http://www.fab.mil.br/portal/capa/index.php?page=notimp
Valor da informação
André Gustavo Stumpf
O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, veio ao Brasil, desfilou sua pinta de galã de universidade e olhou o colega Antonio Patriota de cima para baixo. A diferença de altura dos dois é notável. As preocupações, contudo, foram semelhantes: a persistente e contínua ação do governo dos Estados Unidos no movediço terreno das comunicações. Washington ouve e monitora todo o mundo, quando e como quer. E não respeita legislação local. Não respeita, aliás, nem a privacidade de seus nacionais.
Os norte-americanos dizem agir assim para proteger e defender aliados da ação de terroristas. É o que se pode dizer. Na linguagem da diplomacia é quase pedir desculpas. Aos brasileiros resta agir como o ministro Patriota. Protestar e anunciar uma sombra na credibilidade entre os dois países. Tudo teatro. O governo brasileiro sabe que os americanos espionam e vez por outra trocam informações sigilosas, estratégicas ou secretas. O relacionamento é antigo nessa área.
A diferença é que Snowden botou a boca no trombone e conseguiu asilo na Rússia. Obama não gostou e retaliou. O mal já está feito. Resta aos norte-americanos a discussão sobre a postura de seu cidadão: herói ou traidor? O fato é que, como o próprio John Kerry admitiu, o governo de Washington, de fato, monitora as comunicações em todo o mundo. A National Security Agency (NSA) construiu prédio monumental em Utah, no qual armazena em servidores imensos a memória do que entende ser mais importante.
Ninguém vai perder tempo grampeando o telefone de político brasileiro para obter informações estratégicas. As informações poderão conduzir a outro território, o da polícia. Mas se o grampeado começar a se comunicar com áreas críticas no Afeganistão, ou países vizinhos, a luz vermelha vai se acender em Utah. Fora daí, os grandes segredos brasileiros são de ordem industrial ou comercial. Detalhes do edital para licitação de interessados na exploração do petróleo na área do pré-sal já vazaram há muito tempo. Chegaram onde tinham que chegar.
Os segredos militares não constituem nada de novo. A Força Aérea Brasileira está aposentando os 12 Mirage restantes do lote comprado na década de 1970. Alguns foram modernizados. Mas eles ficaram obsoletos e anacrônicos. O tempo de validade vence em dezembro. Serão vendidos como sucata. O governo não providenciou a tempo a compra dos novos caças. A partir de janeiro próximo o país estará sem defesa Aérea eficiente. O Brasil não se defende, nem protege seus segredos.
Quando privatizaram a Embratel, foi com ela o único satélite nacional de comunicação. Ninguém comprou outro. Os brasileiros utilizam satélites internacionais alugados. Não há nenhum problema nisso. Só que os dados, inclusive os militares, ficam expostos. O GPS, que é utilizado em aparelhos portáteis e em automóveis, depende dos satélites norte-americanos. Se eles pararem de transmitir, o sistema entra em pane.
A discussão no Brasil, portanto, não é o que os norte-americanos fazem para bisbilhotar a vida dos outros. É o que os brasileiros, cientes dessa realidade, realizam para evitar escutas ilegais. Não fazem nada. Não é só o pessoal de Washington que trabalha como Big Brother. Russos, ingleses, franceses, chineses e israelenses, entre outros, também operam muito na área de inteligência.
A presidente Dilma Rousseff irá a Washington em outubro. Será uma visita de Estado, com direito a recepção na Casa Branca, gravata preta, convidados ilustres, na óbvia presença do presidente Barack Obama. A agenda entre Brasil e Estados Unidos contém aspectos comerciais muito objetivos que não estão no nível presidencial. Há a remota possibilidade de adquirir o avião produzido pela Boeing — o F-18 — e a discussão sobre retirada do visto para viajantes constantes entre os dois países.
É pena perder tempo com a questão do monitoramento de comunicações. O assunto é abjeto, mas espionagem existe desde que o homem descobriu a guerra como continuação da política. Mata Hari, com seu magnífico rebolado, encantou aliados enquanto espionava para os alemães. O serviço secreto inglês produziu resultados notáveis na Segunda Guerra. Não há nada de novo nesse território. É algo com que os países têm que conviver. O volume exato da safra de soja brasileira é informação que vale ouro nas bolsas internacionais de mercadorias. Faz a fortuna ou a desgraça de investidores. Quem tiver a melhor informação vai rir por último. É simples assim.
Conexão diplomática
Somos todos vulneráveis
Silvio Queiroz
As revelações do ex-consultor de inteligência Edward Snowden sobre os programas do governo americano para espionar globalmente a telefonia e a internet não expuseram uma exceção. Ao contrário: segundo o brasileiro André Luís Woloszyn (foto), que é analista da área e tem uma passagem pela Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, potências europeias, a Rússia e a China, entre outros agentes estatais, fazem o mesmo, na medida do alcance de cada um. Em meio aos desdobramentos do episódio, que rendeu inclusive questionamentos ao secretário de Estado John Kerry, durante a visita que fez a Brasília nesta semana, Woloszyn está lançando Guerra nas sombras, que aborda, entre outros temas, a emergência dos atores não estatais nessa que é uma das atividades mais antigas da civilização — e provavelmente, das mais perenes. Em entrevista à coluna, o autor alerta que, no mundo da cibernética, chora menos quem pode mais em matéria de tecnologia.
