Guerra da Geórgia, implosão do Líbano e derrota de Israel
Leia o artigo de Ramez Philippe Maalouf, que discute o conflito que envolveu a Geórgia e a Rússia e as consequencias desse conflito.
16/12/08
Por Ramez Philippe Maalouf*
Tal como as grandes invasões israelenses do Líbano (1982 e 2006) e de Gaza (2006), ocorridas durante as disputas de Copas do Mundo da Espanha e da Alemanha, a Geórgia (aliado de Israel) também aproveitou os holofotes da mídia apontados para a abertura dos Jogos Olímpicos de Beijing (Pequim) para invadir a Ossétia do Sul e a Abkházia, exterminando mais de duas mil pessoas, para impor seu poder. Desde o início da década de 1990, com a implosão da URSS, quando a Geórgia proclamou sua independência, as duas províncias de maioria russa também proclamaram independência e a união com a Rússia, o que não foi aceito pelo governo de Tbilisi (capital georgiana) e nem reconhecido pelas potências ocidentais. Em face disto, as forças georgianas atacaram as províncias “rebeldes” e provocaram um genocídio. Mais de 100 mil ossétios buscaram refúgio na Federação Russa. Para pôr um fim ao conflito, em julho de 1992, um acordo foi firmado estabelecendo a criação de uma força de paz, da qual o exército russo faria parte.
Em 2004, Mikheil Saakashvili, de extrema-direita, pró-ocidental, foi eleito presidente da Geórgia e procurou recuperar o domínio sobre a Ossétia do Sul e da Abkházia, contando com o apoio tácito dos EUA, de Israel e da Inglaterra. A situação das duas províncias se degradou nos dois últimos anos com o acirramento do conflito, onde as forças georgianas mantiveram a ofensiva, massacrando inúmeros civis. Os constantes ataques do governo de Tbilisi não encontraram nenhuma oposição efetiva do Ocidente, o que pode ter sido entendido por Saakashvili como um sinal verde para a grande ofensiva no início de agosto de 2008, para resolver seus problemas territoriais, obtendo, assim, os pré-requisitos necessários para o ingresso na OTAN. Por outro lado, o presidente georgiano enfrentava, contudo, uma impopularidade crescente devido à crise econômica, o autoritarismo e a corrupção generalizada, com isto, a invasão da Ossétia do Sul e a limpeza étnica de sua população russa devem ter-lhe parecido a melhor saída para a permanência no poder. Suas tropas, treinadas por Israel e EUA, assassinaram mais de 2 mil ossétios, em poucas horas do dia 8 de agosto de 2008, e puseram em fuga outros 35 mil para a Rússia.
A resposta russa à ofensiva georgiana foi imediata e dura. Ainda no estádio olímpico, acenando ao público em Pequim, o todo-poderoso primeiro-ministro russo Vladimir Putin declarou “a guerra começou”. Milhares de tanques e caças de guerra e mais de 100 mil soldados se juntaram às tropas russas já estacionadas na Geórgia como força de paz desde 1992, em nome do “restabelecimento da ordem”, o mesmo pretexto usado para a destruição da Iugoslávia, em 1999, pelos EUA e OTAN.
O contra-ataque de Moscou demonstra uma clara mensagem ao cerco que os EUA promovem à Rússia nestes últimos anos de governo W. Bush. Em 2004, no mesmo ano da eleição de Saakashvili, a Ucrânia elegeu um presidente pró-ocidental em meio a manifestações populares (a Revolução Laranja, a semelhança do que ocorreria em 2005, no Líbano, a Revolução dos Cedros), além disto, as três ex-repúblicas soviéticas bálticas, Letônia, Estônia e Lituânia, assediadas pelos EUA, ingressaram no sistema atlantista (OTAN e CEE), ao mesmo tempo em que os americanos prevêem a instalação de um escudo antimísseis nos demais países fronteiriços com a Federação Russa, dando prosseguimento à estratégia americana de dominar a Eurásia. Esta estratégia foi o real motivo do ataque e invasão do Afeganistão (país sem capacidade de se defender), em 2001. Àquela altura, russos, então sob a presidência de Putin, e chineses não censuraram o extermínio de milhares de afegãos (sunitas e xiitas, mas sempre muçulmanos) pelos americanos, tendo em vista o inimigo em comum, o “terror islâmico” liderado por Bin Laden e sua Al-Qaeda. Putin chegou a receber a visita de W. Bush com tapete vermelho, quando o líder americano retesava a musculatura militar na Ásia. Moscou calculou que a “Guerra ao Terror” proclamada por Washington após o 11 de Setembro era a mesma que se desdobrava na Chechênia (majoritariamente muçulmana sunita), onde as tropas russas foram derrotadas na guerra separatista de 1994, sob o governo de Boris Yeltsin. Ao assumir a presidência no Kremlin, em 1999, o ex-agente da KGB, Vladimir Putin, ordenou uma nova ofensiva contra os separatistas chechenos, exterminando 50 mil pessoas. Contudo, a invasão e destruição do Iraque pelos EUA, em 2003, contrariaram os interesses russos e chineses e distanciaram a política de Washington de Moscou e Pequim.
