Legião Estrangeira, a minha experiência pessoal.

Assuntos em discussão: Exército Brasileiro e exércitos estrangeiros, armamentos, equipamentos de exércitos em geral.

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Re: Legiao estrangeira, a minha experiencia pessoal.

#16 Mensagem por legionario » Ter Set 14, 2010 6:44 pm

Depois da morte do capitao Danjou, é o alferes Jean Vilain que toma o comando tendo sido tambem abatido com uma bala em plena fronte. O alferes Maudet substitui-o no comando mas, ao fim de horas de combate intenso, ja so dispoe de 12 legionarios em estado de combater.
Horas depois, o alferes, ja so com um cabo (Maine) e quatro soldados sobreviventes, da ordem de atirar uma ultima salva com as ultimas muniçoes de que dispunham e de carregar à baioneta sobre o inimigo, tendo sido ferido duas vezes e posto fora de combate, e so nao foi morto porque o legionario Catteau o protegeu com o seu proprio corpo, morrendo no seu lugar crivado de balas.
Admirado com tanta valentia, o oficial mexicano impede os seus homens de massacrar os sobreviventes que continuavam com as baionetas em riste, e aceita as 3 "condiçoes" que o cabo Maine "impoe" para se renderem :
- "Nos rendemo-nos se tratarem os ferimentos do nosso alferes e dos camaradas, se nos deixarem as armas e se disserem a quem vos queira ouvir que nos cumprimos o nosso dever até ao fim".
O coronel mexicano Cambas respondeu : " Nao se recusa nada a homens como vocês" !




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Re: Legiao estrangeira, a minha experiencia pessoal.

#17 Mensagem por legionario » Ter Set 14, 2010 6:44 pm

A expressao "fazer Camerone" ficou desde entao no vocabulario dos legionarios para designar as situaçoes desesperadas.

A outra grande festa da Legiao é o Natal, festa da familia legionaria, e que vai além do aspecto religioso pois nem todos os legionarios sao cristaos. Neste data, as companhias preparam cada uma o seu presépio , sendo o melhor deles, premiado por um juri. O comando da presentes a todos os legionarios, tal e qual como se de uma verdadeira familia se tratasse, faz-se uma grande ceia de Natal, canta-se , bebe-se,...sobretudo bebe-se muito.

De tudo isto se fala em Aubagne para que os legionarios comecem, desde ja, a sentir realmente que fazem parte duma grande familia, para estimular tambem o espirito de sacrificio de cada um, pois é "normal" sacrificar-se ou dar a vida pela familia. A realidade sera algo diferente, e terei ocasiao de falar disso posteriormente.

Ainda no 1°RE , e ja na fase final de seleçao, os candidatos apurados sao levados à casa de retiro de Puyloubier, que se situa, tal como Aubagne, na regiao da Provença (région PACA : Provence, Alpes,Côte d'azur), onde se encontram asilados os velhos legionarios que nao têm familia ou que nao têm para onde ir. Aqui, os futuros legionarios têm oportunidade de conhecer e de falar com os veteranos das guerras da Argélia e da Indochina, e penso mesmo que ainda existem nos dias de hoje alguns sobreviventes da ultima guerra mundial. Quando la estive, havia um antigo legionario alemao, de que ja nao me recordo o nome e que soube mais tarde ter sido um heroi da aviaçao alema que tinha sido dado como desaparecido em combate durante a segunda guerra mundial. So se descobriu a sua verdadeira identidade depois da sua morte, nos anos 90.




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Re: Legiao estrangeira, a minha experiencia pessoal.

#18 Mensagem por legionario » Ter Set 14, 2010 6:45 pm

Em meados de maio, aquela que haveria de constituir a minha secçao de "engagés volontaires" ja estava praticamente pronta para partir para o regimento de instruçao, o 4° régiment étranger, em Castelnaudary.
Eramos cerca de 40 homens, dos quais 5 eramos portugueses : 2 eram antigos paraquedistas, um rapaz do norte que nao tinha ido à tropa, um outro filho de emigrantes e que falava mal a nossa lingua, e finalmente eu, que era um ex-PA (policia aérea). Tinhamos todos os 5, entre 22 e 25 anos e logo desde o principio, à excepçao do "emigrante", formavamos o nosso "grupinho". Estes grupinhos eram e sao normais na legiao pois o pessoal tem tendencia a juntar-se aos congéneres nacionais, mesmo por uma questao de lingua pois a maioria dos futuros legionarios nao fala ainda o francês. Do meu grupo de tugas , so eu e o emigrante falavamos francês, eu porque tinha atraz de mim 7 anos de francês escolar.

