Veja, tenho muito respeito e admiração pelo presidente do Brasil. Lula intercede muitas vezes em nossa defesa, da Bolívia e da América Latina. Reconhecemos a liderança regional do Brasil.
Nas negociações com as empresas, especialmente a Petrobras, um entendimento é difícil, sinceramente. Se as negociações entre Bolívia e Petrobras avançam é porque as duas partes precisam disso. Quanto a esse tema, sempre serão importantes as decisões políticas de presidente a presidente, de governo a governo. Se não existisse a vantagem que nossa amizade com o presidente Lula representa, talvez houvesse um distanciamento bem maior no relacionamento com o Brasil. Mas queremos fortalecê-lo.
PERGUNTA - A estatal petroleira YFPB (Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos), responsável por implementar a nova política de energia, não está conseguindo decolar.
MORALES - O maior problema que temos é recuperar a YPFB. Não dispomos de especialistas bolivianos patriotas dispostos a trabalhar pelos salários que o governo paga. Apostei com muito carinho na política de austeridade, reduzi meu salário de 40 mil para 15 mil bolívares [cerca de US$ 1.800], e a nova lei dispõe que nenhum funcionário público ganhe mais do que o presidente. Mas os especialistas querem cobrar o mesmo que pagam as multinacionais, salários astronômicos, e isso não é possível.
PERGUNTA - Mas também existe um problema de investimento. O grupo hispano-argentino Repsol YPF e a brasileira Petrobras ainda não apresentaram seus planos de investimentos.
MORALES - Precisam fazê-lo, estamos esperando seus números. Espero que esse assunto se acelere porque elas têm o dever de apresentar seus planos de investimento, nos termos dos novos contratos. Eu acreditava que tivesse havido grande investimento sob os governos neoliberais anteriores e sob a lei de capitalização [que fez da estatal YPFB uma empresa de propriedade mista], mas não foi isso que aconteceu.
De 1996 para cá, quase não houve investimento em prospecção, e muito menos para elevar o volume de produção no mercado interno. As empresas petroleiras extraíam gás de áreas já prospectadas pela antiga estatal e descartaram qualquer esforço de descobrir novos campos, prospectar. Os investimentos da Petrobras e da Repsol foram muito baixos e só para exportar ao Brasil ou à Argentina, ou seja, para tirar o gás de nossas fronteiras. E, agora, por que não existe investimento? Que os neoliberais não o venham perguntar a mim.
PERGUNTA - O senhor confia nas multinacionais petroleiras?
MORALES - A verdade é que confio mais em estatais do que em empresas multinacionais privadas. Desconfio muito das multinacionais porque não vejo nelas vontade política nem interesse de investir muito. Nossa política agora é, primeiro, que a Bolívia vai investir recursos próprios para prospectar, extrair e comercializar o gás natural, sempre que possível. Nos casos em que isso não seja viável, nossa preferência é a associação com estatais.
A terceira opção são as multinacionais. Nós oferecemos garantias e segurança jurídica. No passado, as empresas firmaram contratos que o Congresso não ratificou; algumas deixaram de cumpri-los; não houve investimento; praticaram o contrabando. Por isso, que moral têm para falar de segurança jurídica? A segurança é a primeira coisa que vamos garantir na Bolívia, mas esperamos que as empresas retribuam.
PERGUNTA - Analistas acreditam que a Bolívia possa sofrer desabastecimento interno de gás.
MORALES - Estamos cientes e adotando medidas preventivas. Necessitamos, para os três meses de inverno, de pelo menos 3.600 toneladas de gás natural e já prevíamos adquiri-lo da Venezuela por precaução. Mas estou animado porque assinei um decreto de luta contra o contrabando de gás, indiquei um novo presidente para a Alfândega e já não temos gente na fila para comprar um botijão.
PERGUNTA - A Bolívia tem capacidade de suprir a demanda argentina e a brasileira?