É possível afirmar que a atual ofensiva georgiana é o mais claro sinal emitido por Washington de que a Guerra Fria não acabou, como era de se esperar com a queda dos regimes “comunistas”. O objetivo principal de Moscou na guerra no Cáucaso não trata apenas de impedir o ingresso da Geórgia na OTAN, mas, sim, também quebrar o arco pró-ocidental (Azerbaijão, Geórgia e Turquia) no Cáucaso, que já estava desestabilizando a Armênia (aliado da Rússia), em crise política desde o início de 2008, dividida entre pró-ocidentais e pró-Moscou, assim como enfraquecer o Ocidente, através do controle do oleoduto BTC (Baku, capital azeri – Tbilisi – Ceyhan, porto turco).
Geórgia foi uma das ex-repúblicas emancipadas com a queda da URSS, com uma população majoritariamente cristã ortodoxa e expressivas minorias judias e muçulmanas. Sua importância estratégica, entre os Mares Cáucaso e Negro, não foi desconsiderada pelos ocidentais, que não sonegaram apoio aos massacres perpetrados pelo governo de Tbilisi contra a autodeterminação da Ossétia do Sul e da Abkházia. Abria-se, com isto, uma dupla oportunidade ao poder americano: primeiro, a formação de uma coalizão pró-ocidental no Cáucaso, nas fronteiras russa e iraniana; e segundo, a possibilidade de construção de um oleoduto transportando petróleo de produtores confiáveis (do vizinho, Azerbaijão, também pró-ocidental).
Em 1999, iniciou-se a construção do oleoduto BTC, com capitais ingleses, americanos e israelenses, a ser conectado, através de oleodutos submarinos, com Israel, com quem formaria um novo eixo energético, BTC-Ashklelon-Eilat. O patrocinador do oleoduto é ninguém menos que Zbigniew Brzezisnki, ex-assessor americano de Segurança Nacional do governo Carter (1977-81), discípulo de Henry Kissinger. Foi Brzezisnki responsável pela retomada da corrida armamentista em fins da década de 1970, dando início da chamada Segunda Guerra Fria (1977-89). Ele também defendeu, na política externa americana, as teses de Nicholas Spykman, que apregoava a necessidade de manutenção da hegemonia americana sobre as Américas e o domínio das “franjas” eurasiáticas, cercando o Heartland (leia-se Rússia), para o controle do poder mundial. Entretanto, o ex-assessor americano tem sido um duro opositor a um ataque ao Irã, afirmando que seria uma ameaça à seguridade energética dos EUA. Todavia, para os EUA e Israel, o novo oleoduto representa a consolidação de uma aliança (Azerbaijão, Geórgia, Turquia e Israel) para minar, cercar e enfraquecer o eixo Moscou-Teerã-Pequim no mercado de energia inter-asiatico. Os investimentos israelenses neste empreendimento visam também levar água, gás natural e eletricidade, através de dutos submarinos, para Israel. O oleoduto foi inaugurado dia 13 de julho de 2006, um dia após o início da segunda grande invasão israelense ao Líbano.