Como poderao imaginar, eu como antigo PA (policia aérea) , era frequentemente alvo de "bocas" amigaveis da parte dos ex-paraquedistas, mas esquecemos essas pequenas diferenças logo ao principio, quando tinhamos que nos impôr face aos demais camaradas das outras nacionaliddaes. As primeiras "guerrilhas" começaram logo nos primeiros dias em Aubagne, sobretudo à noite na camarata, quando as luzes se apagavam e nos tinhamos que libertar o stress acumulado durante o dia : começava-se por uma guerra de almofadas para acabar frequentemente em violentas brigas a soco e pontapé. Tudo acabava mal se ouviam os passos do cabo encarregado de nos vigiar. Por vezes, estas brigas iam longe de mais e havia gente magoada a sério, mas estes casos acabavam quase sempre com a expulsao dos intervenientes, por isso tinhamos um certo cuidado.




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#19 Mensagem por legionario » Ter Set 14, 2010 6:46 pm

Ja com a respectiva carecada e recebidas as fardas, partimos entao num belo dia do mês de maio para Castelnaudary. O antigo quartel do 4° RE que se situava no centro da cidade e que datava do século XIX (?) ja tinha sido substituido por modernas instalaçoes muito bem equipadas, os quartos que acolhiam entre 6 a 8 legionarios , eram pintados de cores garridas, cada um com o seu duche e os seus lavabos, nada a vêr com o antigo quartel que os legionarios das recrutas anteriores tinham conhecido.

Logo à chegada, fizemos formatura ao lado da nossa companhia ( a 3° companhia), e dispusemos todo o equipamento e fardas que tinhamos recebido em Aubagne no chao, e os graduados controlaram, uma a uma, cada peça recebida. Foi tambem este o momento em que fomos apresentados aos nossos futuros instrutores e ao nosso chefe de secçao. Eu desta vez nao tive muita sorte porque fui parar justamente à secçao do "terrivel" sargento-chefe W. Este homem, um francês da Alsacia, tinha-se destacado logo ao principio da nossa chegada, do jovem tenente que iria comandar a secçao vizinha e que tinha um ar bem mais "simpatico".
O sargento-chefe W. era um paraquedista dos seus quarenta anos e cerca de vinte anos de serviço, de estatura mediana, tinha os cabelos cortados à escovinha e uns olhos azuis maus. Ele nao falava, so gritava; e quando gritava dava a impressao que cuspia por todo o lado. O que mais impressionava nele era a sua voz e a enorme cicatriz que lhe ia da orelha até a meio do pescoço. Esta cicatriz era a origem da sua voz muito rouca e tinha sido provocada pela navalhada de um legionario que lhe atingiu as cordas vocais, nos tempos em que esteve afectado no 2°REP. Quem lhe salvou a vida foi um legionario preto, e o sargento-chefe W. repetia vezes sem conta que deixou de ser racista nesse dia, mas ninguem acreditava.




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#20 Mensagem por legionario » Ter Set 14, 2010 6:47 pm

Mais sorte tivemos com o seu adjunto, um sargento português, que passarei a designar por sargento M. ! Este homem era extraordinario sob todos os pontos de vista. Apesar dos seus 32 anos, mantinha ainda o record do regimento da pista de obstaculos (Parcours du Combattant), que ele ultrapassava como um gato. Ele era mesmo felino, estatura mediana e muito magro e seco, tinha umas feiçoes agradaveis ...mas cuidado, quando ele se chateva, ai ai ! Vi-o uma vez mandar um soco a um cabo alemao da minha secçao, com cerca de 2 metros de altura e 120 quilos de musculo, que tinha sido arrogante com ele. Este comeu e calou ! (se ele se tivesse virado ao sargento, teria sido severamente castigado, faço notar...).

Para além do sargento-chefe W. e do sargento M. havia ainda dois outros sargentos chefes de grupo, um inglês bebedola que so chateava o pessoal quando estava carente , e um outro sargento, que era o segundo gigante da secçao e que vinha de Tahiti, (um territorio ultramarino francês) . Apesar de ser um gigante de quase 120 quilos, encolhia-se todo quando o chef de secçao W. o insultava em publico , tratando-o de "cretino" e de "imbecil", o que acontecia quase todos os dias, porque ele era mesmo um cretino e um imbecil.