MORALES - Sim. No momento, exportamos à Argentina cerca de 5,7 milhões de metros cúbicos ao dia [o contrato entre a YPFB e a Enasa prevê que as exportações diárias sejam de no mínimo 4,6 milhões e no máximo 7,7 milhões de metros cúbicos de gás natural ao dia] e estamos cumprindo perfeitamente o contrato. No caso do Brasil, nosso volume diário de exportação é de 25 milhões de metros cúbicos ao dia e nos pediram que o elevássemos a 27 milhões. Sempre declaramos que atender à demanda máxima [30 milhões de metros cúbicos ao dia] era difícil. Mas um aumento na cota é possível.
PERGUNTA - A ONU denunciou um aumento "dramático" (de cerca de 8%) no cultivo de coca. Já aos EUA, sua política de "revalorização" da folha de coca causa "inquietação".
MORALES - Dois mil hectares a mais de coca são um aumento dramático? Querem que na Bolívia haja forças paramilitares, fumigações, violações dos direitos humanos? Não consigo ver por que a ONU e os Estados Unidos não compreendem que, do ponto de vista de luta coordenada contra o narcotráfico, o melhor exemplo do mundo é a Bolívia. Estamos instaurando o controle social, a redução voluntária coordenada com o Exército, a limitação do cultivo de coca por família; não existe erradicação forçada nem violação dos direitos humanos. Desenvolvemos um novo modelo de luta contra o narcotráfico.
PERGUNTA - Por que o senhor mantém seu posto como presidente das federações de produtores de coca do Chapare? Não seria incompatível com o cargo de chefe de Estado?
MORALES - O panorama mudou na Bolívia. Quando a origem de alguém são as lutas sociais, é possível ser presidente e dirigente sindical. Em outras épocas, isso não teria acontecido.
PERGUNTA - O senhor visitou Fidel Castro há alguns dias. Como foi o encontro?
MORALES - Eu estava ansioso, desesperado por entrar. Os colaboradores dele me pediram para não abraçá-lo com força porque ainda está frágil. Quando conversamos e o ouvi falar de seus princípios de solidariedade, de seus preocupações com o ambiente e a energia, de suas críticas ao álcool e aos biocombustíveis, tive vontade de chorar, eu me emocionei. Eu lhe disse: "Comandante, o senhor não precisa convencer a Chávez, a mim e a outros líderes. Basta nos dar instruções". Na despedida, trocamos um forte abraço, ninguém impediu. Disse-me: "Evo, cuide de sua segurança, e não se separe do povo".
PERGUNTA - O senhor está distribuindo aos prefeitos de cidades bolivianas cheques em valores de milhares de dólares, assinados pela Embaixada da Venezuela. Isso é ingerência de Hugo Chávez nos assuntos bolivianos?
MORALES - Não. Chávez jamais tentou me influenciar. Uma afirmação como essa deriva da discriminação -insinuam que Evo é incapaz e por isso Chávez o ajuda a governar? Quanto aos cheques, todos os países o fazem por meio de ONGs. Os Estados Unidos vêm sem respeitar governadores, prefeitos ou o presidente e distribuem dinheiro. Mas, no caso da ajuda de Chávez, coordenamos com os prefeitos os projetos que lhes interessam e assim não existe malversação de fundos.
PERGUNTA - A Bolívia vai se aproximar do socialismo do século 21 de que fala Chávez?
MORALES - Cada país tem suas particularidades. Na Bolívia, os povos indígenas são socialistas por princípio e natureza. Em certas comunidades não existe propriedade privada. Socialismo é viver com certa igualdade. Que alguns não morram de fome enquanto outros enriquecem roubando as riquezas do Estado. Existem algumas famílias na Bolívia que só querem esta terra para saqueá-la, este povo para explorá-lo e este Estado para espoliá-lo. O que me interessa é que exista paz com justiça social. Se em Cuba dão a isso o nome de comunismo, bom; se na Venezuela é socialismo, bom. Eu usaria o termo humanismo.