A coincidência das datas não é mero acaso. A operacionalidade do oleoduto implica na militarização linha costeira do Mediterrâneo Oriental. Neste sentido, a invasão do Líbano em 2006 para anexação do sul do Líbano e a imposição de um governo pró-sionista em Beirute atende às geoestratégias israelenses. Assim, como a necessidade de mudança de regime na Síria. Desde a primeira metade de 2008, Turquia (um dos beneficiados pelo BTC) tem mediado um acordo de paz entre Síria e Israel. Os turcos mantêm tropas no Líbano (como “força de paz”) e no Iraque, onde combatem os curdos, porém, visando controlar o Mossul, norte do Iraque, região rica em petróleo, sob controle curdo. As conversações, segundo a imprensa, nos levam a acreditar na devolução das colinas do Golã por Israel à Síria, em favor da paz. Entretanto, o prosseguimento da guerra civil em pequena escala no Líbano, iniciada em maio de 2008, cuja principal zona de enfrentamentos, que ganham contornos de guerra sectária (sunitas vs. alauítas), é a cidade de Trípoli, onde se encontra um oleoduto proveniente do Iraque, nos indicam a possibilidade de restabelecimento dos acordos das Linhas Vermelhas entre Síria e Israel para uma nova divisão do País dos Cedros, tal como ocorrera a partir de 1976, durante a Guerra Civil Libanesa (1975-90), quando as tropas sírias invadiram o território libanês para impedir a derrota da extrema-direita libanesa. Segundo estes acordos, o sul do Líbano ficaria sob controle de Israel, enquanto o Norte (Akkar) e o Leste (Vale do Bekaa), sob o domínio sírio. A invasão israelense do Líbano em 1982 visava romper com estas Linhas, expulsando os sírios do território libanês. Damasco respondeu liberando a ação do Hizbollah no Bekaa e no sul do Líbano, com os resultados mais que conhecidos. O ataque israelense ao Líbano, em 2006, a guerra civil dele decorrente, a ocupação do sul do país pelas tropas da OTAN sob a capa de "forças de paz", os recentes assassinatos (entre fevereiro e julho de 2008) de agentes do Hizbollah na Síria, a guerra dos campos em 2007, assim como as conversações diretas entre Jerusalém e Damasco, em Ancara, nos revelam as intenções de divisão do País dos Cedros entre os dois inimigos e eventuais aliados. Por outro lado, Israel continua isolando a Faixa de Gaza e a Cisjordânia do resto do mundo, exterminando a população palestina, com a cumplicidade da Jordânia e do Egito. Os constantes bombardeios à Faixa de Gaza também visam neutralizar a resistência palestina, cujos contra-ataques dos mísseis qassams têm capacidade de atingirem Ashkelon, porto que deve ser ligado por via submarina ao BTC.
Assegurando a paz com a Síria, com a implosão do Líbano e o isolamento dos Territórios Ocupados palestinos, Israel já vislumbrava um bombardeio às instalações que supostamente fabricam armas nucleares no Irã. Ressalta-se que 1/4 da população iraniana é de origem azeri, cujo país natal, o Azerbaijão, é um novo aliado de Jerusalém. Por outro lado, o governo de Teerã programa desde o início de 2008 um ambicioso plano de privatizações (sem privilegiar os capitais americanos e israelenses), o que certamente aprofundará a crise social, abrindo a possibilidade de conflitos étnicos, onde a presença azeri pode significar um novo elemento desestabilizador no país persa, a ser capitalizado em favor das estratégias americanas e israelenses, para uma futura implosão do Irã. Entretanto, a intervenção russa na Geórgia e o virtual controle sobre o BTC põem em xeque a estratégia de Israel para a região e pode fortalecer a Síria numa negociação com Jerusalém e Ancara (que ocupa o distrito sírio, de maioria árabe, de Alexandreta, região onde o cristianismo emergiu como religião, rico em água). Os laços entre Síria e Rússia se estreitaram desde a segunda invasão do Iraque (2003) pelos EUA.
Ainda como estratégia ofensiva ao eixo Moscou-Teerã-Pequim, a deflagração de uma onda separatista na China – no Tibet e na província muçulmana de etnia uigar, Xinjiang, rica em petróleo – nos oferecem a perspectiva balcanizadora da Ásia Central. Por outro lado, o acordo nuclear entre EUA e Índia, as guerras civis no Sudão, no Zimbábue e na Somália, a ocupação do Timor Leste (rico em petróleo) pela Austrália, que atua como "força de paz", a balcanização da Bolívia e o golpe militar na Mauritânia (agosto de 2008) são os sinais da nova Guerra Fria que emerge em escala mundial. O revide russo freou (momentaneamente?) tais intentos ocidentais.