Finalmente, havia 4 cabos do enquadramento , de que so destaco o ja referido gigante alemao que levou o "pêro" do sargento português, pois era uma verdadeira besta. Ora lhe dava para se rir como um tolo, ora tinha acessos de raiva e começava a partir tudo e a distribuir estalos com as suas enormes manapulas. A sua vitima designada era um preto francês, cuja alcunha era "Blanche de Neige" (Branca de Neve), de modos muito efeminados e que fazia rir toda a gente com as suas graças e os seus "numeros". Dizia-lhe frequentemente o cabo alemao, no gozo : " como tu és belo, Chartier" ; e respondia-lhe o legionario Chartier : " como você é forte, caporal" ! O cabo, depois de mandar uma gargalhada estrondosa que atroava nos ares, subemetia-o a um dos seus castigos preferidos que tanto podia ser fazê-lo rastejar em cima das silvas e dos calhaus como de o obrigar a fazer de estatua em diversas posiçoes, ou dar-lhe mesmo porrada a valer quando o "gracioso" Chartier abusava na ironia.


NT. o nome Chartier é um pseudo.




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#21 Mensagem por legionario » Ter Set 14, 2010 6:47 pm

Pouco tempo depois de ter chegado ao 4°RE, tive conhecimento de uma situaçao curiosa e que foi muito falada entre os portugueses . Numa das secçoes de instruçao de uma outra companhia, um cabo português, ex- soldado paraquedista de Tancos, fazia a sua palestra aos recém-chegados. Como é proprio da sua funçao de cabo instrutor, ele vociferava e gesticulava enquanto passava diante de cada um dos novos instruendos do seu grupo, formados em linha. Subitamente, ele estaca diante de um deles, o seu rosto muda de côr, perde a voz, e... perfila-se ! Tinha diante dele o seu antigo tenente paraquedista de Tancos, que agora mais nao era que um simples instruendo. Os papeis tinham-se invertido,... prova que o mundo pode dar muitas voltas.
Posso-vos garantir que nao é todos os dias que se vê um cabo da legiao pôr-se em sentido diante de um legionario de segunda classe ! ( NT. neste caso nem legionario de segunada classe era, porque nao tendo ainda efectuado a marcha do "Képi Branco", era considerado "engagé volontaire")




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Re: Legiao estrangeira, a minha experiencia pessoal.

#22 Mensagem por legionario » Ter Set 14, 2010 6:51 pm

Gostaria de publicar as primeiras fotos agora... antes de passar para o segundo capitulo :)
Vamos a vêr se o consigo fazer sem a juda de ninguem.

Ja repararam que faltam acentos nalgumas palavras...é que estou a escrever num teclado francês que é diferente do nosso...




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#23 Mensagem por legionario » Ter Set 14, 2010 8:22 pm

A secçao de instruçao completa.
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os dois da esquerda sao o sargento tahitiano e o cabo alemao
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Eu, no canto superior direito
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Ao centro, o Sargento-chefe W., chefe da secçao
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Cerimonia da imposiçao dos "Képis Brancos", depois de efectuada a marcha do képi branco.
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Eu sou o terceiro logo nesta primeira coluna, atraz do "mal-encarado" :)
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A quinta da 3a companhia. Todas as companhias têm uma quinta na montanha (Pirinéus) onde se desenrola uma parte da instruçao pratica.
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O sargento português M. junto com os quatro portugueses da secçao. (Falta o "emigrante").
Nos os quatro "tugas" acabamos nos primeiros classificados da instruçao. O que esta à minha frente acabou 1° classificado, eu em 3°, e os outros dois tugas tambem acabaram logo a seguir, ja nao me recordo exactamente as posiçoes respectivas...
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As duas fotos seguintes foram tiradas durante uma marcha na regiao montanhosa de Murat, na regiao dos Pirinéus, durante a instruçao. Aqui tivemos a primeira baixa.
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#24 Mensagem por legionario » Ter Set 14, 2010 8:48 pm

Amanha continuo...
cumps ;)




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#25 Mensagem por Túlio » Ter Set 14, 2010 9:36 pm

MUITO LEGAL: NÃO PARES!!! :D :D :D :D




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#26 Mensagem por Moccelin » Qua Set 15, 2010 8:34 am

Interessante mesmo. Estou ansionso para ver as partes mais "incomuns" (o que não está nos sites oficiais e afins).