O Brasil tem como se defender desse novo tipo de espionagem?
O país tem como minimizar os efeitos. Não tem como se defender, em primeiro lugar, porque nós temos hoje no mundo 12 provedores de internet, e 10 estão nos EUA. No momento em que toda comunicação que se faz tem de ir para lá, não é preciso nem de uma base aqui.
Nós estamos pagando o preço pelo fato de não termos tecnologia. A única forma de se precaver é usar mensagens criptografadas, como já fazem alguns grandes órgãos de imprensa mundiais. Também vai ser preciso reduzir aquilo que se diz e que se escreve na internet. No momento, é uma das únicas maneiras de minimizar essa forma de espionagem.
Que tipo de dados está ao alcance de quem faz esse rastreamento, em termos de interesses de Estado?
Em questões estratégicas, temos os interesses nacionais de determinados países que fazem esse tipo de espionagem — não só os EUA, mas também China, Reino Unido, que coletam de dados na web. O Brasil é um país em ascensão, tem muitas coisas de interesse estratégico. Por exemplo, a compra dos caças (para reequipar a FAB), que gerou uma disputa entre empresas francesas, americanas. No passado houve a concorrência para o Sivam. Detalhes sobre o submarino nuclear brasileiro, sobre a política ambiental do governo federal, tudo isso é de interesse. Isso não é novo, vem de Sun Tzu, mas hoje passa a fazer parte da competição econômica, não só da guerra.
Com o fim da Guerra Fria, a espionagem econômica se sobrepôs aos assuntos propriamente de defesa?
A gente tinha um paradigma de atuação na Guerra Fria. Hoje, com as novas tecnologias, a coisa se tornou muito mais acelerada. Também porque as ameaças que surgiram são híbridas. São pontuais e surgem de forma imprevisível. É o caso dos ciberataques: hoje, qualquer guerra será travada no ciberespaço, como também o terrorismo e o crime, inclusive o narcotráfico. O fundador do WikiLeaks, Julian Assange, foi um dos primeiros a alertar a respeito dessa questão da privacidade na internet. Ela foi criada para objetivos militares e depois passou a ser o que conhecemos hoje: democratizou o acesso ao conhecimento, venceu barreiras que eram intransponíveis… mas trouxe também a pirataria digital. Hoje, um hacker na África tem o mesmo potencial técnico de uma nação desenvolvida.
Qual é o impacto dos “novos atores”, como você chama no seu livro, nesse “mundo das sombras”?
É um impacto forte, em função das motivações deles. Assim como temos grupos que atuam pela liberdade de informação, temos outros com diversas ideologias e com o mesmo poder tecnológico para efetuar um ciberataque. Em uma sociedade cada vez mais dependente das novas tecnologias, em vez de o terrorista acionar uma bomba, instala um vírus nos computadores de aeroportos e é capaz de produzir o pânico.
Nesse quadro, como ficam os alinhamentos entre Estados, dentro da nova ordem mundial que estamos vendo se formar?
Temos o caso do Snowden, mas também do Bradley Manning (o soldado americano que entregou informações sigilosas ao WikiLeaks). Ele expôs documentos não só militares, mas também da diplomacia. Na minha opinião, esse tipo de informação não tem tanto impacto entre países, mas tem um impacto de mídia. Mas os agentes estatais também fazem esse tipo de interface: a França faz, o Reino Unido faz. Para a opinião pública, isso é inconcebível, mas nos bastidores das relações internacionais, onde se diz aquilo que não pode ser dito em público, isso é visto como natural. A China faz, a Rússia faz…
O episódio do Snowden mostra que persiste nos serviços uma mentalidade de Guerra Fria?
A Guerra Fria durou uns 40 anos, até os anos 1980, quando os órgãos de inteligência estavam preparados para trabalhar com a ordem mundial bipolar. Quando a União Soviética se esfacelou, os serviços de inteligência não tinham mais inimigo, de uma hora para outra. Na Segunda Guerra, eram os nazistas. Depois, o império soviético. Foi um baque, porque a mentalidade dos serviços estava voltada para a bipolaridade. Surgiram outros assuntos, que não costumavam ser avaliados pelos analistas, como meio ambiente, narcotráfico, espionagem industrial… Então surgiu um novo inimigo, o terrorismo, e os órgãos de informações passaram a trabalhar com isso. Hoje, estamos passando por outro desequilíbrio, porque não tem mais como usar o terrorismo como motivo para manter o investimento de milhões de dólares ou euros na inteligência.