O ataque georgiano à Ossétia do Sul e à Abkházia, considerado como irresponsável e suicida pelos seus aliados ocidentais, os mesmos que incentivaram as atrocidades perpetradas pelo governo de Tbilisi nas duas regiões litigiosas nas últimas décadas, coincide também com a publicação no New York Times do artigo do historiador revisionista israelense Benny Morris – que ao contrário de seus colegas profissionais da mesma vertente historiográfica, sempre apoiou o extermínio e a expulsão dos palestinos de Israel – no qual defende o ataque (de Israel) convencional ao Irã, com conseqüências imprevisíveis, no que até analistas israelenses denominam, segundo Noam Chomsky, de “complexo de Sansão”, ou seja, uma ofensiva militar ao Irã de envergadura liderada por Israel livraria os americanos das possíveis retaliações, mas não os israelenses, desta forma, tanto judeus quanto iranianos poderiam ser aniquilados, tal como Sansão ao demolir o templo sobre si e os seus inimigos, os filisteus. De fato, os EUA incentivaram os ataques da Geórgia, mas nada fizeram para conter a (esperada) retaliação russa. Tal como em dezembro de 2007, Washington enviara sua aliada Benazir Bhutto para a morte certa no Paquistão, apostando na política do "quanto pior, melhor".
Geórgia e Israel sabiam e sabem as conseqüências de um ataque a uma grande potência terrestre. É Israel um dos principais derrotados na guerra no Cáucaso, mas a derrota da Geórgia pode servir de lição a ambições que podem se revelar suicidas?
*Especialista em História das Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestrando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo.
Referências
BHADRAKUMAR, M. K. O fim da era pós Guerra Fria. Disponível em: <
http://www.resistir.info/russia/bhadrak ... ago08.html>. Acesso em: 13/08/2008.
CHOMSKY, Noam. Irán: todas las opciones están sobre la mesa. Disponível em: <
http://www.rebelion.org/noticia.php?id=71285>. Acesso em: 10/08/2008.
CHOSSUDOVSKY, Michel. Irán: ¿Guerra o privatización: Guerra total o “conquista económica”?. Disponível em: <
http://www.rebelion.org/noticia.php?id=70100>. Acesso em: 10/07/2008.
______________. A "Frente Norte" do teatro de Guerra do Irão: O Azerbaijão e a guerra ao Irão promovida pelos EUA. Disponível: <
http://www.resistir.info/chossudovsky/f ... abr07.html>. Acesso em: 10/04/2007.
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MAALOUF, Ramez Philippe. A Segunda Guerra do Líbano: estratégias israelenses revisitadas. Revista CADE / Faculdades Moraes Júnior – Mackenzie Rio, nº 7, vol. 13, julho-dezembro 2007.
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Guerra da Geórgia, implosão do Líbano e derrota de Israel
Leia o artigo de Ramez Philippe Maalouf, que discute o conflito que envolveu a Geórgia e a Rússia e as consequencias desse conflito.
16/12/08
Por Ramez Philippe Maalouf*
Tal como as grandes invasões israelenses do Líbano (1982 e 2006) e de Gaza (2006), ocorridas durante as disputas de Copas do Mundo da Espanha e da Alemanha, a Geórgia (aliado de Israel) também aproveitou os holofotes da mídia apontados para a abertura dos Jogos Olímpicos de Beijing (Pequim) para invadir a Ossétia do Sul e a Abkházia, exterminando mais de duas mil pessoas, para impor seu poder. Desde o início da década de 1990, com a implosão da URSS, quando a Geórgia proclamou sua independência, as duas províncias de maioria russa também proclamaram independência e a união com a Rússia, o que não foi aceito pelo governo de Tbilisi (capital georgiana) e nem reconhecido pelas potências ocidentais. Em face disto, as forças georgianas atacaram as províncias “rebeldes” e provocaram um genocídio. Mais de 100 mil ossétios buscaram refúgio na Federação Russa. Para pôr um fim ao conflito, em julho de 1992, um acordo foi firmado estabelecendo a criação de uma força de paz, da qual o exército russo faria parte.