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#27 Mensagem por legionario » Qua Set 15, 2010 10:03 am

A imposiçao do "képi branco" aconteceu mais ou menos 4 semanas depois do inicio da recruta de base que durou cerca de 3 meses e meio.

Logo à chegada ao regimento de instruçao (4°RE), fui afetado à 4°secçao da 3° companhia. Todos os instruendos que nao falavam francês foram "acoplados" a um outro instruendo francofono (ou alguem que falasse bem francês) e este era responsavel pelo parceiro, devendo ajuda-lo e sendo reponsavel por ele durante todo o periodo de instruçao ; chamava-se a esta dupla : o binomio. Apesar de eu falar francês razoavelmente bem, mas para evitar esta "carga" declarei desde o inicio que falava muito mal a lingua e tive pois direito a um binomio francês que era "responsavel" por mim. Este, claro esta, ficou satisfeitissimo da vida quando se apercebeu que eu nao precisava dele para nada.

O condicionamento psicologico a que um legionario esta sujeito logo desde o inicio revela-se mesmo nos mais pequenos detalhes . Aprendemos imediatamente que a roupa deveria ser arrumada no armario seguindo um modelo unico. Todas as peças de roupa se encontravam exactamente na mesma posiçao em todos os armarios de todos os legionarios. As camisas , por exemplo, se repararem bem nas fotos, têm todas 3 vincos por cima de cada bolso, mais dois vincos laterais em cada manga, mais 5 nas costas, e cada um destes vincos estava separado do outro por uma distancia equivalente à largura de uma caixa de fosforos. Passavamos horas, sobretudo à noite, ou durante os fins de semana a passar a roupa a ferro e a fazer os malditos vincos, e as revistas aos armarios eram frequentes. Se o cabo nao ficava contente porque num dos armarios tinha encontrado um pull-over que nao estava dobrado segundo a medida exacta, podia acontecer que todos os armarios do quarto fossem derrubados por terra com todas as roupas de toda a gente misturadas e até lançadas pela janela ; quando isto acontecia, era acompanhado dum berro : " revista de armarios dentro de uma hora !" Isto era muito dificil de fazer e lembro-me de uma noite que passamos a ir buscar a nossa roupa lançada à rua, separa-la e voltar a arruma-la nos armarios.
Era tambem frequente que o legionario desleixado que tinha mal dobrado a sua roupa e que tinha sido o responsavel pela puniçao colectiva, fosse em seguida "castigado" pelos proprios colegas .




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#28 Mensagem por legionario » Qua Set 15, 2010 10:06 am

Para evitar as deserçoes, que eram muito frequentes, ( a nossa secçao foi caso unico, pois que me lembre, ninguem consegiu desertar durante a instruçao) as portas da companhia eram trancadas à noite e o cabo de permanencia fazia rondas durante a noite, contando os legionarios enquanto estes dormiam.
Uma altura, ja a meio da instruçao, ai por volta da uma da manha quando ja todos dormiam, fomos brutalmente acordados por um grande alvoroço e pelo acender das luzes. O cabo de turno tinha dado pela falta de um legionario cuja cama se encontrava vazia. Todos os cabos estavam muito enervados e fizeram formar toda a gente em cuecas no corredor. Se o homem tivesse desertado, o cabo de turno ficaria em muitos maus lençois e provavelmente apanharia uns dias de cadeia pelo motivo de "negligência em serviço". As portas da companhia estavam fechadas à chave..., da companhia ele nao podia ter saido...mas o homem nao se encontrava em lado nenhum ... Que raio teria acontecido ?

O misterio so foi desvendado uma meia-hora depois, quando os nossos cabos desceram ao res-do-chao e foram bater às portas dos cabos-chefes da companhia que aqui dormiam em quartos individuais. Estes cabos-chefe eram tipos ja velhinhos na casa e asseguravam os serviços de apoio : motoristas, quarteleiros, etc. Um deles, um alemao que ja tinha uns bons 30 anos de serviço, e que se nao me engano, era o legionario mais antigo da companhia, tinha dois "vicios" conhecidos de toda a gente e pelos quais era frequentemente punido : a bebida e...os legionarios bonitos. Claro esta, encontraram o jovem belga no seu quarto, onde segundo a versao oficial, estaria a receber explicaçoes sobre uma matéria que ele nao tinha percebido bem, e que o simpatico cabo-chefe teria tido a bondade de lhe explicar.