PERGUNTA - Mas como socialismo é entendido na Bolívia?
MORALES - No sentido de uma forma de reparar as desigualdades geradas por 500 anos de colonialismo. Aqui, apostamos em pôr fim à exclusão e à pobreza. O capitalismo é o pior inimigo do ser humano.
PERGUNTA - O senhor tem ambições de permanecer no poder para garantir sua revolução?
MORALES - Pretendo me aposentar na hora certa. Assim, não serei repudiado como outros presidentes. Mas isso não depende de mim. A reeleição depende do povo.
PERGUNTA - Mas o senhor pretende garantir sua reeleição e adotar um sistema de Câmara única para o Legislativo, na nova Constituição?
MORALES - A Câmara Alta e a Câmara Baixa nos levam ao atraso e ao conflito. Na Câmara dos Deputados [onde o governo tem maioria], as iniciativas são aprovadas, mas, no Senado [onde o MAS, de Morales, é minoritário], elas são bloqueadas, o que prejudica o país. O sistema unicameral está em debate. E a reeleição do presidente é uma proposta das forças sociais. Não só a ratificação mas também a revogação de mandato.
PERGUNTA - Que temas não admitem recuo, na nova Constituição?
MORALES - Medidas que proíbam firmemente a privatização dos recursos naturais, garantam a luta contra a corrupção, assegurem o fim da discriminação. Também é preciso garantir a autonomia dos povos indígenas e dos departamentos e declarar o Estado plurinacional e comunitário.
PERGUNTA - O termo plurinacional não gera divisões?
MORALES - Pelo contrário. O novo Estado plurinacional inclui todos. Essa é a melhor forma de nos integrarmos. O termo plurinacional reconhece todas as nações da Bolívia e não significa autogoverno para cada comunidade, ayllu ou tenta [organizações indígenas pré-coloniais]
Eu questiono o primeiro artigo da Constituição, que fala em Estado multiétnico. Que é isso, etnia? Somos nações. Dizer a um quechua que ele representa uma etnia seria derrogatório. No passado, imigrantes da Croácia, da Alemanha, instalaram-se na parte oeste do país. Não são etnias, são nações. E agora parte da Bolívia.
PERGUNTA - Os quatro departamentos da "meia-lua", no leste do país, declararam guerra à autonomia dos povos indígenas.
MORALES - Não faz sentido porque vemos duas classes de autonomia, e são complementares. Uma é a autonomia ou autodeterminação defendida há séculos pelos movimentos indígenas, que pedem o reconhecimento de seu modo de vida e de seus direitos como povos. E, há cem anos, surgiu a demanda pela autonomia departamental. O governo garante as duas agendas. Vamos conceder certos poderes autônomos aos departamentos, mas estes não podem tratar como escravos os povos indígenas que lá vivem. O que noto é que algumas famílias do leste afirmam conduzir a autonomia como reivindicação regional, mas por trás dessa demanda existe discriminação e racismo. Se as autonomias departamentais não estiverem orientadas à divisão, separação e independência, estão garantidas desde já.
Mas algumas pessoas querem trasladar o centralismo nacional ao nível dos departamentos. É essa a desconfiança que sentem os irmãos indígenas. Com a criação de duas autonomias, departamentais e indígenas, temos de pôr fim a essa divisão entre os collas [os indígenas do oeste do país] e os cambas [bolivianos do leste].
PERGUNTA - A Assembléia Constituinte é um foco de divisão?
MORALES - Não. Muita gente diz que a Bolívia é inviável. Falso. A Bolívia é viável, não está ancorada ao subdesenvolvimento. Contamos com bases para a esperança, graças aos nossos recursos naturais. Se continuarmos avançando como agora, dentro de 15 anos poderemos ser iguais à Suíça.