Em 2004, Mikheil Saakashvili, de extrema-direita, pró-ocidental, foi eleito presidente da Geórgia e procurou recuperar o domínio sobre a Ossétia do Sul e da Abkházia, contando com o apoio tácito dos EUA, de Israel e da Inglaterra. A situação das duas províncias se degradou nos dois últimos anos com o acirramento do conflito, onde as forças georgianas mantiveram a ofensiva, massacrando inúmeros civis. Os constantes ataques do governo de Tbilisi não encontraram nenhuma oposição efetiva do Ocidente, o que pode ter sido entendido por Saakashvili como um sinal verde para a grande ofensiva no início de agosto de 2008, para resolver seus problemas territoriais, obtendo, assim, os pré-requisitos necessários para o ingresso na OTAN. Por outro lado, o presidente georgiano enfrentava, contudo, uma impopularidade crescente devido à crise econômica, o autoritarismo e a corrupção generalizada, com isto, a invasão da Ossétia do Sul e a limpeza étnica de sua população russa devem ter-lhe parecido a melhor saída para a permanência no poder. Suas tropas, treinadas por Israel e EUA, assassinaram mais de 2 mil ossétios, em poucas horas do dia 8 de agosto de 2008, e puseram em fuga outros 35 mil para a Rússia.
A resposta russa à ofensiva georgiana foi imediata e dura. Ainda no estádio olímpico, acenando ao público em Pequim, o todo-poderoso primeiro-ministro russo Vladimir Putin declarou “a guerra começou”. Milhares de tanques e caças de guerra e mais de 100 mil soldados se juntaram às tropas russas já estacionadas na Geórgia como força de paz desde 1992, em nome do “restabelecimento da ordem”, o mesmo pretexto usado para a destruição da Iugoslávia, em 1999, pelos EUA e OTAN.
O contra-ataque de Moscou demonstra uma clara mensagem ao cerco que os EUA promovem à Rússia nestes últimos anos de governo W. Bush. Em 2004, no mesmo ano da eleição de Saakashvili, a Ucrânia elegeu um presidente pró-ocidental em meio a manifestações populares (a Revolução Laranja, a semelhança do que ocorreria em 2005, no Líbano, a Revolução dos Cedros), além disto, as três ex-repúblicas soviéticas bálticas, Letônia, Estônia e Lituânia, assediadas pelos EUA, ingressaram no sistema atlantista (OTAN e CEE), ao mesmo tempo em que os americanos prevêem a instalação de um escudo antimísseis nos demais países fronteiriços com a Federação Russa, dando prosseguimento à estratégia americana de dominar a Eurásia. Esta estratégia foi o real motivo do ataque e invasão do Afeganistão (país sem capacidade de se defender), em 2001. Àquela altura, russos, então sob a presidência de Putin, e chineses não censuraram o extermínio de milhares de afegãos (sunitas e xiitas, mas sempre muçulmanos) pelos americanos, tendo em vista o inimigo em comum, o “terror islâmico” liderado por Bin Laden e sua Al-Qaeda. Putin chegou a receber a visita de W. Bush com tapete vermelho, quando o líder americano retesava a musculatura militar na Ásia. Moscou calculou que a “Guerra ao Terror” proclamada por Washington após o 11 de Setembro era a mesma que se desdobrava na Chechênia (majoritariamente muçulmana sunita), onde as tropas russas foram derrotadas na guerra separatista de 1994, sob o governo de Boris Yeltsin. Ao assumir a presidência no Kremlin, em 1999, o ex-agente da KGB, Vladimir Putin, ordenou uma nova ofensiva contra os separatistas chechenos, exterminando 50 mil pessoas. Contudo, a invasão e destruição do Iraque pelos EUA, em 2003, contrariaram os interesses russos e chineses e distanciaram a política de Washington de Moscou e Pequim.
É possível afirmar que a atual ofensiva georgiana é o mais claro sinal emitido por Washington de que a Guerra Fria não acabou, como era de se esperar com a queda dos regimes “comunistas”. O objetivo principal de Moscou na guerra no Cáucaso não trata apenas de impedir o ingresso da Geórgia na OTAN, mas, sim, também quebrar o arco pró-ocidental (Azerbaijão, Geórgia e Turquia) no Cáucaso, que já estava desestabilizando a Armênia (aliado da Rússia), em crise política desde o início de 2008, dividida entre pró-ocidentais e pró-Moscou, assim como enfraquecer o Ocidente, através do controle do oleoduto BTC (Baku, capital azeri – Tbilisi – Ceyhan, porto turco).