O legionario levou uma malha monstra dos cabos e andou bastante tempo com marcas na cara e no corpo. O cabo-chefe, vimo-lo no dia seguinte, com a fatiota dos presos vestida, a jardinar os espaços verdes da companhia, mas sempre com o seu eterno sorriso , pois os outros seus colegas cabos-chefe levavam-lhe as cervejas à sucapa...




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Re: Legiao estrangeira, a minha experiencia pessoal.

#29 Mensagem por legionario » Qua Set 15, 2010 10:07 am

Uma outra coisa que se aprende logo ao principio é a "apresentaçao". De cada vez que um legionario dirige a palavra a um superior, tem que se colocar em sentido e apresentar-se completamente. Durante a instruçao, mesmo para ir à casa de banho ou pelos motivos mais futeis, este ritual é obrigatorio. Para os legionarios que nao percebem uma palavra de francês, podemos imaginar a dificuldade...
Vou tentar traduzir esta "apresentaçao" em português :

O legionario poe-se em sentido diante do cabo, e diz :
- "legionario Ferreira, 2 meses de serviço, terceira companhia, secçao do sargento-chefe W. ...às vossas ordens caporal !"

O cabo responde :
- "poe-te à vontade" !

O legionario recomeça :
- "eu ponho-me à vontade, às vossas ordens caporal", (este "à vontade" nao é nada à vontade, pois o legionario deve manter-se hirto, apesar de colocar as maos atraz das costas e de afastar ligeiramente as pernas).

Depois de dizer o que pretende, o cabo diz-lhe :
- "podes destroçar" !

...e o legionario, depois de se colocar em sentido responde :
- "eu posso destroçar, às vossas ordens caporal", efectua uma meia-volta impecavel, e vai à sua vida.

Este ritual repete-se vezes sem conta durante o dia.




Editado pela última vez por legionario em Qua Set 15, 2010 10:53 am, em um total de 1 vez.
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Re: Legiao estrangeira, a minha experiencia pessoal.

#30 Mensagem por legionario » Qua Set 15, 2010 10:10 am

Logo na primeira semana, no regimento de instruçao (4°RE) fizemos os testes fisicos, que sao sensivelmente identicos aos das tropas especiais portuguesas : o teste cooper, as barras, os abdominais, nadar 50 metros, subir 6 metros de corda so à força de braços, etc. Sao testes relativamente acessiveis que todos os portugueses, à excepçao do "nosso emigrante" conseguiram fazer com excelentes médias. Tivemos os primeiros contactos com o "percurso do combatente" (pista de obstaculos), fazemos os primeiros footings, as primeiras marchas ; enfim, começamos gradualmente a habituar o corpo para os grandes esforços que se aproximam.
Na legiao, as duas coisas mais importantes sao : o tiro e a "endurance". Um legionario que é certeiro no tiro e que corre bem, tem à partida a "simpatia" dos instrutores, e isto mesmo que seja bruto como um calhau.
Uma das provas mais fatigantes e desgastantes é o "12 TAP". Trata-se de correr 12 quilometros, todo equipado, com arma, capacete e mochila carregada. Durante a minha instruçao, um legionario de uma outra seçao morreu durante uma prova destas.

O sargento português M. estava muito satisfeito com os nossos resultados e aceitava muito mal que um de nos portugueses nao estivesse entre os primeiros. Frequentemente ele chamava-nos à parte para nos encorajar, felicitar ou "encher as orelhas" caso um de nos tivesse sido menos bom nalguma coisa. Um dos motivos destas "reunioes" era tambem o nosso conterraneo emigrante ("emigrante" era a sua alcunha)que realmente era uma desgraça. O homem ja tinha pedido varias vezes para se ir embora porque realmente ele nao se aguentava , nem fisica nem psicologicamente. O sargento M. recusava deixa-lo ir embora, nao so a ele, como a qualquer outro legionario, pois foram varios a pedir para deixar a legiao. Fora de questao, ia tudo até ao fim !!

O sargento M. exigia-nos que puxassemos pelo "emigrante", que o encorajassemos, que fizessemos mesmo de papa e de mama, para que o rapaz chegasse ao fim, mas o homem era mesmo um caso perdido, e às vezes so tinhamos vontade de lhe bater...tao vao era o nosso esforço para o ajudar. Ele chorava quando o tentavamos motivar e vinha-nos mais uma vez com a historia e as misérias da sua vida, e quando ele chorava, ainda nos irritavamos mais com ele . Sem nos apercebermos, começavamos ao reagir assim, a perder tambem uma parte da nossa humanidade.




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