Geórgia foi uma das ex-repúblicas emancipadas com a queda da URSS, com uma população majoritariamente cristã ortodoxa e expressivas minorias judias e muçulmanas. Sua importância estratégica, entre os Mares Cáucaso e Negro, não foi desconsiderada pelos ocidentais, que não sonegaram apoio aos massacres perpetrados pelo governo de Tbilisi contra a autodeterminação da Ossétia do Sul e da Abkházia. Abria-se, com isto, uma dupla oportunidade ao poder americano: primeiro, a formação de uma coalizão pró-ocidental no Cáucaso, nas fronteiras russa e iraniana; e segundo, a possibilidade de construção de um oleoduto transportando petróleo de produtores confiáveis (do vizinho, Azerbaijão, também pró-ocidental).
Em 1999, iniciou-se a construção do oleoduto BTC, com capitais ingleses, americanos e israelenses, a ser conectado, através de oleodutos submarinos, com Israel, com quem formaria um novo eixo energético, BTC-Ashklelon-Eilat. O patrocinador do oleoduto é ninguém menos que Zbigniew Brzezisnki, ex-assessor americano de Segurança Nacional do governo Carter (1977-81), discípulo de Henry Kissinger. Foi Brzezisnki responsável pela retomada da corrida armamentista em fins da década de 1970, dando início da chamada Segunda Guerra Fria (1977-89). Ele também defendeu, na política externa americana, as teses de Nicholas Spykman, que apregoava a necessidade de manutenção da hegemonia americana sobre as Américas e o domínio das “franjas” eurasiáticas, cercando o Heartland (leia-se Rússia), para o controle do poder mundial. Entretanto, o ex-assessor americano tem sido um duro opositor a um ataque ao Irã, afirmando que seria uma ameaça à seguridade energética dos EUA. Todavia, para os EUA e Israel, o novo oleoduto representa a consolidação de uma aliança (Azerbaijão, Geórgia, Turquia e Israel) para minar, cercar e enfraquecer o eixo Moscou-Teerã-Pequim no mercado de energia inter-asiatico. Os investimentos israelenses neste empreendimento visam também levar água, gás natural e eletricidade, através de dutos submarinos, para Israel. O oleoduto foi inaugurado dia 13 de julho de 2006, um dia após o início da segunda grande invasão israelense ao Líbano.
A coincidência das datas não é mero acaso. A operacionalidade do oleoduto implica na militarização linha costeira do Mediterrâneo Oriental. Neste sentido, a invasão do Líbano em 2006 para anexação do sul do Líbano e a imposição de um governo pró-sionista em Beirute atende às geoestratégias israelenses. Assim, como a necessidade de mudança de regime na Síria. Desde a primeira metade de 2008, Turquia (um dos beneficiados pelo BTC) tem mediado um acordo de paz entre Síria e Israel. Os turcos mantêm tropas no Líbano (como “força de paz”) e no Iraque, onde combatem os curdos, porém, visando controlar o Mossul, norte do Iraque, região rica em petróleo, sob controle curdo. As conversações, segundo a imprensa, nos levam a acreditar na devolução das colinas do Golã por Israel à Síria, em favor da paz. Entretanto, o prosseguimento da guerra civil em pequena escala no Líbano, iniciada em maio de 2008, cuja principal zona de enfrentamentos, que ganham contornos de guerra sectária (sunitas vs. alauítas), é a cidade de Trípoli, onde se encontra um oleoduto proveniente do Iraque, nos indicam a possibilidade de restabelecimento dos acordos das Linhas Vermelhas entre Síria e Israel para uma nova divisão do País dos Cedros, tal como ocorrera a partir de 1976, durante a Guerra Civil Libanesa (1975-90), quando as tropas sírias invadiram o território libanês para impedir a derrota da extrema-direita libanesa. Segundo estes acordos, o sul do Líbano ficaria sob controle de Israel, enquanto o Norte (Akkar) e o Leste (Vale do Bekaa), sob o domínio sírio. A invasão israelense do Líbano em 1982 visava romper com estas Linhas, expulsando os sírios do território libanês. Damasco respondeu liberando a ação do Hizbollah no Bekaa e no sul do Líbano, com os resultados mais que conhecidos. O ataque israelense ao Líbano, em 2006, a guerra civil dele decorrente, a ocupação do sul do país pelas tropas da OTAN sob a capa de "forças de paz", os recentes assassinatos (entre fevereiro e julho de 2008) de agentes do Hizbollah na Síria, a guerra dos campos em 2007, assim como as conversações diretas entre Jerusalém e Damasco, em Ancara, nos revelam as intenções de divisão do País dos Cedros entre os dois inimigos e eventuais aliados. Por outro lado, Israel continua isolando a Faixa de Gaza e a Cisjordânia do resto do mundo, exterminando a população palestina, com a cumplicidade da Jordânia e do Egito. Os constantes bombardeios à Faixa de Gaza também visam neutralizar a resistência palestina, cujos contra-ataques dos mísseis qassams têm capacidade de atingirem Ashkelon, porto que deve ser ligado por via submarina ao BTC.
Assegurando a paz com a Síria, com a implosão do Líbano e o isolamento dos Territórios Ocupados palestinos, Israel já vislumbrava um bombardeio às instalações que supostamente fabricam armas nucleares no Irã. Ressalta-se que 1/4 da população iraniana é de origem azeri, cujo país natal, o Azerbaijão, é um novo aliado de Jerusalém. Por outro lado, o governo de Teerã programa desde o início de 2008 um ambicioso plano de privatizações (sem privilegiar os capitais americanos e israelenses), o que certamente aprofundará a crise social, abrindo a possibilidade de conflitos étnicos, onde a presença azeri pode significar um novo elemento desestabilizador no país persa, a ser capitalizado em favor das estratégias americanas e israelenses, para uma futura implosão do Irã. Entretanto, a intervenção russa na Geórgia e o virtual controle sobre o BTC põem em xeque a estratégia de Israel para a região e pode fortalecer a Síria numa negociação com Jerusalém e Ancara (que ocupa o distrito sírio, de maioria árabe, de Alexandreta, região onde o cristianismo emergiu como religião, rico em água). Os laços entre Síria e Rússia se estreitaram desde a segunda invasão do Iraque (2003) pelos EUA.
Ainda como estratégia ofensiva ao eixo Moscou-Teerã-Pequim, a deflagração de uma onda separatista na China – no Tibet e na província muçulmana de etnia uigar, Xinjiang, rica em petróleo – nos oferecem a perspectiva balcanizadora da Ásia Central. Por outro lado, o acordo nuclear entre EUA e Índia, as guerras civis no Sudão, no Zimbábue e na Somália, a ocupação do Timor Leste (rico em petróleo) pela Austrália, que atua como "força de paz", a balcanização da Bolívia e o golpe militar na Mauritânia (agosto de 2008) são os sinais da nova Guerra Fria que emerge em escala mundial. O revide russo freou (momentaneamente?) tais intentos ocidentais.
O ataque georgiano à Ossétia do Sul e à Abkházia, considerado como irresponsável e suicida pelos seus aliados ocidentais, os mesmos que incentivaram as atrocidades perpetradas pelo governo de Tbilisi nas duas regiões litigiosas nas últimas décadas, coincide também com a publicação no New York Times do artigo do historiador revisionista israelense Benny Morris – que ao contrário de seus colegas profissionais da mesma vertente historiográfica, sempre apoiou o extermínio e a expulsão dos palestinos de Israel – no qual defende o ataque (de Israel) convencional ao Irã, com conseqüências imprevisíveis, no que até analistas israelenses denominam, segundo Noam Chomsky, de “complexo de Sansão”, ou seja, uma ofensiva militar ao Irã de envergadura liderada por Israel livraria os americanos das possíveis retaliações, mas não os israelenses, desta forma, tanto judeus quanto iranianos poderiam ser aniquilados, tal como Sansão ao demolir o templo sobre si e os seus inimigos, os filisteus. De fato, os EUA incentivaram os ataques da Geórgia, mas nada fizeram para conter a (esperada) retaliação russa. Tal como em dezembro de 2007, Washington enviara sua aliada Benazir Bhutto para a morte certa no Paquistão, apostando na política do "quanto pior, melhor".
Geórgia e Israel sabiam e sabem as conseqüências de um ataque a uma grande potência terrestre. É Israel um dos principais derrotados na guerra no Cáucaso, mas a derrota da Geórgia pode servir de lição a ambições que podem se revelar suicidas?
*Especialista em História das Relações Internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestrando em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo.
Referências
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http://www.rebelion.org/noticia.php?id=71285>. Acesso em: 10/08/2008.
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